Correio da Cidadania

A tática, a estratégia e o teste da realidade

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A réplica ao meu artigo “A Lit, o impeachment e a luta contra Temer”, publicada no site da LIT no dia 18 de setembro, correspondeu ao desafio de manter elevado o debate de ideias, centrando-o nas análises, caracterizações e políticas mais adequadas para a intervenção da esquerda socialista no Brasil de hoje. Não esperava outra coisa do meu amigo Alejandro Iturbe, que mais uma vez assina o artigo “Na realidade, debatemos sobre estratégia” (tomo de novo a liberdade de traduzir as citações, já que o artigo a que me refiro foi publicado em castelhano).

 

Se o tom é de debate de ideias, a metáfora usada por Iturbe para descrever a polêmica parece-me infeliz: “as polêmicas políticas têm uma dinâmica própria”, diz, “semelhante a um combate de boxe (...): procura-se eludir os golpes ou pontos fortes do adversário e, ao mesmo tempo, atacar as suas fraquezas”.

 

Evidentemente, se Iturbe e eu estivermos travando um combate de boxe, o objetivo dele – e o meu – terá de ser a vitória, de preferência por nocaute, sobre o adversário. Mas essa não é, pelo menos da minha parte, a intenção. Aquilo que me levou a escrever o primeiro artigo não foi “ganhar” qualquer polêmica, mas, sim, contribuir para trazer à razão uma organização à qual dediquei 17 anos da minha vida e que vejo à beira do abismo.

 

O PSTU mudou de posição sem querer admitir

 

Mais especificamente, o que me levou a romper o silêncio que mantenho há 13 anos em relação à LIT foi ver que pela primeira vez, que eu me lembrasse, o PSTU se recusava a apoiar e participar de mobilizações contra o governo de turno, argumentando que estas eram pelo regresso do governo anterior. “Não concordamos e não participaremos de manifestações que defendem um ex-governo, que nada mais foi do que a antessala do atual governo do PMDB, que atacou os trabalhadores e deixou preparados todos os ataques que o atual governo vem fazendo”, dizia o PSTU em nota oficial a propósito das passeatas que, sob o lema “Fora Temer”, se realizaram diariamente nas principais capitais do país, com centro em São Paulo.

 

A pretexto de condenar a repressão que se abateu sobre estas manifestações, a nota não deixava dúvidas quanto à negativa do PSTU de comparecer, acusando-as de serem “manifestações em defesa da ex-presidente e contra um suposto golpe”, esclarecendo sem margem para dúvidas: “não apoiamos tais manifestações, tampouco acreditamos que houve um golpe no país”.

 

Foi esse um dos centros da minha polêmica e, por isso, com alegria vi o PSTU mudar de opinião e passar a participar das manifestações. Iturbe confirma a participação, mas não reconhece a mudança de posição: “participamos e impulsionamos todas estas lutas concretas e também o fazemos naqueles atos que consideramos realmente pelo ‘Fora Temer’”, diz, acrescentando: “O ‘Fora Temer’ começa a tomar peso de massas: 90% da população brasileira rejeita o seu governo e começam a ver-se as primeiras expressões abertas desta realidade. É uma tarefa concreta e possível no curso da realidade do país”.

 

Nas entrelinhas está a desculpa: em todas as manifestações que o PSTU se recusou a participar, foi porque não eram realmente pelo “Fora Temer”, mas pelo “Volta Dilma”. Não se percebe, porém, o critério. Quer dizer que a manifestação dos cem mil no domingo, 4 de setembro, em São Paulo não foi “realmente” por “Fora Temer”, mas a de quinta, dia 8, já foi e por isso a juventude do PSTU decidiu participar “da convocatória do DCE da USP”? E a de domingo dia 11, a primeira a contar com a participação plena do PSTU, já foi decididamente por “Fora Temer”?

 

Se o critério foi o que estava escrito nos cartazes de convocação, vale lembrar que o cartaz da manifestação do dia 4 em São Paulo, na verdade, era encabeçado por “contra o golpe”; mas no mesmo dia houve um ato no Rio de Janeiro cujo cartaz de convocatória era encabeçado por “Fora Temer” e nem por isso o PSTU compareceu. Como não compareceu ao ato de Fortaleza convocado pelo “Fora Temer” no dia 7/9, nem aos atos do Grito dos Excluídos, também convocados sob o mesmo lema no dia 7/9, nem ao ato de Belo Horizonte dia 31 de agosto, nem ao ato de dia 29 de agosto. Estes são apenas alguns exemplos.

 

Seja como for, como já disse, é de saudar a mudança de posição e a participação nos atos já é uma autocrítica na prática.

 

Na minha opinião, esta mudança ocorreu porque o choque com a realidade era demasiado insuportável e muitos quadros da organização, sem dúvida, reagiram a esta negativa de participar em mobilizações contra o governo, inédita na história do PSTU. A mudança demonstra que ainda há reservas de bom senso no partido. Ainda bem. Se este debate tiver contribuído nem que seja com uma parcela infinitesimal para essa mudança, terá valido a pena e não me importo de baixar as guardas e deixar Iturbe levar-me às cordas, já que é tão entusiasta do boxe.

 

Discussão sobre o golpe: vamos a ela!

 

Fiel à sua visão da polêmica como uma luta de boxe, Iturbe acusa-me de me “esquivar” à questão, para ele crucial, de definir se houve ou não golpe, acusando-me de falta de seriedade por não me posicionar diante desta “definição básica”. De fato, no meu artigo disse que “a polêmica do golpe-não golpe-golpe palaciano-manobra parlamentar pode ter sido muito importante mas já não faz sentido”. Mas não escrevi isso por temor da discussão ou por manobra tática. Considero, honestamente, que a discussão está ultrapassada e como sei que foi travada de forma envenenada, preferia realmente não abordá-la.

 

Na verdade, acho-a até constrangedora. Porque quem mais defende atualmente que não houve golpe é... O próprio Temer, que escolheu esse tema para a sua primeira intervenção na primeira reunião do seu governo pós-impeachment. O PSTU afina pelo mesmo diapasão, não percebendo, ou não se importando, de ter tal companhia.

 

Mas já que a LIT considera que essa definição é essencial, vamos a ela.

 

Para começar, vamos limpar terreno: é correta a caracterização de que o PT e o PC do B usaram a narrativa do golpe para tentar canalizar apoio ao governo Dilma. Por isso exageraram nas tintas, chamando os defensores do impeachment de fascistas e desenterrando o lema de má memória da Guerra Civil Espanhola “não passarão”. Acontece que não houve golpe fascista algum, o que ocorreu com o impeachment de Dilma não pode ser comparado ao golpe de 64 porque não houve uma mudança de regime e não vivemos numa ditadura militar hoje.

 

Dito isto, quero afirmar que houve golpe, sim, um golpe de outras características, mas que não deixou de o ser. Num artigo de opinião publicado no Esquerda.net em março, já esclarecia a minha posição: “a maioria dos partidos da direita, o patronato representado pela poderosa FIESP, o setor financeiro, os donos do agronegócio querem de fato afastar Dilma da presidência e o PT do governo, mas o que preparam é um ‘golpe constitucional’, que seria a aprovação do impeachment da presidente pelos deputados e senadores, mesmo sem haver fundamentação jurídica, isto é, sem haver um crime de responsabilidade cometido por Dilma Rousseff”. E explicava: “este tipo de golpe, que derruba o governo, mas mantém o regime, ficou conhecido por ‘golpe paraguaio’ em memória à destituição do presidente daquele país, Fernando Lugo, por votação do Senado, num processo relâmpago que durou pouco mais de 24 horas, no dia 22 de junho de 2012”.

 

No mesmo artigo, eu defendia que “não se pode ficar neutro diante do impeachment. É preciso denunciá-lo e opor-se à farsa”, mas esclarecia que “uma coisa é denunciar e opor-se ao impeachment e outra muito diferente é apoiar este governo”, porque “desde que tomou posse, Dilma Rousseff aplicou uma política oposta àquela que defendeu na campanha eleitoral” e por isso seu governo era indefensável.

 

Compreendo que Iturbe tenha mais que fazer do que ficar lendo o que escrevo no Esquerda.net, site de notícias mantido pelo Bloco de Esquerda de Portugal, de que me orgulho de ter sido um dos fundadores e de ter nele trabalhado durante quase dez anos. Mas não pode me acusar de fugir a esta discussão. Como disse, a minha posição é de 20 de março deste ano.

 

O que eu defendi na altura é o que defendo agora: houve, sim, um golpe reacionário que devemos denunciar. Um golpe parlamentar, constitucional, palaciano, golpe branco, como queiram defini-lo. Mas um golpe, sim. Denunciar o golpe e ser contra o impeachment, porém, não significa apoiar o governo Dilma, que abriu caminho a esse mesmo golpe ao praticar uma fraude eleitoral, aplicando desde o primeiro dia do seu segundo governo um programa oposto ao que defendera nas eleições, e pelo qual obtivera 54 milhões de votos. Com evidentes matizes de diferença, a maioria da esquerda socialista alinhou-se com esta posição, e fez bem.

 

O que a LIT defendeu quando do golpe no Paraguai

 

Hoje a LIT, diante do impeachment, não admite que seja possível denunciar um golpe sem defender o governo Dilma. Só há duas possibilidades na esquerda: o PSTU está numa, e o resto da esquerda não petista está no último vagão do trem puxado pela locomotiva da burguesia, cujos primeiros vagões são do PT. Ou, para citar uma expressão muito usada pelo PSTU, os que admitem que houve golpe – qualquer tipo de golpe – não passam de “viúvas da Dilma”.

 

No entanto, a LIT nem sempre teve este raciocínio maniqueísta.

 

Em 11 de julho de 2012, o site do PSTU publicava uma declaração da LIT intitulada “Golpe de Estado no Paraguai: derrotemos o golpe parlamentar e o governo de Franco nas ruas!”, que definia assim a sua posição diante da deposição do presidente Fernando Lugo através de “um julgamento político relâmpago instrumentado no Parlamento”: “nossa posição é clara e categórica: estamos absolutamente contra o golpe e chamamos o movimento de massas do Paraguai e de toda a América Latina a enfrentá-lo e derrotá-lo nas ruas, com sua organização e mobilização independentes”.

 

A declaração afirmava tratar-se de “um golpe contra o movimento sindical, camponês, popular e estudantil”, e um “ataque direto às liberdades democráticas conquistadas ao longo de décadas de luta popular”. E enfatizava: “somos contra o golpe porque, para nós, é o povo, e somente o povo, quem decide se um presidente deve permanecer ou ser deposto”. E insiste: “este golpe ataca o direito democrático mais básico do povo explorado: eleger seus governantes”.

 

A declaração ponderava, porém: “nossa oposição frontal ao golpe, contudo, não significa nenhum apoio político a tudo o que significou o governo de Lugo. Ele preparou, com sua política de conciliação de classes, o terreno para o golpe”.

 

Mais à frente, respondendo aos que consideravam que Lugo fora deposto por enfrentar os privilégios dos ricos e do imperialismo, a LIT afirmava: “os socialistas revolucionários devem ser os melhores lutadores contra o golpe. Devemos ser os campeões na resistência contra o governo golpista de Federico Franco. Mas, ao mesmo tempo, é necessário explicar pacientemente que foi o próprio Lugo quem preparou o terreno, facilitou e capitulou vergonhosamente ante o golpe da direita reacionária”.

 

No total, a declaração usa 43 vezes a palavra “golpe”, e define-o indiferentemente como “golpe reacionário”, “golpe da direita”, “golpe parlamentar”.

 

Outra matéria anterior, assinada pela redação do site do PSTU, falava em “golpe branco” e exagerava: “a deposição de Fernando Lugo se configura num clássico golpe de Estado, a exemplo do que ocorreu em Honduras em 2009”, exigindo o PSTU do governo Dilma “que não reconheça e rompa relações com o governo golpista” (o negrito é meu).

 

Finalmente, uma nota do PT do Paraguai, seção da LIT, afirmava: “reafirmamos que o Parlamento Nacional, uma verdadeira cova de bandidos, não representa o povo trabalhador e não tem a mínima autoridade política nem moral para destituir uma pessoa designada pela maioria do povo, pelas vias das eleições gerais, para exercer o cargo de presidente da República”. E, mais adiante: “o PT não reconhece o governo de Federico Franco por ser ilegal e ilegítimo e imposto por um golpe parlamentar. É um governo que surge de uma violação aos mais básicos princípios democráticos”.

 

Parece-me que estas citações são mais que suficientes para demonstrar que a LIT de 2012, diante de um impeachment com enormes semelhanças ao de Dilma Rousseff, tinha uma posição radicalmente diferente da que assumiu agora no Brasil. De fato, nas citações acima, se substituíssemos “Fernando Lugo” por “Dilma Rousseff” e “Frederico Franco” por “Michel Temer” teríamos uma posição muito semelhante à que setores da esquerda socialista e eu próprio defendemos.

 

Não tem mal algum mudar de posição. Mas a LIT deve uma explicação a todos os que foram acusados de serem “viúvas da Dilma”: em 2012 a LIT foi “viúva do Lugo”?

 

As manifestações da direita foram “secundárias e coadjuvantes”?

 

Forçado pelo meu artigo a mencionar pela primeira vez as grandes manifestações pelo impeachment de Dilma, lideradas pela direita e com forte participação da extrema-direita, Iturbe limita-se a dizer que “na realidade, não falei dessas mobilizações, não porque queira escondê-las, mas porque as considero elementos secundários e coadjuvantes da situação. Foram, sim, mobilizações de classe média (tal como as do PT). Mas não foram o elemento central que levou ao impeachment de Dilma”.

 

Note-se que em nenhum momento reconhece que foram mobilizações de direita, apenas concedendo que foram de classe média, mas acrescentando imediatamente que o mesmo aconteceu com as do PT.

 

Francamente, esta resposta me deixou espantado. Confesso que não sei o que dizer. Se as manifestações pelo “Fora Dilma” de 15 de março, 12 de abril, 16 de agosto e 13 de dezembro de 2015 e de 13 de março deste ano, que mobilizaram de centenas de milhares a milhões de pessoas na rua, foram “secundárias e coadjuvantes”, o que será que Iturbe considerará “principal e primordial”? Se a direita, que nunca fizera mobilizações de peso desde o fim da ditadura, conseguiu levar à rua um amplo setor da classe média e até franjas da classe trabalhadora e conquistar a hegemonia das ruas, isso é “secundário e coadjuvante”? É possível fazer uma análise da relação de forças entre as classes sem dar importância a estas manifestações? Isto é marxismo ou fantasia?

 

Iturbe limita-se a reafirmar que “o que permitiu que um congresso corrupto e desprestigiado afastasse o PT do governo foi que a base operária tinha rompido com ele, pela aplicação de planos de ajuste e contrarreformas que dissera que ‘nunca ia aplicar’. Por isso não moveu um dedo para defendê-lo, não porque tivesse sido ganha pelo programa da direita ou levada por esta à passividade mas porque considerou, com justiça, que não havia nada a defender”.

 

Ora, em nenhum momento eu afirmei que a classe trabalhadora fora ganha pela direita. Disse, sim, que um setor importante da classe média o fora e que a classe trabalhadora ficou na expectativa, o que quer dizer que não se mexeu para defender o governo, mas também nada fez para derrubá-lo.

 

Cada cavadela, sua minhoca

 

Iturbe atribui-me uma série de opiniões políticas que não são minhas. Acusa-me de ser partidário da teoria da “onda conservadora”, e de considerar que o processo aberto pelas mobilizações de junho de 2013 foi encerrado e se transformou no seu oposto pelas mobilizações “verde-amarelas” de 2015 e março de 2016.

 

Não consegue, porém, dar qualquer citação do que escrevi para apoiar esta afirmação, pela simples razão de que ela não existe. Portanto, vamos esclarecer – telegraficamente, porque não cabe no âmbito deste artigo fazer a análise de junho de 2013: na minha opinião, o processo não foi encerrado. Prossegue, e ainda pode prosseguir de muitas formas. Prosseguiu, por exemplo, nas mobilizações dos secundaristas e nos processos de ocupações de escolas que, no caso de São Paulo, conseguiram derrubar o secretário de Educação de Alckmin. Ou na explosão dos professores do Paraná. Poderia talvez ter tido uma expressão política nova se a esquerda tivesse conseguido lidar com um fenômeno com muitas semelhanças aos Indignados do Estado espanhol.

 

Como não vivi no Brasil nestes anos de 2013 a 2016, provavelmente muitas outras mobilizações e fenômenos me escaparam. Mas há uma coisa que posso afirmar: as mobilizações da direita contra Dilma não fazem parte deste processo, e mais bem são o seu oposto. Para Iturbe, isto é assim, ou não? Não fica claro. O que voltou a parecer é que a LIT vê um processo de mão única entre 2013, as mobilizações de 2015 e 2016 e o impeachment de Dilma.

 

Uma nota final sobre este assunto: o uso que Iturbe faz das pesquisas eleitorais para as presidenciais de 2018 é um pouco bizarra. Diz ele que as pesquisas mostram que “os candidatos burgueses de direita obtêm muito maus resultados: Aécio Neves, 14% (não iria à segunda volta) e Michel Temer, 5%”. E acrescenta: “se somarmos outros candidatos menores e a extrema-direita (Jair Bolsonaro, 7%), todos juntos não chegam a 30%, bastante abaixo da votação tradicional da direita neste país”.

 

Só que faltou citar os restantes resultados: Lula com 22%, Marina com 17%, Ciro Gomes com 5%, Luciana Genro com 2%, Ronaldo Caiado, com 1%, e Eduardo Jorge, também com 1%. Votariam em branco ou nulo 18%, e 7% não opinaram.

 

Há um ditado português que diz: “cada cavadela, sua minhoca” (que quer dizer: quanto mais se remexe num assunto, mais coisas aparecem). Ao querer demonstrar que a direita tradicional não tem boa votação, Iturbe “esquece-se” de citar os 22% de Lula. Mas como fica então a demonstração da ruptura da classe trabalhadora com o PT? De onde vêm esses 22%?

 

O governo Temer é muito fraco?

 

O artigo com que tenho polemizado afirma, como demonstração final da sua visão do processo de impeachment, que o governo Temer é muito fraco. “Podemos discutir se é igual ou mais fraco que o de Dilma, mas é claro que não representou um fortalecimento do regime burguês frente às massas”, diz Iturbe, para depois me atribuir a conclusão “lógica” de que o governo de Temer é um governo forte, coisa que eu nunca disse nem escrevi.

 

Diante disto, só posso dizer: oxalá que a LIT tenha razão. Porque na sua fase final Dilma já não conseguia governar. Esperemos que com Temer realmente aconteça o mesmo. Iturbe tem razão quando diz que não há um fortalecimento frente “às massas”, se traduzirmos massas por classe trabalhadora. Mas há o outro lado da moeda. Há uma aliança por enquanto muito sólida de toda a burguesia em torno de Temer, apesar das trapalhadas em que ele esteve envolvido no início. Há a proteção unida dos principais conglomerados de mídia. E há o fato de Temer não ter aspirações eleitorais para 2018 – fez parte do acordo com o PSDB que ele não se candidataria.

 

Por isso, a burguesia cobra de Temer contrarreformas legislativas que Dilma não teria a menor condição de impor. Mas Temer conta hoje com uma sólida maioria no Congresso, e parece decidido a fazer aprovar as contrarreformas Trabalhista, Previdenciária e a privatização às fatias da Petrobras.

 

Por outro lado, jogando no sentido inverso, a direita ficou sem bandeira para voltar às ruas. Não tem condições de convocar uma mobilização de apoio a Temer, e a bandeira do combate à corrupção se choca com a intenção do novo presidente de abafar e pôr fim à Lava Jato, antes que atinja o PSDB e o PMDB.

 

O impeachment de Dilma pela direita em princípio provocou uma relação de forças mais favorável à burguesia. Mas a classe trabalhadora e os jovens não foram derrotados. E ainda há a Primavera feminista que deixou raízes e pode voltar com força a qualquer momento. A situação, por isso, não se estabilizou. Ainda há muitos combates pela frente e o resultado não está definido. O problema é que se a esquerda socialista não forjar uma alternativa ao lulismo, tudo irá por água abaixo, mais cedo ou mais tarde. E é aqui que entra a questão da estratégia, a mais importante de todas, segundo o artigo de Iturbe.

 

Voluntarismo inconsequente

 

O artigo faz-me as acusações habituais que todos os revolucionários reservam aos reformistas desde os tempos de Bernstein: que, para mim, o socialismo é só para os dias de festa, porque não compreendo a dialética entre tática e estratégia, e, pior ainda, que já nem independência de classe defendo etc. Fico sem saber por que a LIT gasta o seu tempo a polemizar com um renegado que levaria Kautsky a corar de vergonha. Deixemos, assim, de lado essa tentativa de me desqualificar e vamos ao conteúdo da discussão.

 

Iturbe sabe bem que a revolução não se decreta, e que por mais vontade e “fé” um partido tenha pela revolução socialista ela não depende do nosso voluntarismo: é a classe que tem de estar disposta a fazer a revolução ou esta não existirá. E mesmo nas crises revolucionárias há limites para o crescimento dos partidos revolucionários, que dependem da sua estrutura de quadros. Sabe que a revolução socialista pressupõe uma etapa de crise aguda, de grandes mobilizações de massas, de greves gerais, ocupação de fábricas e de terras. Mas, acima de tudo, a revolução não se faz sem organismos de duplo poder que prefigurem o novo Estado a nascer.

 

Pois bem: eu vivi aquela que foi provavelmente a última revolução de caráter socialista que produziu organismos de duplo poder, a revolução portuguesa de 1974. Esses organismos, as comissões de trabalhadores, de moradores, as assembleias de unidade, as comissões de soldados nos quartéis, de gestão democrática ou conselhos diretivos nas escolas não apareceram como fruto de uma política partidária, de uma vontade de um partido revolucionário. Mas porque estavam colocadas necessidades que as massas trabalhadoras, camponesas, os estudantes e os soldados quiseram resolver pela sua própria iniciativa. A ausência de direção revolucionária engessou este processo que começou a ser derrotado pelo golpe de 25 de novembro de 1975 e acabou de o ser pelo que na época chamamos de “reação democrática”.

 

Presenciei este fenômeno e fiz parte ativa desses organismos de poder. Infelizmente, nos processos revolucionários em que participei posteriormente nunca mais se repetiu esse fenômeno. Assim, dizer como Iturbe disse no artigo “Impeachment de Dilma: Não chores por mim Brasil” que “a estratégia da luta contra o governo Temer e as suas medidas deve enquadrar-se na perspectiva de uma estratégia muito mais ofensiva: a tomada do poder pelos trabalhadores e as massas” é uma declaração de voluntarismo sem consequências práticas, porque a “tomada do poder” não depende da vontade nem da fé.

 

Iturbe, no entanto, propõe-se “derrotar não só Temer como também todo o regime corrupto”, a serviço do capitalismo, “para instalar um novo regime” e “iniciar a construção de um novo tipo de Estado”, a “serviço dos trabalhadores e das massas”. Isto é: a construção do Estado baseado nos organismos dos trabalhadores é já para quando Temer for derrubado. Acredita Iturbe que isso está prestes a acontecer? Temer tem só dois anos de mandato.

 

Ainda que fosse possível, faltaria cumprir uma tarefa inadiável para tal objetivo: construir a ferramenta que possa conduzir os trabalhadores nesta via: o PSTU, como o único que afirma ter a estratégia, prepara-se para o fazer sozinho. Só que, para isso, conta com um obstáculo que, quer goste ou não, persiste: a influência de Lula entre os trabalhadores.

 

Estratégia socialista: que posição diante de uma eventual prisão de Lula?

 

Como já vimos, Iturbe acusa-me de não compreender a relação dialética entre tática e estratégia, o que teria como consequência que, no meu caso, “toda tática passa a ser considerada válida em si”. O PSTU-LIT, pelo contrário, apresentam-se como modelo nesta sempre difícil articulação entre a política cotidiana e os objetivos revolucionários. O teste da realidade, porém, não parece demonstrar tal habilidade.

 

Veja-se o caso mais candente depois do impeachment de Dilma, o da acusação e possibilidade de prisão de Lula pelo Ministério Público Federal. À hora em que concluímos este artigo, a posição oficial do PSTU-LIT é o artigo “Lula, a Lava Jato e a classe trabalhadora”, assinado por Mariúcha Fontana. E fazemos a precisão da data (22 de setembro) porque em uma semana o PSTU já mudou significativamente de posição. No artigo mais recente, a dirigente do PSTU reconhece que os que acusam Lula de ser o chefe de uma organização criminosa não apresentam provas, mas apenas “convicção”. E prossegue: “em julho, não havia base jurídica para a condução coercitiva de Lula ou a agressão aos seus direitos individuais. Isso mereceu nosso repúdio. Continuamos repudiando  qualquer conduta arbitrária do MPF”. Ataca em seguida a tese da imparcialidade do Poder Judiciário: “ele serve aos interesses de bancos e grandes empresas. Isso vale para o STF, o STJ, o TST e o MPF. Vale também para o juiz Sérgio Moro e para o procurador Deltan Dellagnol. Basta ver que as investigações de corrupção dos tucanos e dos peemedebistas andam a passo de tartaruga”.

 

Assim, o PSTU reconhece que a operação Lava Jato serve os interesses da burguesia. Não fica claro, porém, se, na eventualidade de uma prisão de Lula, mantendo-se as provas atuais (e há dois anos que os procuradores buscam outras provas sem sucesso) o PSTU vai ser a favor ou contra a prisão e condenação de Lula, considerando-as uma “conduta arbitrária” do Poder Judiciário.

 

E não fica claro porque a matéria de Mariúcha Fontana salta do terreno criminal para o político, afirmando que os trabalhadores não têm motivo para defender Lula porque este lhes virou as costas e fez alianças com banqueiros, empreiteiros e grandes empresários, governou para os bancos e grandes empresas, não para os trabalhadores. Por isso, PT, Lula e suas campanhas passaram a ser bancados com dinheiro das grandes empresas, abandonando “a independência que deve ter qualquer organização dos trabalhadores frente aos patrões”.

 

E conclui afirmando que “os trabalhadores devem seguir defendendo a prisão e a expropriação dos bens de todos os corruptos e corruptores, sejam do PT, do PMDB ou do PSDB”. A última frase é: “os trabalhadores não têm motivos para defender Lula”.

 

O problema desta posição é que não distingue o “julgamento” político de Lula, que deve e está sendo feito pela classe trabalhadora e se medirá pelo nível de apoio que ele mantém ou não, por um lado, e o julgamento criminal propriamente dito. O julgamento político está em curso e avançou muito com a experiência dos governos Dilma, particularmente este incipiente segundo governo, eleito com base numa fraude: o programa aprovado pelos eleitores foi substituído pelo do adversário. Ao mesmo tempo, o julgamento criminal recrudesceu, fazendo o MPF a acusação formal a Lula sem ter acrescentado uma prova que fosse às que já existiam em julho, quando, como Mariúcha diz, e bem, “não havia base jurídica para a condução coercitiva de Lula ou a agressão aos seus direitos individuais”.

 

Ora bem: se os procuradores da Lava Jato têm uma agenda política, o que parece incontestável, a serviço da classe dominante, e se montaram um enorme edifício que juridicamente tem pés de barro, não se entende como o PSTU não irá defender Lula em caso de Sérgio Moro decretar a sua prisão.

 

Isto não implica numa defesa política de Lula. Significa a defesa intransigente de direitos e garantias democráticas que, ao não assumirmos hoje, perderemos a razão, amanhã, se for a esquerda socialista a sentar-se no banco dos réus por acusações infundadas.

 

Quanto à caracterização de que a burguesia só consegue atacar Lula porque a classe trabalhadora rompeu com ele, parece-me que o que acontece é mais bem o contrário. A direita está processando Lula numa tentativa de tirá-lo das eleições de 2018 porque as pesquisas o apontam como favorito, com 22% das intenções de voto – a maioria, certamente, de trabalhadores. Se Lula estivesse com 5% de intenções de voto, não haveria tanta preocupação de o afastar do caminho.

 

Exigir a prisão de Lula é estratégia socialista?

 

Mas a matéria de Mariúcha só foi publicada na quarta 21 de setembro, dois dias depois de uma outra matéria ter sido apagada do site da LIT*. Trata-se de um artigo assinado por um outro importante dirigente da LIT, Eduardo Almeida, que ia muito além da posição atual e exigia a prisão de Lula por corrupção: “nós defendemos a prisão e expropriação dos bens de todos os corruptos. E isso significa exigir a prisão de Lula e também de Aécio e Renan pelo envolvimento na Lava Jato, de Alckmin pelo roubo da merenda escolar, e assim por diante”, afirmava, numa violenta polêmica com os que ele chamava de “novos apoiadores do petismo”.

 

O artigo foi publicado no mesmo dia da desastrada conferência de imprensa do procurador Deltan Dellagnol e seu powerpoint, e validava a sua acusação: “ao dirigir grandes esquemas de corrupção”, afirmava, “os dirigentes petistas começaram também a tirar uma parte para si mesmos. O famoso tríplex e o sítio de Lula são partes disso e, digamos, partes menores. Tem muito mais por aí”.

 

Assim, a LIT fazia a acusação, dava o veredito e exigia a execução da pena sem se importar com a existência ou não de provas. A palavra “provas” não figurava em todo o artigo. Até porque acreditar que Lula não sabia de todo o esquema, dizia o autor, “é mais ou menos como acreditar em papai noel e no coelhinho da páscoa”.

 

A mim parece-me que este justicialismo pode ser muito popular, mas apenas reforça um senso comum negativo – “são todos iguais”, “todo mundo sabe” que “são todos corruptos”. Além de que a judicialização da política – uma política de exigências à Justiça Federal, nomeadamente a Sérgio Moro e à Polícia Federal (“exigimos a prisão de Lula” etc.) – parece-me um recurso inédito em termos de tática revolucionária.

 

Condenar o acusado e executar a pena sem provas é um atentado à democracia em qualquer regime político, seja de democracia burguesa ou de democracia socialista. É praticado quotidianamente pelas ditaduras; foi praticado todos os dias nos regimes stalinistas, que aperfeiçoaram a técnica de extrair “confissões” em processos-farsa; é praticado muitas vezes em regimes de democracia burguesa.

 

Pode-se argumentar que a condenação e execução sumárias são aplicadas diariamente, no Brasil, à população pobre e negra. É verdade. Mas não é por causa disso que os direitos e garantias democráticas legais devem deixar de ser defendidas. Pelo contrário.

 

Para Eduardo Almeida, exigir a prisão de Lula seria a melhor tática para impulsionar a ruptura da classe trabalhadora com o ex-presidente. A mim parece-me justamente o contrário. Por um lado, reconhece que a Justiça está atuando enviesada pela urgência de condenar Lula, ao mesmo tempo que anda a passo de tartaruga diante das acusações a Aécio ou mesmo a Temer; mas, ainda assim, exige que Lula seja preso, condenado e expropriado. Fazer isto será tornar Lula um mártir (coisa de que ele, Lula, tem perfeita consciência), ajudando, pelo contrário, a que muitos que já tinham rompido com ele voltem atrás diante da injustiça flagrante. É uma tática que só isola mais o PSTU e desacelera ou até mesmo reverte a experiência da classe trabalhadora, permitindo que Lula se vitimize. Ao mesmo tempo, os que clamarem pela prisão de Lula, se o conseguirem, em vão continuarão a clamar pela prisão de Aécio, de Alckmin, de Temer. Ou têm alguma ilusão na Lava Jato?

 

Posto isto, resta uma pergunta: como é que uma exigência à Justiça burguesa se articula com a estratégia de criar “instituições completamente diferentes”, parte integrante de “um novo tipo de Estado”, ao “serviço dos trabalhadores e das massas”, que substituirá Temer? Eis uma coisa que não consigo imaginar. Como se diz em Portugal, “não bate a bota com a perdigota” (não bate coisa com coisa). Certamente é porque me falta perspicácia e tenho pouca familiaridade com a dialética.

 

O meu “lugar”

 

Deixei para o final uma questão mais pessoal que está no início do artigo da LIT. Iturbe começa por esclarecer o “lugar” de onde faço as minhas críticas, apontando que “Luis Leiria apresenta-se como ex-militante da LIT-QI (o que é certo), mas não diz que rompeu com ela há anos, passou a ser seu adversário político e durante anos ocupou posições de grande responsabilidade no Bloco de Esquerda de Portugal”. Na verdade, eu esclareço logo na primeira linha do segundo parágrafo do meu artigo que estou afastado da LIT (logo, digo, sim, que rompi), tendo militado naquela organização por mais de 25 anos.

 

Já que Iturbe me leva a falar nisso, poderia acrescentar que o primeiro militante da corrente internacional que antecedeu a atual LIT enviado para estabelecer contato com um grupo de jovens trotskistas portugueses poucos meses após o início da Revolução dos Cravos foi bater à minha porta, em Lisboa, tinha eu 17 anos (ambos deixamos de militar na LIT).

 

Por outro lado, ao afirmar que passei a ser adversário político desta corrente ao militar no Bloco de Esquerda, Iturbe deveria esclarecer que a organização local da LIT em Portugal, que na época se chamava Ruptura-FER, também militou no Bloco de Esquerda durante 12 anos, desde a fundação, em 1999, até dezembro de 2011, quando rompeu para criar o MAS.

 

Finalmente, afirmar que me tornei adversário da LIT pode dar a ideia errada de que passei os meus dias, desde que rompi, a combatê-la. Nada mais falso. Desde a ruptura, por volta de 2003, nunca fiz uma crítica pública à LIT, nunca travei qualquer polêmica com esta organização apesar de ter inúmeras divergências. Cumpri assim um período de silêncio de 13 anos até me decidir a iniciar este debate.

 

Não me considero adversário da LIT. Acho que se trata de uma corrente de militantes revolucionários sinceros, com os quais tenho cada vez mais divergências por considerar que entraram num curso sectário, autoproclamatório e destrutivo. Isso só faz de mim um adversário aos olhos da LIT porque ela considera que toda a esquerda mundial foi varrida por um vendaval oportunista, deixando de fora apenas a própria LIT. Não é essa a minha opinião.

 

Há ainda um esclarecimento final: hoje sou um militante de base do Bloco de Esquerda, e as opiniões que expresso sobre o Brasil não representam necessariamente as do partido, que toma as suas decisões nos seus órgãos de direção, aos quais não pertenço.

 

 

Nota:

 

*A matéria de Eduardo de Almeida estava nos seguintes links: http://litci.org/pt/mundo/america-latina/brasil/sobre-o processo-e-possibilidade-de-prisao-de-lula/ para a versão em português e http://litci.org/es/mundo/latinoamerica/brasil/sobre-el-proceso-y-posibilidad-de-prison-de-lula/ para a versão em castelhano.

 

 

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Luís Leiria é jornalista do Esquerda.net.

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