Correio da Cidadania

Primeiro atacar. Depois tentar provar

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Não há dúvida de que o bombardeio em Damasco violou as leis internacionais.

A ONU não foi consultada, nenhum dos Estados agressores agiu em autodefesa e não havia provas de um desastre humanitário.

Mas, o mundo já está acostumado a ver os EUA fazendo “justiça pelas próprias mãos”, ignorando as leis e a autoridade da ONU, cada vez mais desmoralizada pela sua impotência diante do poderio norte-americano.

Esquecendo tais fatos, reconhecemos que existem dúvidas sobre se Assad é culpado ou inocente.

Não se pode levar muito a sério vídeos, fotos, testemunhos e amostras de sangue fornecidas por inimigos do governo, que na ocasião do ataque dominavam Douma. Refiro-me aos Capacetes Brancos - financiados pelos EUA e o Reino Unido - e o Jaysh al-Islam, um grupo jihadista/salafita, apoiado pela Arábia Saudita.

Os russos e sírios acusam as cenas chocantes protagonizada por habitantes da cidade como situações encenadas, armadas para enganar a opinião pública.

Podem muito bem ser, realmente fakes, mas também podem não ser. Difícil de provar.

Para desvendar a verdade sobre o caso de Douma, talvez seja melhor analisar fatos diretamente relacionados a essa condenável prática de usar gases venenosos como armas de guerra.

O comitê de investigação de Direitos Humanos das ONU revelou que, entre 2013 e novembro de 2017, aconteceram 34 ataques com sarin e similares na guerra da Síria, sendo que 26 foram de autoria do governo. Aceitando estes números, Assad fica mal. São fortes precedentes contra ele.

Apesar disso, não dá para se concluir que no caso específico de Douma, ele teria usado agentes tóxicos como armas.

Afinal, em centenas, talvez milhares de outros combates, o armamento do regime de Damasco era lícito. Pelo menos, não se provou o contrário.

Ainda mais, estando Douma quase inteiramente tomada, para que Assad iria se arriscar a tornar-se alvo de retaliações ocidentais, lançando gases proibidos universalmente?

Respondem analistas do Ocidente: com um exército cada vez mais reduzido, convinha a Assad usar armas químicas, que não punham em risco seus soldados, matavam muita gente e causavam pavor nos rebeldes, estimulando-os à rendição.

Justifica-se essa alegação pelos 26 ataques químicos reportados pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, dos quais pelo menos dois foram considerados comprovados. Haveria evidências conclusivas da mão de Assad em bombardeios com gases venenosos, em Ghouta, em 2013, e em Kham Shaykhun, em 2017.

Como se sabe, no caso de Ghouta, o então presidente Obama e o primeiro-ministro inglês Cameron estavam perto de lançar uma forte retaliação, bombardeando Damasco, quando foram barrados pelos legislativos dos seus países.

Aceitando a mediação do presidente Putin, as potências ocidentais aceitaram que o governo sírio destruísse todas as fábricas e estoques de armas químicos. O que foi feito, sob os olhos críticos de inspetores da Organização para Proibição e Armas Químicas (OPAQ). Na ocasião, alguém sugeriu que, como produzir e estocar esse tipo de armamentos era proibido por convenção entre 111 nações, Israel deveria imitar o exemplo de Assad. Claro, isso sequer foi considerado...

A tragédia de Khan Shaykhun não passou em branco. Diante das fotos e vídeos das vítimas do sarin, presumivelmente lançado por aviões de Assad, Trump (ou a princesa herdeira, Ivanka, as fontes divergem) exigiu punição. E 59 mísseis Tomahawk fulminaram uma base aérea do governo vigente.

Satisfeita a emoção indignada de Trump (ou de Ivanka), tudo parecia resolvido.

Eis que o secretário de Defesa dos EUA, o general James Mattis, soltou, talvez inadvertidamente, uma declaração espantosa (Newsweek, 8 de fevereiro de 2018). Os EUA não teriam evidências de que Assad tivesse usado gás sarin contra seu próprio povo. Segundo a Newsweek, Mattis referia-se aos dois casos, Ghouta e Khan Shaykhum.

O general teria também reconhecido que “grupos de ajuda” e outros providenciaram indícios e relatos que “chegaram perto de nomear Assad como o culpado”.

Chegar perto não quer dizer chegar lá. O Brasil chegou perto de ganhar a Copa de 50. Lula chegou perto de derrotar Collor em eleição passada. O crescimento brasileiro em 2017 chegou perto de 1%.

Em junho de 2017, o respeitado repórter investigativo, Seymour Hersh, que denunciou a atrocidade de May Lay, na guerra do Vietnã e as torturas da prisão de Abu Ghraib, na guerra do Afeganistão, realizou uma profunda investigação sobre os incidentes de Khan Shaykhan.

Concluiu que o fogoso The Donald emitiu a ordem de lançar os mísseis apesar de ter sido avisado pela comunidade de inteligência dos EUA que não havia sido encontrada nenhuma evidência de que os sírios haviam usado armas químicas (Welt, 25-5-2017).

Mesmo assim, Trump não conseguiu conter seu fogo e fúria e mandou os 59 projéteis que destruíram uma base síria sem motivo.

Contrariando o general Mattis e o jornalista Hersh, uma comissão de especialistas da OPAQ e da ONU afirmou que, sim, o atentado de Khan Shaykun fora obra da aviação de Assad.

Os russos contestaram, disseram haver uma série de omissões nesse relatório. A mais séria me parece ser o fato de os especialistas não terem visitado o local da tragédia, a fim de examinar os vários aspectos e circunstâncias in loco. O que, normalmente, se considera importante.

Deixando as atenuantes e agravantes de lado, julgou-se que a suprema prova, que deslindaria de vez o mistério, seria uma investigação pela Organização para Proibição de Armas Químicas (OPAQ), através dos seus mais imparciais especialistas.

Marcou-se 7 de abril para o embarque desse grupo seleto. Mas Trump e, portanto, seus acólitos Macron e Theresa May tinham pressa.

E os três estadistas lançaram o bombardeio, previsto anteriormente por The Donald, horas antes de os especialistas chegarem a Damasco.

Foi a execução do réu, antes das provas serem apresentadas. Inegavelmente uma criativa reforma do processo penal pelo presidente dos EUA.

Como foi informado, um dos três alvos do bombardeio em Damasco foi o complexo de Barzeh, considerado um dos principais viveiros de armas químicas do regime sírio.

De fato, Barzeh era tudo isso antes de firmado o acordo de destruição das armas químicas e dos programas de fabricá-las, assumido por Assad em 2013.

Logo a seguir, segundo o governo sírio, o complexo fora transformado em um centro de pesquisas científicas.

Coube à OPAQ a função de fiscalizar o acordo para verificar se o regime de Assad estava cumprindo suas obrigações de não mais fabricar ou adquirir armas químicas.

Evidentemente, Barzeh, devido à sua importância reconhecida pelos EUA, foi uma das instalações mais rigorosamente inspecionadas.

Na inspeção de Barzeh, entre 26 de fevereiro e 5 de março de 2017, os especialistas da OPAQ não observaram qualquer atividade inconsistente com as obrigações do acordo, sendo que Damasco permitiu seu acesso aos setores que eles selecionaram.

Em novembro deste ano, foi dada continuidade à inspeção, com os mesmos resultados positivos. Nem cheiro de armas químicas.

Não dá para acreditar que no período de seis meses - de novembro de 2017 a 7 de abril de 2018 - desse tempo para Assad transformar Barzeh de centro de pesquisas científicas em uma fábrica de armas químicas. Ainda mais sabendo que, se o fizesse, em breve, seria fatalmente desmascarado pela inspeção seguinte da OPAQ.

Só mesmo se os sírios fossem de uma habilidade e rapidez espantosa ou se os inspetores da OPAQ de uma incompetência rematada...

Seja como for, fica uma pergunta: se os EUA tinham absoluta certeza dos crimes químicos de Assad, por que não esperar pela inspeção da OPAQ para provar urbi et orbi que estavam certos?
 
Por que fizeram questão de atacar antes disso?

Dá margem a que se acredite que, na melhor das hipóteses, não sabiam se Assad tinha ou não culpa. Na pior das hipóteses, sabiam que não.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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