A rebelião peculiar dos “coletes amarelos”
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- Nuno Ramos de Almeida
- 06/12/2018
Segundo as estatísticas do Ministério do Interior francês, divulgadas no momento em que está convocada para o próximo sábado uma quarta mobilização dos coletes amarelos, 136 mil pessoas manifestaram-se no dia 1 de dezembro, 166 mil em 24 de novembro e 282 mil em 17 de novembro.
Mais de 682 pessoas foram interpeladas pela polícia, 630 colocadas sob detenção. Pelo menos 281 pessoas ficaram feridas, entre as quais 81 policiais.
Dissipadas as nuvens de gás lacrimogêneo, urge fazer uma pergunta: quem são os coletes amarelos? O filósofo francês Jean-Luc Michéa ironizava, citando um autor, que são demasiado pobres para interessar à direita e demasiado brancos para serem apoiados pela esquerda.
Aparentemente, pertencem a uma parte da França a quem o salário não chega ao fim do mês. Pertencem a uma parte do país invisível e espacialmente separada das zonas mais ricas, o centro das grandes cidades habitadas pelos vencedores do processo de globalização e financeirização neoliberal que começou nos anos 80.
Nesses locais vivem mais de 60% dos franceses, uma “França periférica”, nas palavras do geógrafo Christophe Guilluy. Talvez por isso, as sondagens indiquem que mais de 70% dos franceses concordam com as razões do movimento dos coletes amarelos.
Margaret Thatcher garantia, em 31 de outubro de 1987, à revista “Woman’s Own”: “There is no society”, não havia sociedade, mas apenas pessoas individuais. Consumidores guiados pela maximização da satisfação e a quem o seu egoísmo levaria o mundo a progredir.
Três décadas depois destas palavras, a destruição do Estado Social e dos mecanismos que configuravam a possibilidade de uma ascensão social, como o ensino e a saúde, e a eliminação sistemática dos direitos sociais, em prol de supostos direitos individuais, deixaram um lastro de destruição, atomização das pessoas, e terraplanagem dos sindicatos e partidos do movimento operário que corporizavam e davam voz a muitos setores da população.
O caos que vivemos hoje nas ruas de Paris, a expandir-se para todo o mundo, é herdeiro deste processo político que destruiu as políticas keynesianas que tinham garantido uma repartição mais equitativa do rendimento, nos 30 anos de ouro do pós-guerra, e um contrato social que integrava sectores importantes das classes populares. Esse consenso social – numa altura em que havia uma concorrência entre o Ocidente e o bloco socialista – era uma forma de evitar crises, rupturas e revoluções. O fim da União Soviética significou em grande parte o fim da necessidade premente de as elites capitalistas pagarem a paz social.
“There is no alternative”, rezava Thatcher, na sua época, naquilo que ficaria conhecido como TINA. “Il n’y a pas d’alternative”, garantia, ufanista, Macron, em 2014. Cortes sociais, privatizações e flexibilização das normas laborais tornaram-se panaceias universais. A situação atual não é fruto da falha da globalização, mas do seu sucesso, garante, no Guardian, o geógrafo Christophe Guilluy: “Em décadas recentes, na economia francesa, europeia e dos EUA, continuou a crescer a riqueza para benefício dos mais ricos. O problema é que ao mesmo tempo o desemprego, a insegurança e a pobreza também cresceram”.
Nesse sentido, o presidente francês, fazendo-se arauto de uma modernidade que permite cortar os impostos aos mais ricos, aboliu a taxa de solidariedade, cortando 4 bilhões de euros de impostos dos mais ricos, e aliviou em 41 bilhões por ano os impostos das grandes empresas e multinacionais. No último orçamento de 2018, cortou ainda mais 10 bilhões de euros nos impostos sobre capitais. Tudo isso ao mesmo tempo em que faz pagar os custos da “transição ecológica” aos mais pobres, que entre 2008 e 2016, perderam 14,5 bilhões euros de poder de compra.
Um esforço tanto mais discutível, quando se sabe que apenas 19% dos 38 bilhões de euros recolhidos nessas taxas estão afetados à chamada “transição ecológica”, uma desculpa ecológica que esconde, de fato, os gigantescos cortes de impostos aos ricos e às empresas.
A pauperização e a marginalização da maior parte da população, conjugada com a ausência de forças políticas e sociais que deem voz a essas camadas, criou o magma para uma explosão violenta e descontrolada. São fatores que multiplicam essa aparente fúria irracional: a pobreza, a atomização social e a passagem da antiga esquerda para a aceitação implícita dos valores liberais que colocam acima dos direitos sociais os chamados direitos individuais.
“Tivemos perante nós a extrema-direita de manhã, a extrema-esquerda depois do almoço e os jovens dos subúrbios ao cair da noite”, relata um policial que garante nunca ter visto na rua e à porrada quase toda a gente no mesmo dia. Resultado: mais de 9.861 granadas foram lançadas, só em Paris, nomeadamente as famosas GLI-F4, que contêm 25g de TNT. A França tem a duvidosa honra de ser o único país na União Europeia que usa granadas explosivas contra manifestantes, tendo essa prática custado a mão a um manifestante nos recentes protestos.
Um caos de protestos, com carros de luxo incendiados, carros normais em fogo, o arco do Triunfo grafitado e lojas pilhadas. “Vi um tipo fugir com um frigorífico sobre uma bicicleta, outro levava uma betoneira, não consigo perceber para que é que aquilo lhe vai servir”, confessa um policial surpreso.
Nuno Ramos de Almeida é jornalista português, editor-executivo do Jornal I (www.ionline.pt).
Texto retirado do portal Outras Palavras.