Dez notas iniciais depois da eleição de Bolsonaro
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- Gilberto Calil
- 01/11/2018
Passada uma noite, dá para começar a organizar as ideias. Em março de 1921, profundamente indignado com os resultados do Congresso da Confederacione Generale del Lavoro, que não tirou medidas concretas de enfrentamento ao fascismo, Gramsci escreveu: “Aumentou nosso pessimismo, mas é sempre viva e atual nossa divisa: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”. O que seguiu-se depois foi trágico, mas a história não se repete da mesma forma e a divisa é pertinente para o momento.
1. A vitória eleitoral de um fascista é um evento terrível. É compreensível que estejamos tristes, arrasados, um tanto desorientados e profundamente decepcionados, inclusive porque todos temos pessoas próximas que revelaram serem algo que não imaginávamos. Mas é imprescindível ter claro que há uma diferença grande entre uma vitória eleitoral do fascismo e a instituição de um regime fascista. Devemos ter clareza de que qualquer discurso de moderação de Bolsonaro é uma simulação malfeita, mas isto não significa que tenha o caminho aberto para instituir uma ditadura. A intenção existe, mas sua concretização não está dada e pode ser barrada.
2. Há dez dias, desenhava-se uma vitória avassaladora de Bolsonaro. Não foi assim. Bolsonaro teve MENOS DA METADE dos votos DOS ELEITORES QUE FORAM VOTAR, e não chegou a 39% dos votos do eleitorado total. Para as condições da resistência, é MUITO diferente este resultado do que seria uma derrota acachapante. Não fosse a estúpida insistência da campanha petista até metade do segundo turno com “não ataquem Bolsonaro, quem não é visto não é lembrado, foquem apenas em Haddad”, este resultado poderia ter sido revertido.
3. O outro lado deste processo é que, mesmo nas condições limitadas de uma eleição, reaprendemos a importância do trabalho de base. Em centenas de cidades, organizaram-se grupos incluindo muita gente com pouca ou nenhuma experiência de militância que percorreram os bairros ouvindo as pessoas, conversando e dialogando. Aproximamo-nos do mundo real e avançamos no sentido da constituição de uma esquerda mais próxima da realidade e com maior capacidade de dialogar. Dar continuidade a isto permitirá na prática atropelar as visões e direções burocráticas que paralisam e obstaculizam a esquerda.
4. Da minha experiência particular em um canto do Brasil onde Bolsonaro teve 71% no primeiro turno: quase uma centena de pessoas – a ampla maioria jovem e sem filiação partidária – mobilizou-se, passou de casa em casa em todos os bairros populares ao longo de quinze dias e ouviu muito o que as pessoas tinham a dizer. As forças do outro lado eram poderosas demais, passando pela pressão empresarial, relações clientelistas e coação praticada dentro de igrejas.
Uma visão simplória e rápida dos resultados eleitorais parece indicar que não tivemos êxito. Bolsonaro fez 77% dos votos. Mas Haddad passou de 3.961 para 6.664, o que significa 500 votos a mais do que a soma de sua votação com Ciro, Boulos, Marina, Vera, João Goulart e Eymael. Ou seja, ainda que em uma dimensão insuficiente para mudar o resultado, o debate logrou reverter votos dados à direita e ao próprio Bolsonaro.
5. Desta experiência salta aos olhos a impressionante consciência de classes das camadas mais pobres. Na quase totalidade das casas mais precárias, encontramos não apenas a disposição convicta do voto (muitas vezes com “se for do Bolsonaro nem entrega!”), mas um entendimento do significado desta eleição que surpreenderia muitos intelectuais. Por outro lado, em bairros populares de renda um pouco superior e casa relativamente melhores – naquilo que se convencionou chamar de classe “c” ou que nas pesquisas aparece como “2 a 5 salários mínimos”, encontramos não apenas uma avassaladora maioria bolsonarista, como também a expressão ideológica do empreendedorismo, da meritocracia e uma identificação entre pobreza e vagabundagem. São setores que ascenderam durante os governos petistas, mas que além de ter sua ascensão apenas pelo consumo, foram educados a pensarem como burgueses.
6. Encontramos muita reprodução de fake news bizarras. Nos últimos dias, ouvi muitas vezes que Haddad queima bíblias. Mas mais do que todas elas, me parece que um êxito fundamental da campanha de Bolsonaro foi ter conseguido, contra todos os dados da realidade, se apresentar como o anti-Temer e caracterizar Temer como produto do PT. Quando encontrávamos esta visão, nenhum argumento era capaz de desconstruí-la.
7. Além de sua monumental incapacidade intelectual e propensão a proferir disparates, Bolsonaro tem pela frente uma enorme dificuldade. Por mais que entendamos que genericamente o voto nele expressa um conteúdo reacionário (algo inegável), ele é motivo por expectativas muito díspares, e grande parte delas será contrariada muito rapidamente. Ouvi muitos dizendo que votavam nele para voltar a ter gasolina e gás baratos! Podemos rir deste disparate, mas é melhor tentarmos entender.
Ouvi buzinas de caminhão a noite toda e sabemos que a expectativa deles de uma redução do diesel é diametralmente oposta ao eixo do projeto de Paulo Guedes. A reforma da previdência – provavelmente ainda neste ano – deixará às claras a cumplicidade entre Temer e Bolsonaro e trará à luz uma das principais razões do entusiasmo do “mercado” com ele. Se na alta classe média há clareza quanto ao sentido social reacionário e com isto perspectivas de manutenção de um apoio ao seu projeto real, no conjunto dos setores populares que o apoiou a decepção será rápida, ainda que se possa imaginar estratégias diversionistas, como a pauta moral. Mas na presidência não terá como sustentar-se apenas com isto.
8. Bolsonaro tem um vice que é objetivamente um adversário político (com um projeto pessoal e posições ainda mais extremistas). Não sei como este conflito será gerido.
9. Já escrevi sobre a necessidade de ter clareza em relação à cumplicidade da justiça na ascensão do fascismo. Não será a Justiça, ou as instituições do Estado como um todo, que barrarão o fascismo. Ainda assim, a força da organização popular incide também neste aspecto e estarmos organizados e mobilizados, inclusive denunciando esta cumplicidade, é a única possibilidade de que algumas barreiras inclusive jurídicas sejam interpostas à escalada fascista.
10. Por último, e mais importante: NÃO SAIAM DAS REDES SOCIAIS, NÃO SE ISOLEM. Só se pode enfrentar o fascismo com organização e ação coletiva. As razões para temer são muito concretas, mas só nos fortalecemos e nos protegemos coletivamente. O isolamento nos deixa mais vulneráveis, mais desprotegidos e mais impossibilitados de disputar a hegemonia. Avançamos muito nos últimos dias, é hora de nos protegermos, mas não é momento de nos isolarmos.
Gilberto Calil é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). É autor, entre outros livros, de “Integralismo e Hegemonia Burguesa” (Edunioeste, 2011) e pesquisa sobre Estado, Poder, Direita, Hegemonia, Ditadura e Fascismo.
Retirado de Esquerda Online.