Correio da Cidadania

Como o Congresso distorce o orçamento da Saúde

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Foto: Thomaz Silva/Agência Brasil


A grita pela “livre” alocação das emendas parlamentares na saúde é um dos pontos centrais do ataque do Centrão à ministra Nísia Trindade. Desde que assumiu, ela estabeleceu critérios técnicos mínimos para destinação dos recursos provenientes dessas emendas. A banda fisiológica do Congresso chiou, pois defende o “direito” dos deputados e senadores a distribuir recursos sem regras ministeriais.

O tema é relevante: o Legislativo tem mordido uma parcela cada vez maior do Orçamento da União, e segundo a Emenda Constitucional 86/2015, deste total metade é destinada às ações e serviços públicos de Saúde. Como o subfinanciamento do SUS não acabou, a parcela do orçamento que fica nas mãos dos parlamentares não para de crescer. Mas qual o resultado real desta pulverização de recursos, segundo os interesses dos próprios legisladores?

Uma primeira resposta acaba de chegar. Foi obtida pelo estudo Efeitos das emendas parlamentares no financiamento municipal de atenção primária à saúde do Sistema Único de Saúde, feito por pesquisadores ligados à Universidade Estadual de Londrina, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fiocruz. Ele foi publicado na última edição do periódico Cadernos de Saúde Pública, parceiro editorial de Outra Saúde.

Como os autores demonstram, as disparidades no acesso à saúde pública cresceram. Surgiu uma enorme distorção de distribuição de recursos per capita, prejudicando em especial municípios médios e grandes – onde vive a maior parte da população do país. Além disso, as emendas serviram como substituição ao gasto municipal com Atenção Primária à Saúde (APS), mas não alteraram os gastos das prefeituras com os serviços de saúde em geral.

A pesquisa retoma as principais mudanças na Constituição Federal, que fizeram com que as emendas parlamentares atingissem o peso orçamentário que têm em 2024. Pode-se estabelecer como fator importante as políticas neoliberais de “austeridade”, presentes desde a criação do SUS, mas intensificadas a partir de 2015 e, em especial, após o golpe parlamentar de 2016. A restrição do orçamento deixou o Congresso insatisfeito. Mas em vez de enfrentá-la, o Parlamento contentou-se em defender o seu quinhão, aprovando uma série de leis que estabelecem o orçamento impositivo – ou seja obrigam o Executivo a atender aos caprichos dos parlamentares.

A principal foi a Emenda Constitucional 86/2015. Segundo ela, uma parcela específica do orçamento deve ser obrigatoriamente executada conforme as emendas individuais e coletivas dos parlamentares, garantindo assim que os projetos e alocações de recursos indicados por eles devem ser efetivamente realizados. Se nesse momento, a quantia mínima da receita corrente líquida destinada à saúde via emendas parlamentares era de 0,6%, as leis que vieram a seguir – a saber, em especial a EC 126/22 – aumentaram o percentual para 1%. E vale lembrar: há poucos dias, o Congresso garantiu mais R$ 4,6 bilhões do orçamento para si.

Como já é bastante debatido, uma fatia tão grande na mão de deputados e senadores não tem garantido melhorias nos serviços públicos dos brasileiros. Pelo contrário, as emendas muitas vezes funcionam como garantidoras de votos em “redutos eleitorais”, em especial em pequenas cidades, como demonstra a pesquisa. E tampouco têm servido como amparo para a Atenção Primária à Saúde de maneira igualitária pelo Brasil, como veremos a seguir.

Para fins de metodologia, o estudo segmentou as cidades brasileiras em sete grupos, de acordo com o seu número de habitantes: até 5 mil; de 5 a 10 mil; de 10 a 20 mil; de 20 a 50 mil; de 50 a 100 mil; de 100 a 500 mil; e mais de 500 mil. Essas faixas são importantes para verificar as disparidades, mas também para compreender a complexidade da municipalização brasileira: 68,3% das cidades brasileiras têm população inferior a 20 mil habitantes.

As primeiras constatações do estudo são as seguintes: 1) há enorme disparidade nos recursos repassados via emendas parlamentares per capita entre municípios de pequeno e de grande portes; 2) as despesas municipais em ações e serviços públicos totais de saúde pouco se alteraram com o aumento de recursos via emendas; 3) isso muda quando se fala em APS, pois especialmente em cidades pequenas o gasto da prefeitura nessa área diminuiu com o aumento de transferências de deputados e senadores. A seguir, avaliaremos cada um dos achados.

“Foram identificadas diferenças de até 16 vezes no valor per capita em emendas parlamentares para APS entre os municípios com até 5 mil habitantes e aqueles com mais de 500 mil, evidenciando as distorções causadas por essa forma de transferência de recursos no período avaliado [entre 2015 e 2020]”, escreve o estudo. Os pesquisadores vão além: afirmam que o dispositivo não corrigiu as iniquidades na distribuição de recursos – pelo contrário, as aumentou. Essa discrepância não é tão grande quando observamos os gastos próprios dos municípios com APS: nesse aspecto, o valor per capita de cidades pequenas é, no máximo, 2,3 vezes maior que nas grandes.

Outro grande problema é que os municípios pequenos não são beneficiados igualitariamente, “dada a discricionariedade do parlamentar na indicação desses recursos”. E quando o orçamento é direcionado pelo poder executivo, via Piso de Atenção Básica, essas distorções não acontecem, pois estabelece-se uma margem mínima – que respeita “critérios como perfil demográfico e socioeconômico de cada ente municipal para a distribuição de recursos financeiros”.

A segunda constatação do estudo foi o fato de que não há relação direta entre a destinação de recursos via emendas do relator para municípios e a alocação de recursos próprios das prefeituras em ações e serviços gerais de saúde. “Esses achados apresentam evidências que refutam a hipótese da substituição de fontes pelos municípios […], ou seja, que eles substituiriam recursos próprios por emendas na aplicação em ações e serviços públicos de saúde”, afirmam os autores.

Haveria, portanto, um aumento no orçamento da saúde em tais municípios, pela lógica. Embora isso seja verdade, demonstra que o SUS ainda carece de muito financiamento nessas cidades: “A pressão sobre os municípios é um dos fatores que explicam esse resultado”, explicam. Nesse ponto, o estudo chama a atenção para a crescente “omissão estrutural da União quanto ao seu papel coordenador e organizativo”. Trata-se de um problema muito debatido na economia da saúde: a participação do governo federal nos gastos em saúde tem diminuído crescentemente. Enquanto isso, municípios têm de arcar com uma fatia cada vez maior do financiamento do SUS.

A terceira conclusão do estudo é ainda mais grave. “Municípios diminuíram a parcela de recursos próprios no financiamento da APS” com o aumento de emendas parlamentares direcionadas a elas, diz o texto. Ou seja, mesmo nos municípios mais favorecidos pelas emendas, a população não se beneficiou. Os prefeitos simplesmente abocanharam os recursos federais e reduziram a contribuição das prefeituras à atenção básica – mantendo, na essência, o mesmo padrão de serviços.

Gabriela Leite é jornalista e editora do site Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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