Correio da Cidadania

João, João, Fernando e Eurico

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O Quinzinho não se chama Marcos e muito menos Quincas. A razão de lhe chamarem assim é porque ele não gostava de ser João de Souza, quando ingressou no tráfico. Com certeza não teve boa vida durante os primeiros 15 anos de sua existência. Conheceu, sim, a agressão máxima que um ser humano é capaz de suportar.

Recebeu agressão do Estado brasileiro, que lhe negou as condições mínimas de sobrevivência, que não deveriam ser negadas a nenhum brasileiro. Foi agredido pelo pai que lhe contemplou com ausência absoluta, deixando o padrasto em situação privilegiada, porque este estava sempre presente para a surra diária. Era agredido pela mãe, involuntariamente, pois o deixava com a vizinha, uma vez que tinha de ir trabalhar. Esta não o alimentava direito. Sentia muita fome na infância.

Desde muito jovem sentia atração pelo tráfico, pois sabia que se usasse a coragem e a inteligência que tinha, seria respeitado. Passou a ostentar um revólver aos 15 anos e sentiu que o tráfico era sua única chance de acesso a dinheiro, poder local e garotas da comunidade. Não se perguntava durante quanto tempo isto duraria. A solidariedade social era restrita aos moradores da comunidade que ficavam calados e não denunciavam seu grupo. Durante seu desenvolvimento, a única alternativa foi ser marmiteiro, que ele rejeitava.

O outro João, mais conhecido como Da Silva, nunca repudiou seu nome, mas o instrutor da corporação, quando ele entrou, escolheu lhe chamar desta forma. Quando criança, achava bonito o uniforme de policial. Depois de certa idade, deixou de dizer que queria ser policial, devido à cobertura dos tiroteios pela TV e dos funerais de soldados. Mas a crise da economia deixou um exército de desempregados no país e lhe ceifou alternativas de profissão.

Não era bom atirador e relutou a aderir aos subornos, colocando-se na linha de frente, como policial descartável. Na verdade, tinha orgulho de participar da corporação. Não acreditava que seus superiores pudessem ser corruptos. Sentia-se bem em proteger o desprotegido, apesar de ser um revoltado quanto ao seu salário. Conseguia levar o mínimo para casa para sua família não morrer de fome. Sua mulher cansava de lhe dizer para procurar ser segurança de um supermercado, de empresas ou de grã-finos porque ela não queria ficar viúva.

Fernando é um funcionário público, altamente qualificado, pesquisador da Fiocruz e participante do grupo que procura criar vacinas e remédios para algumas doenças tropicais. Profissionalmente está no local certo, pois vibra com o que faz. Só reclama porque o governo vive cortando verbas de pesquisa, além dos já cortados salários. Conclui que o Governo quer mesmo que continuem brasileiros morrendo por falta de vacinas e remédios.

No dia 6 de fevereiro de 2018, Quinzinho, Da Silva e Fernando não sabiam, mas tinham um encontro marcado na Linha Amarela. Traficantes e policiais, mais uma vez se desentenderam e trocavam muitos tiros, mas realmente muitos. Fernando e sua esposa foram assinar um documento formal em um cartório e voltavam para casa, quando foram surpreendidos pela cena de terror explicito. Empurrados pelo tráfego intenso, foram parar na zona mais quente da “Faixa de Gaza”. Os dois não tiveram alternativa, a não ser se proteger atrás da mureta de uma escada para a passarela.

Foi, no mínimo, uma hora de muito medo. Presenciaram o cidadão que queria ter seus segundos de glória e chegava a se expor para gravar pelo celular o que acontecia. Ele ouvia as pessoas dizendo: “não levanta”, mas precisava daquele vídeo e continuava em pé gravando. Ao mesmo tempo gravava um discurso confuso, pois dizia que a saída era ir para Miami, como se fosse possível a população do Rio de Janeiro ir toda para lá.

Da Silva estava próximo, mas atrás de outra mureta, a da divisória de pistas. Os traficantes aparentemente estavam ganhando, pois atiravam mais. A posição no alto era vantajosa, assim como a irregularidade do conjunto da comunidade ajudava-lhes muito a se esconderem. Quando
Da Silva achava que via uma cabeça saliente na silhueta da favela, se esticava, mirava e atirava. Mas não demorava muito tempo se expondo. Não pensava na vida do traficante, pois “era ou a minha ou a dele”.

O traficante, no seu mundo incompreensível para a maioria de nós, só pensava em destruir todos que ameaçassem seu negócio, sua razão de vida. Apesar de muito corajosos todos queriam sair dali com vida. A esposa de Fernando mais que tremia, chacoalhava. Atrás daquela sinfonia de estampidos, depois de cada um deles, uma vida, que demorou anos para chegar a um estágio avançado de desenvolvimento, poderia estar tombando. Esta é a cruel realidade sobre a qual todos nós deveríamos chorar: “atrás de cada estampido, uma vida pode estar sendo extinta”.

Depois de muito tempo com os afagos mortais, os traficantes se recolheram aos seus esconderijos, parecendo vietcongues que, para espanto dos norte-americanos, evaporavam na floresta. Os policiais, dando graças a Deus porque nenhum companheiro foi abatido, também se recolheram.

Fernando, esposa e todos que participaram do safari da Maré pegaram seus carros e, agora, relatam seus feitos que, na verdade, se resumem em grande imobilidade. No caso do Fernando, se uma bala perdida o achasse, teria atingido o personagem, dentre todos os aterrorizados inocentes da redondeza, que mais contribuía socialmente. O que mostraria a injustiça da aleatoriedade.

Pode-se e deve-se pensar em quem são os culpados. Todos os que governam de forma excludente. Os políticos, os do Executivo, os do Legislativo, os do Judiciário e os do Ministério Público são culpados. Sim, hoje o Judiciário e o Ministério Público são compostos, na sua maioria, de políticos. São culpados também aqueles que, sendo empresários, não se satisfazem com o acúmulo de riqueza que cinco gerações suas terão dificuldade em gastar. São todos aqueles que buscam iludir a população para usufruírem de sua ignorância. Neste grupo, está a mídia, mas não sozinha.

Existe uma realidade pouco compreendida entre nós. A péssima distribuição de renda do Brasil é um fator indutor da violência. O raciocínio na cabeça de qualquer um é simples: “se cinco empresários brasileiros possuem a mesma riqueza que os 50% mais pobres da população” é porque, neste país, vale a exploração mais desumana. Logo, ao retirar o dano à saúde do usuário, para o qual não há perdão, por que os traficantes são culpados de criar dependência e roubar os usuários? Os crimes do colarinho branco já foram banalizados e perdoados, e os demais, não?

O Eurico trabalha no escritório do pai, uma banca de advocacia especializada em assessoramento de empresas de mineração estrangeiras com relação ao ambiente jurídico e político do Brasil. Recentemente, ganhou rios de dinheiro ao conseguir que o Executivo isentasse por 22 anos o pagamento de impostos de petrolíferas. Elas tinham direito a só mais quatro anos de isenção. Ele tem ódio de ter de morar no Brasil.

Todos que assistiram ao Jornal Nacional, naquela noite, não entenderam o porquê de tanta violência.

Paulo Metri

Conselheiro do Clube de Engenharia

Paulo Metri
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