Correio da Cidadania

Entrevista com Ely Macuxi, autor de Ipaty: o curumim da selva

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Vitor Cei é professor de literatura da Universidade Federal de Rondônia e coordena o projeto de extensão Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas.

A iniciativa almeja mapear a literatura brasileira do início do século 21 a partir das perspectivas dos próprios escritores. Para tanto, objetiva-se a organização e publicação de um livro de entrevistas com parcela representativa dos autores brasileiros em atividade.

O Correio da Cidadania publicará algumas destas entrevistas. A primeira delas pode ser lida a seguir, com Ely Macuxy, professor e escritor indígena, autor de Ipaty: o curumim da selva, publicado em 2010.

Concedida entre outubro e novembro de 2017, com a colaboração de Luana Pagung e Julie Dorrico

Cada escritor possui um estilo e método de trabalho próprio. Você poderia comentar sobre as opções formais que norteiam seu projeto literário?

Ely Macuxy: Minha rotina de trabalho não deve ser diferente da maioria dos escritores, mantenho a porcentagem de 90% de trabalho e 10% de inspiração. Rotineiramente, escrevo uma ou duas laudas por dia, mas existem momentos em que eu tenho que responder aos meus personagens e fico um ou dois dias escrevendo. Como venho de tradição oral, estou sempre atento às histórias que são contadas, delas retiro personagens e enredos. Muitas dessas histórias vêm em sonhos e, assim que desperto, faço o registro.

A partir daí, inicia-se o processo de ordenamento e tradução do sonho para, então, fazer a síntese da história; em seguida, amplio em capítulo, tentando visualizar o início, o meio e o fim da história... Convencido de que a história é razoável e coerente, elaboro alguns diálogos, colocando os nomes dos personagens e suas características físicas e psicológicas, os contextos, paisagens... Enfim, é uma produção literária comum a quem escreve e quer transmitir mensagens.  

O tempo de elaboração e conclusão dos meus textos é aberto e não corresponde a uma sistematização cronológica, metódica de pesquisar e escrever. Escrevo nos momentos livres, já que me dedico à docência e assessorias antropológicas no Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena do Amazonas – CEEI/AM.

Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor?

Quando vivia na aldeia, a língua portuguesa e sua escrita era um símbolo de desejo, sonhava em falar e escrever como os brancos (não índio) que por lá estavam. Nesse momento da vida, ainda não imaginava o que ela representava para integração e aniquilamento de nossa cultura tradicional.

Posteriormente, entrei na Igreja Católica, na condição de seminarista, passando a ter acesso aos conhecimentos, tidos como universais, a ciência e a filosofia. Nesse processo, dois aprendizados: ler e escrever. Não servia para ser padre, era muito rebelde, disse-me o reitor.

Então, fora da vida religiosa, fui ser professor de História e Filosofia, o que me obrigava a escrever e contar histórias. Paralelamente, atuava no Movimento Indígena Organizado, elaborando e negociando a documentação de nossas pautas por demarcação e homologação das terras indígenas.

Numa dessas viagens, em São Paulo, encontrei o Daniel Munduruku, que me convidou para contar uma “história de índio” em um evento literário e, neste, havia um representante da Editora Paulinas - que gostou tanto da história e convidou-me para publicá-la. Desse dia em diante, começaram a me chamar de escritor.

Considerando que existem diferentes perspectivas sobre o que é literatura, em diferentes tempos e espaços, como você define a literatura indígena? Que elementos a diferenciam da literatura ocidental? Que função você identifica nela?

As premissas iniciais sobre as diferentes perspectivas do que vem a ser Literatura no ocidente também se aplicam à realidade indígena, sendo difícil enquadrá-las conceitualmente em sistemas ou correntes literárias. Falamos de uma realidade antiga – a presença indígena na literatura – mas de um movimento relativamente novo no contexto da literatura brasileira, pensada e escrita por autores de origem indígena. Não sabemos exatamente qual é o seu papel, nem de qual corrente ela se aproxima em um quadro conceitual mais geral dentro da Literatura.

Mas, creio que os críticos literários devem ter algumas preocupações ao tentar enquadrá-la em algum sistema, ou estrutura, como entender que se está analisando textos escritos por representantes de povos, de diversidades, com concepções de mundo e de escrita completamente diferentes da cultura geral brasileira. Que existem outros tipos de simbolismo e grafias, outras formas de registrar as histórias além da oralidade e da escrita que se convencionou no ocidente. É fácil perceber isso nos vestígios deixados pelos antepassados indígenas, nas pinturas corporais, nos desenhos que enfeitam nossas malocas, formas e estéticas da cultura material.

Considerando que uma das dimensões da Literatura é expressar os valores e verdades de seu tempo, recebendo o corolário ideológico de seus contextos, interesses de seus produtores e divulgadores, em muito depende das versões de quem conta e como se contam as histórias. Assim, é preciso considerar – salvaguardando os ideários e as boas intenções de muitos escritores e correntes literárias – que houve muitas produções que distorceram nossas histórias, traduzindo-as como mitos, lendas, ou parlendas, naturalizando-as como folclore; outros, maldosamente, traduziram-na como ficção e magia... Equívocos que alimentaram preconceitos e discriminações ao longo do tempo, reificação de imagem de povos detentores de cultura primitiva, moradores de ocas, caçadores, coletores, falante de línguas estranhas, eternos moradores das florestas.

Assim, o movimento que hoje é denominado de “Literatura Indígena” é uma forma de expressão de um coletivo de escritores de origem indígena cuja função é dialogar com a sociedade nacional por meio da escrita, levando ao conhecimento de todos histórias mais reais sobre nossos povos, nossos conhecimentos desenvolvidos ao longo de séculos, filosofias e ciências; formas coerentes e consistentes de adaptabilidades aos ecossistemas, sociabilidade entre todos os seres, assim como a harmonização entre cultura e natureza enquanto formas simétricas de complementariedade sociais e espirituais.

Podemos, assim, dizer que a Literatura Indígena é diferente por abranger textos escritos por autores indígenas, mas – sobretudo – por trazer entre suas linhas a mensagem de vozes ancestrais, ensinamentos, conhecimentos, valores, riqueza cultural que orienta a forma de viver de 305 povos que, hoje, sobrevivem no Brasil.

É uma Literatura de resistência porque escreve sobre um segmento estigmatizado historicamente, violentado em seus direitos enquanto povos tradicionais, que continua sofrendo com as invasões de suas terras, destruição de seus ecossistemas... A Literatura Indígena é filosófica porque escreve sobre modelos de homem e de sociedade, valores, ética nas relações entre os seres vivos; é uma cultura literária porque expressa, pela escrita, formas variadas de linguagens, estéticas, paisagens, histórias e poesias.

O Brasil tem como um dos grandes desafios a democratização do acesso à literatura e, por consequência, a tarefa educativa de formar leitores. Como você compreende o papel da literatura na formação da criança? E, como autor de literatura infantil, quais são suas sugestões aos educadores que pretendem trabalhar com suas obras?

Considero fundamental a presença da literatura na vida da criança, pois delas é que vêm as primeiras compreensões mais sistematizadas do mundo, das pessoas, manifestações de sonhos e desejos. Creio que o hábito da leitura na infância ajuda a despertar, na criança, o senso crítico, além de auxiliar o aprendizado, tornando criativas e seguras, no escrever e no falar, os modos de se colocar no mundo. Nesse primeiro momento, dizem os especialistas, a base do pensamento é a linguagem e a literatura fornece, à infância, alimentos primordiais para seu desenvolvimento: “palavras significantes e imaginação”.
    
Em suas leituras, as crianças ressignificam a história e personagem, reinventam e dão uma tradução muito particular que as ajudam a enfrentar seus medos e a realizar seus desejos... Tamanha responsabilidade deveria sensibilizar os governos e a sociedade em geral para o comprometimento com a oferta e promoção da leitura. Infelizmente, sabemos que isso não é prioridade enquanto política pública, limitando-se a ações pontuais ou de parte dos segmentos que trabalham com literatura, mas sem continuidade e acompanhamento em longo prazo...  

Democratizar o acesso à leitura ou formar leitores é um processo embrionário que deveria começar nos lares, aperfeiçoado e motivado nas escolas e em cada canto de rua, das pequenas e grandes cidades. No entanto, isso seria resultado de uma política que enxergasse, na cultura e na educação de qualidade, uma necessidade tal qual o alimento que supre a fome e garante a vida. Não enchemos a barriga, mas alimentamos a alma, a criatividade, os sonhos, desejos, liberdade, comprometimentos sociais, cidadania...

Destaca-se, no entanto, que em contexto indígena existem especificidades, diferenças quanto a entendimento do que vem a ser criança, relacionado às concepções de mundo, cosmologias de cada povo. O universo da criança é amplo e contínuo, como as florestas, rios e montanhas, considerando os lugares de aprendizagem, ritos, regras, lazer e trabalho. Na escrita, o simbólico se dá por meio das imagens criadas na oralidade, histórias contadas, percepções que ela retira dos vários eventos que participa em sua casa, nas festas, nas brincadeiras e rituais – que começam antes mesmo dela nascer – nas rezas, nos cantos, conversas e resguardos.

O espaço de aprendizado dos primeiros anos de vida é a sua casa, sua centralidade, onde se aprende a língua, valores e verdades de sua cultura. A aldeia, ou maloca é a extensão de sua casa, onde todos cuidam, ensinam e vigiam. Embora, existem povos que já estão mais ocidentalizados, sofreram a intervenção cultural dos não indígenas, aldeamentos onde a cidade já chegou a seus terreiros, sua formação e educação já são escolares e não se diferenciam muito de uma criança da cidade. Outra realidade são as famílias de indígenas que vivem na cidade, no urbano. O esforço destas é de como manter a tradição cultural indígena em ambiente onde a língua de dominação é a língua portuguesa. Nesses contextos apresentados, enfrentamos outros desdobramentos, quanto à idade certa para a criança ir à escola, à idade para aprender outras línguas...

Aos colegas professores sugiro leitura, como acabamos de registrar, sem leitura não temos nada a ensinar, literalmente. Para nós professores a leitura tem de ser nosso alimento diário. Através dela pode-se aprender sobre as histórias, a diversidade e a especificidade dos povos indígenas no Brasil. Quanto à leitura de minhas obras sugiro que não se perca a fluência, o ritmo, o humor que tento dar aos enredos. Não são histórias de medo, terror e, sim, de estripulias, molecagem, diversão e alegria, bem próprias do mundo da criança.

O curumim gosta do engraçado, de sorrir, de se alegrar. Se os educadores conseguirem, antes de começar a contar a história, fazê-las viajar em seus imaginários para dentro das florestas, das aldeias, sentirem o cheiro das árvores e flores, o barulho dos rios, os assobios dos pássaros, entre outros animais, as crianças poderão usufruir de ricas experiências sensoriais que a ajudarão a compreender e a enxergar que as histórias de curumim são boas e são legais, ensinam a brincar e ter responsabilidades. Histórias que aprendi e vivi na minha Maloca enquanto curumim, no Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima.

No livro Ipaty: o curumim da selva, as ilustrações de Mauricio Negro compõem perfeitamente a obra. Após essa experiência, você percebe mudanças em sua maneira de pensar e criar relações entre imagem e linguagem verbal?

Realmente, o livro editado e publicado pela Editora Paulinas é uma graça dos deuses. Fiquei muito feliz com o sucesso que essa obra obteve... Passados mais de cinco anos da publicação, ainda hoje recebo cumprimentos... Sempre agradecendo ao Mauricio Negro que compôs e propôs uma leitura do texto através das imagens, permitindo uma feliz simbiose, uma perfeita tradução entre o imaginário indígena contido no texto e sua significação visual, tendo como fundo a paisagem das serras de Roraima.

Uma das peculiaridades da literatura infantil e a que diferencia: a ilustração - a “representação imagética”, outro olhar sobre o texto. Essas visualizações, as cores e personagens induzem a um primeiro olhar e condicionam outros, possibilitando leituras e interpretações novas. Por isso, a necessidade de uma perfeita simbiose entre o texto e a ilustração.
            
Tal experiência enriqueceu minha percepção do simbólico. A relação da escrita e da imagem em texto tido como infantil permitiu observar outras situações de realidades que se fundem, permitindo enxergar horizontes mais amplos de compreensões e percepções, tornando mais lúdicos e poéticos a forma literária da escrita e da aprendizagem da língua.

Porém, entendo que essa relação é complexa e de difícil sistematização, uma vez que falamos de duas realidades distintas. Uma vez editadas e submetidas a edições e traduções, podendo ser a realidade simplificada, ou mesmo distorcida, somente para atender as ansiedades mercadológicas, afastando-se do conjunto escrita-imagem-realidade como primazia da estética dos livros indígenas. Não foi o caso do Ipaty: O Curumim da Selva.

Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você comentasse sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária – sobretudo de autoria indígena – contemporânea.

Certamente não tenho fundamentos suficientes para falar sobre o panorama atual da literatura brasileira e sua importância na reflexão sobre a conjuntura nacional em que vive o Brasil hoje. Proponho fazer apenas relatos de algumas impressões, sem aprofundamentos e discussões mais qualificadas para o assunto. Atualmente, reduzo minhas leituras às referências bibliográficas do Curso de Antropologia Social (PPGAS/UFAM), que voltei a frequentar; aproximando-se da literatura, porque um texto etnográfico tem que ser bem escrito, visando levar informações a um público sobre a cultura e a tradição indígena na cidade de Manaus/AM. Dentre eles: Louis Dumond. O individualismo: uma perspectiva antropológica da sociedade moderna; Philippe Descola: La selva culta simbolismo y praxis en la ecología de los Achuar; Edgardo Lander. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais...
        
Meu entendimento é de que a literatura se apresenta como registro, recriação ou reprodução da realidade social, estando a reprodução da realidade calçada sobre a perspectiva do autor em um processo dialógico entre ficção e realidade. Não há dúvida que na literatura está o verdadeiro arcabouço intelectual da humanidade, o deleite da leitura, a imaginação, a criatividade, a interpretação, sendo o alicerce de todos os elementos que levam à produção de conhecimento intelectual. Porém, essas referências não estão soltas no mundo, de forma aleatória; ao contrário, são elaborações históricas e ideológicas que retratam visões de mundo e suas fronteiras nacionalistas, globalizações comerciais e mercadológicas. A realidade é mais perversa do que os enredos e personagens de nossas histórias fantásticas, vindas de nossas florestas e aldeias.
        
O que vejo é que no Brasil não existe uma política pública que possibilite as editoras e aos escritores um equilíbrio de compra, venda e distribuição de livros. Certamente, se houvesse essa preocupação, haveria contrapontos ao controle que exercem meia dúzia de empresas/editoras sobre o mercado editorial brasileiro. A produção, a venda e a distribuição de livros brasileiros seguem a lógica internacional de mercados, acelerando a entrada e saída do país no mercado globalizado do livro e uma aproximação de mão-dupla entre os escritores brasileiros e estrangeiros. Esses empreendimentos comerciais no universo da literatura impõem limites, controle sobre o que deve ser produzido ou não. Agem para direcionar e impor a “boa literatura”, os “bons escritores”, elegendo quem deve ser ou não premiado, constituindo “ranqueamento” do que deve ser comprado ou não...

Ieda Magri (UFRJ) comenta que a “autonomia hoje está fortemente ameaçada de uma maneira totalmente nova pela interpenetração do mundo do dinheiro no mundo da criação artística” e que “o domínio ou o império da economia sobre a pesquisa artística ou científica exerce-se também no interior mesmo do campo através do controle dos meios de produção e de difusão cultural e mesmo das instâncias de consagração”.

Felizmente, concluía a autora: [...] alguma literatura não precisa de defesa porque o mercado se interessa por ela e rege, inclusive, sua produção; entretanto, alguma outra literatura precisa de defesa porque o mercado não está interessado em sua produção e difusão. Essa literatura outra continua sendo escrita, mas nem sempre pode ser publicada e raramente atravessa os muros nacionais, ficando pouco tempo nas livrarias antes de ser destruída (1).  

O comentário acima é para ajudar a pensar o contexto em que “Literatura Indígena” se estabelece no enredo da literatura brasileira. A literatura produzida por autores indígenas é tão antiga quanto o movimento do indianismo consagrado na literatura brasileira. Porém, somente nos últimos dez anos ganhou notoriedade nacional, obtendo atenção do poder público, de organizações não governamentais e, sobretudo, do mercado editorial.

Ressaltando todo o seu apelo em defesa da causa das minorias, reconhecimento cultural, políticas afirmativas dos povos indígenas, são poucos os escritores indígenas que publicaram mais que cinco livros no Brasil; somente três escritores receberam prêmios nacionais e dois premiações internacionais. Embora haja uma exceção, cujo autor publicou, por seu esforço e mérito, mas de 50 títulos, num período de dez anos. A maioria de nós, de regiões periféricas, ainda mingua atrás de quem publique nossos textos e os considere como literatura. Isso tem ocorrido em função da lógica apontada acima: o mercado. Que prioriza ações – publicações, divulgações, promoções e eventos literários – em regiões onde o poder aquisitivo de suas populações permite as aquisições de livros.  
      
Possivelmente deva haver outros explicações e recortes para explicar a atenção e o interesse do mercado editorial por temas ligados aos povos indígenas. Mas, acompanhei alguns processos que nos dão um entendimento. Após décadas de intensas lutas e organização dos povos indígenas pela demarcação e homologação de suas terras, respeito à cultura e suas línguas, o Estado Nacional Brasileiro reconheceu os direitos e destacou na Constituição Federal do Brasil de 1988 um conjunto de artigos específicos em proteção da cultura indígena.

Dessa forma, construiu um conjunto de políticas, afirmando esses direitos, dentre as quais a política de Educação Escolar Indígena, destinando aos seus membros todo o processo de elaboração, produção e divulgação de seus referenciais pedagógico, didático e técnico. Neste universo, o livro didático e paradidático. Abriram-se, dessa forma, no Ministério da Educação e Cultura (MEC) licitações públicas para editoras interessadas em prestar serviços, ou venda de livros para as escolas indígenas.
         
Em seguida, abrem-se linhas de apoios financeiros no Ministério da Cultura - MINC (Editais) para apoio a publicação de livros com temática indígena e afrodescendentes; apoios a empreendimentos literários, feiras e mercados de livros... Em 2008 é criada a Lei nº 11.646, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” no Brasil, havendo necessidade de novas edições de livro didático em todo o país. Por último, o MEC lançou o Programa Nacional do Livro Didático Indígena – PNLDI, ainda em fase de conclusão.
       
As médias e pequenas editoras, “de olho no filé”, não pensaram duas vezes e saíram publicando a toque de caixa textos escritos por autores indígenas; nesse processo de descobrimento, perceberam que a literatura também tinha um apelo mercadológico interessante, o simbolismo indígena, temas ligados à diversidade cultural, índios defensores da natureza; a ideia de vitimização de seus membros; habilidade nos discursos e nas contações de histórias. Em seguida, constituíram-se premiações nacionais, stands e seminários de literatura indígena na Feira Nacional do Livro Infanto-juvenil do RJ, financiaram premiações regionais, nacionais e internacionais de livros, injetaram recursos para enviarem escritores indígenas às feiras além-mar: Bolonha, Frankfurt, França... Bem, você percebe que a história é longa e difícil de sintetizar.
       
Que tudo isso teria que acontecer enquanto propósito comercial é indiscutível, afinal, nós indígenas que escrevemos e publicamos livros, queremos também ganhar dinheiro, destaques, notoriedade nacional e até internacional. Afinal, como qualquer outro escritor, trabalhamos muito para estar no estágio cultural e social que nos encontramos.
        
Mas, então o que nos faz diferentes de outros escritores? Sim, a cultura indígena e seu universo simbólico diferenciado? Diferente de quê? Eis aí o peso de nossos textos, tidos como expressão indígena. Os escritores indígenas têm de ter a responsabilidade de não cometerem os erros do passado, o cuidado para não “folclorizar”, ou infantilizar nossas histórias – sendo elas expressão do nosso cotidiano, de crenças e valores de nossos povos.

Os termos resistência ou diversidade cultural não são apenas conceitos que justificam a especificidade dos textos indígenas, palavra da moda, mas uma literatura que expressa realidades distintas, de riquezas de conhecimentos e costumes; mas também histórias de sofrimento, espoliação, expropriação, extermínios, etnocídios e apropriação de seus territórios por mineradores e fazendeiros.
       
Mas, onde é que ficam os indígenas – os aldeados – nesse enredo que estou descrevendo? O que é a Literatura Indígena – era a pergunta inicial – se quem escreve, escreve do centro do Rio de Janeiro, São Paulo, Manaus, Belém? E como fica a divisão de benefícios, advindo das histórias tradicionais, elaboradas e construídas coletivamente? A quem realmente pertence o direito autoral? Muitas teses e dissertações já foram escritas sobre a “Literatura Indígena”, quais delas se refeririam às obras literárias produzidas coletivamente no interior dos cursos de formação de professores indígenas?

Quem é que vai publicar as Dissertações e Teses que estão sendo defendidas e refletem sobre nossas realidades? Alguém poderia perguntar, com menos deslumbre, que implicações esse tipo de literatura têm para as crianças aldeadas, falantes de suas línguas e praticantes de suas culturas? Quais são os crivos e os controles sobre referenciais genéricos e homogeneizador contidos nessas obras que também estão chegando às aldeias, impostas pelo PNLD, Editoras e distribuidoras de livros? O debate entre oralidade e escrita em contexto indígena já é uma questão superada, ou existem desdobramentos nos encontros interculturais, onde a cultura majoritária se impõe?
         
Estamos falando de povos tradicionais, povos espoliados e negados na história deste país; não custa lembrar que o principal mecanismo de integração e pacificação dos povos indígenas foi a escrita, através das escolas e igrejas que a promoviam a civilização e o letramento em língua portuguesa, uma literatura que os desvirtuava e impunha a cultura de seus colonizadores, modificando hábitos e costumes. Advém desse processo a insegurança e medo, incertezas nesses povos quanto aos seus referenciais de mundo, suas tradições e língua. Essa é o lado perverso da integração. Creio que são questões que precisam ser discutidas, mais pensadas, antes de encontrarmos um lugar distinto ou mais confortante no conjunto da literatura brasileira.

Hoje, no Brasil, podemos perceber um crescente número de escritores indígenas. Mas também vemos escritores não indígenas buscando elementos tradicionais da cultura ancestral para criarem obras de ficção, sendo que muitos desses escritores têm recorrido a pesquisas antes de concluir suas obras. Qual é a sua opinião sobre esses novos escritores?

Seria bom que os referidos escritores assumissem a condição indígena, adotassem uma de nossas culturas e defendessem nossas causas, por demarcação e vigilância de nossas terras, qualidade no atendimento à saúde e educação, desenvolvimento sustentável para nossas comunidades. A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre povos indígenas e tribais, adotada em Genebra em 27 de junho de 1989, reconhece a autodeclaração como um elemento definidor da identidade de pertença.

Ou seja, aqueles que se sintam contemplados podem requerer sua condição indígena, desde que passem a morar numa comunidade e os demais o reconheçam como membros da comunidade e povo. Portanto, nossa concepção de mundo é de que todas as pessoas tenham acesso aos bens; não pensamos enquanto indivíduos, mas como seres coletivos, inclusive a cultura.

Se o autor pretende usar nossas referências para criar suas obras, que ele tome cuidados com algumas condições para não reproduzir ou transformar nossa cultura em folclore; deve dialogar com representantes do povo em que ele está tirando as referências, ter anuências, muito cuidado como se fala e como se escreve sobre os povos indígenas. O que não pode é um cidadão se apropriar de referências indígenas sem nenhuma autorização, sobretudo quando se tratar de conhecimentos tradicionais. Se assim o fizer, viola o bem público de um povo, é crime lesa cultural, passivo de punições judiciais, além de ferir princípios morais e éticos. Isso não é certo.

Mas a questão chama atenção para uma das especificidades da “Literatura Indígena”, o sentido de pertença étnica. Nosso texto fala de nossas histórias, nossos heróis e mitos de criação, nosso cotidiano, sociabilidades. Falamos que ela é uma literatura de resistência, porque tentamos fazer dela uma ferramenta de promoção da cultura indígena, registro de nossos conhecimentos, divulgação de nossas crenças, ciências e filosofias, denúncias e reinvindicações de direitos e acesso às políticas públicas. Como alguém que não seja indígena, não acredita em nossas verdades irá defender nossos valores?

Como o racismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita?

No Brasil, o racismo é filho da ignorância e do desconhecimento. A educação e literatura produzidas não deram a chance ao povo brasileiro de conhecer as reais experiências produzidas pelos povos indígenas ao longo de milhares de anos. Pelo contrário, influenciadas pelas concepções coloniais, de negação e expropriações de territórios e bens culturais, forjaram imagens e concepções negativas, estigmatizando esses povos como gente primitiva, selvagens, gente feia, bêbada, “esperta” demais, pitiú, sujo, entre outros perjúrios – preconceitos hoje mantidos por políticos regionais ligados à bancada ruralista, representante do agronegócio no Congresso Nacional.
 
Sabemos que em setores específicos da economia e da política brasileira esses atos de negação e perseguição não são atos de antipatias, discordância e desarmonia entre indivíduos... É muito mais sinistro, pois são estratégias de poder e de controle social, cuja finalidade é o assédio sobre seus territórios e riquezas. Tratam como primitivos e dão a conotação de preconceito para escamotear e justificar a insaciável fome por madeira, minério e pastos.

O Estado nacional carrega em seus ideários a ideia de pacificar e integrar os povos indígenas à comum-união dos brasileiros, juntá-los aos coletivos de pobres e miseráveis nas cidades brasileiras, mantendo a política de “tutela” e dependência, sem gerar a autonomia e segurança que viria com a demarcação e homologação das terras indígenas.  

Infelizmente, perseguição e morte se acentuaram nos confrontos entre índios e não índios, poucos divulgados na mídia nacional e nas redes sociais; as elites, sobretudo a do agronegócio, mantêm seus aparelhamentos bélicos, militar e cartorial em seus projetos de extermínios.

As estratégias vão do confronto direto, com assassinato e criminalização de lideranças indígenas, expulsão dos povos indígenas de seus territórios, cooptação de lideranças, desde a apresentação de projetos desenvolvimentistas à persuasão através de escolarização e projetos sociais.
 
Esse é o quadro de fundo disso que recebe o nome de preconceito ou discriminação. Portanto, meu caro, escrever e divulgar, dentro desse contexto, é muito complicado. Lamentavelmente, chamar alguém de índio na maioria dos lugares ainda é uma ofensa de morte. Afinal, ninguém quer ser primitivo ou selvagem. Paradoxalmente a essa realidade, em outros contextos, ser indígena, pintar o rosto, colocar um cocar e colar, pintar a cara de urucum e jenipapo dá o maior ibope.

Por isso é que se vê muita gente fazendo uso desses ornamentos, até altas autoridades políticas e literárias; outros se apropriam indevidamente para ganhar prestígio e dinheiro, simbolismo que encanta boi e carnavais. Seria a literatura uma dessas passarelas? Depende de qual literatura estamos falando, quem fala ou de quem fala... Assim, o racismo ou preconceito atrapalha a literatura Indígena? Depende do contexto, ou para que fim essas obras se destinem.   

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores indígenas no Brasil de hoje?

Para quem mora no eixo Rio, São Paulo nenhum, a não ser os problemas naturais de promover e divulgar as obras. O quadro de recessão econômica pelo qual passa o Brasil não é dos melhores e tem dificultado a publicação de novas obras e sua divulgação no país... Para nós, indígenas que vivemos na região norte do país, a situação é bem pior. Longe dos grandes centros, não temos visibilidade, não temos como publicar novos textos, não participamos das feiras nacionais, portanto, não vendemos...

Há dois anos estamos tentando congregar um conjunto de escritores indígenas, através de uma associação denominada Associação dos Escritores e Artistas Indígenas – Wewa’á, para articular e buscar apoios para publicações e divulgações de textos indígenas. Não é só uma questão de preconceito regional por parte dos promotores de incentivo à cultura, mas a falta de uma política livresca, de produção de leitores, de incentivo à leitura nos estados e municípios...

O Wewa’á tem por objetivo promover oficinas técnicas de leitura e produção de textos literários, promover intercâmbios entre escritores, realizar a feira do livro indígena no Amazonas – Flifloresta; buscar canais de interlocução com os governos e editoras e negociar os textos escritos por autores indígenas...

Você está escrevendo algum livro no momento ou possui projetos que envolvam outras linguagens?

Escrever é nosso oxigênio, ou escrevemos ou morremos. Para nós indígenas que vivemos na cidade a escrita e a literatura são nossos tacapes e bordunas; ela realmente pode se tornar um instrumento de promoção e defesa de nossas culturas. Mas, como um animal feroz, a escrita precisa ser domada, trazida para o nosso convívio como uma parenta próxima. Por enquanto, ela é apenas esperanças, uma possibilidade que precisa ser melhor apropriada, discutida, compreendida, para que seus efeitos ajudem a fortalecer nossos ideários coletivos enquanto povo e não estejam a serviço da colonização e integração.
            
Hoje estou escrevendo um texto denominado: O Segredo do Mindu, um texto que reflete a relação entre homem e natureza na Amazônia, traduzindo a ideias de que os dois polos são causa e efeitos da mesma humanidade...

Destaca-se que o Instituto Wewa’á promove shows, recital de poesias e exposição de artes indígenas, de produção e venda de artesanatos. Como militante político da causa indígena, estou sempre envolvido com outras linguagens...  

Há séculos as populações ancestrais do Brasil resistem aos “projetos de morte” e lutam contra as tentativas de fragilizar a proteção ambiental das florestas. Atualmente, presenciamos o desmonte da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o massacre das populações indígenas, especialmente no Noroeste do país. No Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade?

São muitos temas, questões que hoje colocam a humanidade ocidental sob suspensão: e agora Mané? Ou Melhor: “E agora, José  / A festa acabou / A luz apagou / O povo sumiu / A noite esfriou / E agora José, José para onde?”, do poeta Carlos Drummond de Andrade, musicada pelo compositor e cantor brasileiro Paulo Diniz. As perspectivas são as mais catastróficas possíveis, que vão da crise do capitalismo, tecnologias e excessos de quinquilharias e lixos a uma possível terceira guerra mundial.

Crises sociais e ambientais, controle e manipulações de todas as ordens, de genomas, células, sementes, princípios e valores, tudo relativizado sob a égide do capital e do mercado... Diriam os escatológicos: é o fim dos tempos. Neste momento em que escrevo estas palavras, escuto os noticiários que mais um maluco nos EUA entrou em uma Igreja e fuzilou 26 pessoas. Outro dia, outro maluco ateou fogo numa creche vitimando crianças; se mata, se morre, jovens, crianças, mulheres, negros, índios. Naturalizou-se e nem assusta mais... Somos vítimas desse contexto de barbárie.

Evidentemente, precisaríamos de mais tempo para tratar de tais questões. Posso dizer, sem medo de errar, que a humanidade chegou a este estágio de extremos paradoxos porque os doutos, da dita civilização, nunca quiseram conversar e ouvir os povos indígenas, nosso ancestrais, nossos sábios... Na verdade, amigo Vitor, a humanidade sempre foi assim, desde que o mundo é mundo.

As muitas tentativas de controlar e enclausurar o ser humano e suas tendências nunca funcionaram a contento. Em algum momento, os elos que amarravam e orientavam comportamentos e convivência, nos territórios e temporalidades, foram sendo superadas pela ideia de indivíduo, de pessoa que a polis ou Estado orientava, dominação e controle de seres sobre outros seres, esquizofrenicamente, até sobre a natureza, sem o medo de o céu desabar sobre suas cabeças.

O asqueroso Tracoar dominou mentes e desejos, faminto, extermina, quebra, envenena, queima, destroça, mata tudo que encontra a sua frente. Esse asqueroso verme tem o poder de encantar e persuadir, convencendo e carregando para sua enorme boca os desejos e esperanças. Os engolidos, por sua vez, são transformados em vermes menores e, excretados, contaminam outros, produzindo mais alimentos para as bocas grandes. Ou seja, no ocidente, aqueles que geram a violência, semeiam divisões e desperdícios, germinam os desejos e vontade de poder em suas crias, retroalimentando as condições e produções de suas espécies. Esse é um contexto de difícil solução, cuja solução levará algum tempo, certamente séculos para que se encontrem algumas saídas para se evitar males maiores.

Os Povos Indígenas fizeram outras opções sociais, estabeleceram regras coletivas de convivência e sobrevivência, mantiveram-se vivos e prósperos ao longo dos séculos e continuamos nos reproduzindo, no que pese todas as perseguições que continuemos sofrendo. Nossas questões não são essas trazidas pelo mundo civilizado, cartesiano, racionalista, científico e capitalista. Escolhemos outro caminho, outra forma de viver que não gerasse pobreza e miséria entre nós. Nossa existência é mercada pelo bem viver e pelo conviver.

A expressão indígena andina Sumak Kawsay, que significa Viver Plenamente, tornou-se mundialmente conhecida como “Bem Viver” e expressa uma alternativa ao catastrófico desenvolvimento atual e as crises que hoje o homem e as mulheres enfrentam.

A simplicidade do Sumak Kawsay vem dos seus princípios, que começam na vida cotidiana e acabam por mudar tudo, pois é o próprio sentido da vida, buscando “estar bem” com quem somos, com os que nos rodeiam e com quem nos nutre, a Natureza, que se expressa. Os 13 princípios da busca de equilíbrio são: saber nutrir-se do que é são, saber beber sentindo o fluxo da vida, saber dançar em conexão com o Universo, saber dormir entre um dia e outro, saber trabalhar alegremente, saber estar em silêncio meditativo, saber pensar com a mente e o coração, saber amar e ser amado, saber escutar a si, aos outros e à Mãe Terra, saber falar construtivamente, saber sonhar pra ter uma melhor realidade, saber caminhar sentindo-se acompanhado pelas boas energias e saber dar e receber.

Como é comum nas lógicas indígenas, a passagem de cada ser pelo mundo é vista a longo prazo e o sentido de comunidade é sempre presente. Honrar os bens comuns – sejam eles materiais ou sutis, como a água ou o ar e também os ritos e a cultura – é parte integrante do sentido da vida. Toda essa busca do essencial, desde as coisas mais simples, como os 13 princípios, até o vínculo sagrado com a Natureza, dá à vida um sentido de certo e errado, de importante e desimportante, que nos faz buscar a plenitude, naturalmente. O menos é mais e o simples é o caminho.

O Bem Viver torna-se político quando expande sua lógica para o sistema econômico, que deve ter bases comunitárias e ser orientado pelos princípios de solidariedade, de reciprocidade e de corresponsabilidade. Tudo isso só é possível em processos políticos de participação plena, de decisões compartilhadas.

As Constituições do Equador e da Bolívia, ao incorporarem a ideia do Bem Viver como base, inauguraram no mundo algo novo: os direitos da Natureza, onde os humanos não são o mais importante, mas mais um elo da Teia da Vida. Esse fazer parte, ao contrário de limitar nossa existência, a dignifica, por nos fazer ser aquilo que é nossa missão: jardineiros (as) da vida, cuidadores (as) da Terra. Escritores, poetas, ilustradores da boa vida.

Nós, povos indígenas, continuamos balançando nossos maracás, realizando nossos rituais, parishara, tomando nosso pajuarú, nosso caxiri, comendo nossas damorida, fumando nossos cigarros, fazendo festas e batendo nosso pé no chão; com os braços levantados tentamos segurar o céu, para ele não cair sobre nossas cabeças.

Devemos também agora fazer literatura, decantar e encantar através da poesia, remédios para combater o feroz Tracoar, barbárie que come e destrói a própria espécie, a paz e a esperança no mundo. Vamos nos juntar e ajudar a segurar o céu para que ele não desabe sobre nós.  

Alguma consideração final?

O antropólogo João Pacheco de Oliveira refere ao contexto atual dos povos indígenas no Brasil como povos do contato. Ele se referia a uma realidade já dita há muito tempo que não existe e nunca existiram povos “puro sangue”, sem influência e empréstimos culturais. Desde primórdios, o contato “interétnico” é uma constante entre todos os povos, trazidos pelas guerras intertribais, relações comerciais e políticas. Fredrik Barth, na perspectiva da cultura, vai falar da etnicidade e fronteira étnica para compreender que somente no encontro entre as culturas é que se pode afirmar a identidade, as diferenças e especificidades.
             
Isso para comentar que uma das maiores agressões que se fez ao povo brasileiro foi a tentativa de apagar as memorias e referência indígena de sua cultura. O processo de embranquecimento e apagamento dessas memórias via aculturamento preconizava o afastamento da cultura primitiva e o surgimento de novas categorias regionais, como bugre, caboclo, ribeirinho, mais recentemente, homens da floresta. Essa acomodação satisfez os defensores do fim da “raça indígena”, via integração. Colocaram até a data dos anos 2000 como referência.

Mas nada disso aconteceu e a história demostrou que era impossível exterminar os povos indígenas. Pelo contrário, muitos povos começaram a ressurgir e pedir o reconhecimento enquanto povos indígenas por todas as regiões do Brasil. Hoje já não se pode negar sua presença em todos os estados da federação. São muitas as contribuições que os povos indígenas têm ofertado à cultura brasileira na alimentação, no vocabulário, nome de cidade, ruas, pessoas, escolas, na cultura material e espiritual, remédios, nas danças e festejos comunitários... Agregamos valores a um importante setor da economia das cidades, o Turismo, na produção e venda de artesanatos; geramos renda e riquezas.   
 
A literatura indígena tem que ter a missão, o compromisso de levar ao conhecimento da sociedade brasileira a existência e permanência desses povos no território brasileiro, demostrando que são povos, nacionalidades, com cultura e línguas diferenciadas, com ricas e interessantes experiências sociais, cheios de sabedorias, de filosofias e ciências que precisam ser socializadas como todos os brasileiros.
 
Não somos pobres coitados, vítimas, ignorantes, miseráveis. Menos ainda, descendentes de culturas mortas, subcultura, folclore, lendas, magia. Não somos canibais, feras, bêbados e intrusos – somos povos, gente, inteligente e perspicaz como qualquer ser humano. Não somos índios ou indígenas, somos povos Ticuna, Povo Kaigangue, Povo Wapixana, Povo Macuxi, Povo Tuyuka. Segundo dados do Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 2010 são de 896,9 mil indígenas, representando 305 povos, com cerca de 274 línguas faladas.

Nota:
1) MAGRI. O mapa da literatura brasileira atual no contexto da América Latina. http://educacaopublica.cederj.edu.br/revista/artigos/codigo_35724

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