Correio da Cidadania

O neofascismo já é realidade no Brasil

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Do antipetismo de 2015 ao neofascismo de 2019 o caminho não é tão tortuoso / AFP

Em artigo que publiquei no mês de janeiro no portal Brasil de Fato, polemizando com um texto de Atilio Boron publicado também neste jornal, sustentei que não se pode, ao contrário do que afirma Boron, descartar a hipótese de que essa nova direita e seu governo sejam fascistas ou, mais precisamente, neofascistas. Boron havia afirmado que o fenômeno fascista seria irrepetível porque o seu principal protagonista, a burguesia nacional, teria desaparecido. Argumentei, então, que ao falar em Estado fascista fazemos referência, em primeiro lugar, à forma de Estado e não às classes e frações de classe específicas que participam do bloco no poder. Dentro de uma mesma forma de Estado – seja a democracia, a ditadura militar ou a ditadura fascista – são possíveis diferentes blocos no poder.

A ditadura fascista num país imperialista não terá o mesmo bloco no poder que uma similar sua implantada num país cuja economia e cujo Estado são dependentes. Isso significa que, teoricamente, é possível contemplar a hipótese de que um eventual Estado fascista no Brasil poderia vir a servir ao capital internacional, não à burguesia nacional como sucedeu no fascismo clássico, e, para tanto, aplicar uma política neoliberal e “neocolonial”. Fascismo, neoliberalismo e neocolonialismo não são excludentes.

A distinção entre forma de Estado e bloco no poder é fundamental. Porém, para caracterizar o neofascismo já em vigor no Brasil, é necessário mobilizarmos outras distinções conceituais. O fascismo é uma das formas ditatoriais do Estado capitalista, mas essa forma supõe a existência de uma ideologia, a ideologia fascista, e tal forma de Estado somente se torna realidade se houver um movimento social, o movimento fascista movido pela ideologia fascista, que assuma a luta para a sua implantação.

Os fascistas também fazem cálculos táticos. Eles podem, numa determinada conjuntura, abrir mão ou postergar a luta pela implantação de uma ditadura fascista. Segundo Palmiro Togliatti no seu livro Lições sobre o fascismo, foi exatamente isso que fez Mussolini quando assumiu a chefia do governo em 1922 e foi o que ele continuou fazendo pelo menos até 1923. Ou seja, teoricamente é possível admitir que um movimento fascista, movido pela ideologia fascista, chegue ao governo e não implante uma ditadura fascista.

Pois bem, no Brasil de hoje temos a ideologia neofascista, o movimento neofascista, um governo no qual os neofascistas disputam a hegemonia com o grupo militar – esse último apegado a um autoritarismo mais propenso a outro tipo de ditadura – mas não temos um regime político fascista – o que temos é uma democracia burguesa deteriorada e em crise.

As definições são sempre problemáticas, mas podemos arriscar a afirmação de que, nas suas características mais gerais, o fascismo é um movimento reacionário de massa, enraizado em classes intermediárias das formações sociais capitalistas e movido por um discurso superficialmente crítico da economia e do Estado burguês. É um movimento que chega ao poder, não como representante de tais classes intermediárias, mas, sim, após ter sido politicamente confiscado pela burguesia ou uma de suas frações com o objetivo de, apoiada nele, superar uma crise política e implantar um governo antidemocrático, antioperário e antipopular. Essa dinâmica, com detalhes que não poderemos abordar aqui, prevaleceu tanto no fascismo clássico quanto no neofascismo brasileiro – um estudo importante para se compreender o tipo de crise política na qual pode nascer a ditadura fascista é o livro de Nicos Poulantzas intitulado Fascismo e ditadura.

O fascismo tem por objetivo eliminar – e não simplesmente derrotar – a “esquerda” do processo político. “Esquerda” é um termo genérico e meramente indicativo. No fascismo clássico essa “esquerda” era composta por dois partidos operários de massa, o Partido Socialista e o Partido Comunista, partidos que retiveram para si a votação do operariado enquanto houve eleições livres na Alemanha e na Itália – o que contraria, diga-se de passagem, o mito segundo o qual o fascismo teria impactado indistintamente os “trabalhadores” ou as “massas”, como pretendem alguns estudos de psicologia social do fascismo. Já no neofascismo brasileiro, a “esquerda” a ser eliminada é o movimento democrático e popular que esteve, até aqui, sob a direção do Partido dos Trabalhadores, que, de há muito tempo, deixou de ser um partido de massa e se tornou um partido de quadros.

O inimigo do fascismo clássico ameaça abertamente o capitalismo, organiza partidariamente as grandes massas operárias e, por isso, exige do fascismo um partido também de massa para a ele se opor. Esse partido de massa foi um partido pequeno-burguês, que comportava também militantes e dirigentes recrutados em setores desqualificados da sociedade. Já o inimigo do neofascismo brasileiro não é uma ameaça aberta ao capitalismo, visa reformar o modelo capitalista neoliberal e se apoia, sem organizar politicamente, por sobre heterogênea parcela da população, típica dos países de capitalismo dependente, que podemos denominar “trabalhadores da massa marginal”.

Por isso, o neofascismo pode dispensar um partido de massa, pode mobilizar suas bases para lutas específicas pelas redes sociais, e é um movimento tipicamente de frações da classe média, além de militantes e apoiadores, como ocorreu com o fascismo clássico, em setores do lumpemproletariado – a respeito desse ponto, seria importante uma análise estritamente política da atuação das Milícias dos morros do Rio de Janeiro.

Acrescentemos que o movimento neofascista da alta classe média, mobilizado quando da pré-campanha eleitoral de Jair Bolsonaro já em 2016 e 2017, contou, desde o seu início, com a adesão de grandes e médios proprietários de terra principalmente das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste (1).

Se no fascismo clássico, o grande capital nacional, diante da crise dos partidos políticos que tradicionalmente o representavam, confiscou o movimento pequeno-burguês, apoiou-se nele, para implantar a sua hegemonia; no neofascismo brasileiro, foi o capital internacional que, tendo em vista a crise do seu tradicional representante no Brasil, o PSDB, tetracampeão em derrotas nas eleições presidenciais e potencial hexa, foi esse capital, principalmente o estadunidense, que confiscou, em aliança com segmentos da grande burguesia brasileira, o movimento da alta classe média.

Foi a alta classe média que tomou a iniciativa de iniciar a luta pelo impeachment, enquanto o PSDB dividido hesitava, e foi daquele movimento que surgiu o movimento neofascista. Cabe lembrar a mobilização, a partir de provocação presidencial, no domingo 17 de março do MBL, do Vem pra Rua, do Revoltados on Line, bem como de outros grupos que animaram as manifestações pelo impeachment, para protestar contra recente decisão do STF, alguns propondo até o fechamento daquela corte de justiça.

Do antipetismo de 2015 ao neofascismo de 2019 o caminho não é tão tortuoso. O capital internacional e segmentos da grande burguesia brasileira confiscaram esse movimento de classe média para, no caso do capital estadunidense e dos segmentos da grande burguesia brasileira a ele associados, perfilar o Estado e a economia brasileira ao lado dos Estados Unidos na disputa de hegemonia com a China.

Nos dois casos, no fascismo clássico e no neofascismo brasileiro, o principal do processo político resulta dos conflitos entre frações da burguesia – grande capital versus médio capital, no primeiro caso, burguesia associada e capital internacional versus a burguesia interna, no segundo – e também da intervenção política massiva de uma classe social intermediária – a pequena burguesia no fascismo clássico e a classe média no neofascismo. Essa dinâmica particular do processo político só pode ser devidamente compreendida se se tem em conta que nas fases mais avançadas do processo de fascistização, tanto no fascismo clássico, quanto no neofascismo, as classes populares vêm de seguidas derrotas e se encontram politicamente na defensiva – momentaneamente incapacitadas, portanto, para apresentarem alternativas políticas próprias e viáveis.

Considero que o neofascismo poderá ganhar a hegemonia no governo e vir a implantar uma ditadura neofascista no Brasil – embora eu não veja essa hipótese como a mais provável no momento. Há a possibilidade de a democracia burguesa deteriorada sobreviver ou, ainda, a possibilidade de sermos levados para uma ditadura militar. Afinal de contas, qual é a importância prática de distinguirmos conceitualmente democracia de ditadura e, especificamente, ditadura militar de ditadura fascista? Faz alguma diferença para o movimento operário e popular? E se fizer, qual é essa diferença? Isso poderia ser tema para outro artigo.

Nota:

(1): Anoto sobre esse ponto uma semelhança menor. Tratando do fascismo italiano, Gramsci, num texto de 1921, fala da existência de dois fascismos desde o início do movimento: um da pequena burguesia e outro dos proprietários rurais da Emilia, Toscana, Veneto e Umbria. Ver “I due fascismi”. In Antonio Gramsci, Sul Fascismo. A cura di Enzo Santarelli. Roma: Editori Riuniti. 1973.
 
Armando Boito é professor titular de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Publicado originalmente em Brasil de Fato.

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