Correio da Cidadania

“A ideia de festa internacional sem protagonismo dos colombianos contribuiu para a derrota do Sim”

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Uma grande expectativa internacional marcou o plebiscito realizado na Colômbia no último dia 2 de outubro, a respeito dos Acordos de Paz estabelecidos entre o Estado e as FARCs, o que talvez tenha contribuído para a vitória do Não, isto é, a manutenção do impasse histórico entre governo e guerrilha. Enviada ao país especialmente para cobrir a consulta, a jornalista Agnese Marra concedeu entrevista que o Correio da Cidadania e levantou algumas razões do resultado.

 

“Foram vários fatores. Um deles é que a campanha do Não, protagonizada pelo ex-presidente Alvaro Uribe. Tem-se um presidente rejeitado pela população, visto como fraco, que “não fez nada mais tangível pelo país, exceto os acordos de paz”, que teriam sido sua obsessão. Não é uma verdade absoluta, mas as pessoas sentem as coisas assim. A comemoração prematura e a ideia de que se tratava de uma festa para a comunidade internacional, com pouco protagonismo dos colombianos, contribuíram para a derrota do Sim”, explicou.

 

Tendo passado tanto pelas grandes concentrações como pelo campo, Agnese (que faz matérias para os jornais Público; ibérico, e Brecha, uruguaio) também falou das nuances que marcaram a votação em cada região do país, em notável diferença de orientação entre camponeses e citadinos. De toda forma, fica um horizonte de incerteza que nem o prêmio Nobel da Paz recém-concedido ao presidente colombiano pode disfarçar.

 

“Há chances de as negociações demorarem muito. Uribe e seu grupo querem mais é que demore, não têm pressa nenhuma. Isso pode levar o país a uma crise econômica, que na verdade já existe. O país já está em momento complicado, o desemprego começa a ficar mais alto etc”, ponderou.


A entrevista completa, realizada em parceria com a webrádio Central 3, pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Quais suas impressões sobre o plebiscito?

 

Agnese Marra: Estive em Medellín na semana anterior ao plebiscito, uma cidade onde prevaleceu o Não, de perfil bem conservador. A maioria das pessoas se dizia desconfortável com os acordos, que eram muito injustos, e falava muito mal do presidente, Juan Manuel Santos. O plebiscito não parece ter sido apenas pela paz, mas também do próprio presidente, um dos mais mal avaliados da história do país.

 

Penso que vários fatores levaram à vitória do Não. Em Bogotá, a capital, o Sim ainda conseguiu ser forte. Mas no dia da votação foi muito claro que nas cidades das áreas rurais, onde se concentra a guerrilha ora desmobilizada – como Ituango, onde estive, uma cidade governada pelas FARCs durante 30 anos e que sofreu muita violência militar da guerrilha – acreditava-se que o Sim venceria. Para essas pessoas, foi bem difícil conviver com a vitória do Não e acreditar que o processo de paz tinha sido negado.

 

Faz um ano que a cidade não vive a violência, sente-se um clima de paz, as pessoas se sentem mais tranquilas, capazes de voltar pra casa à noite, sem medo de tiros etc. Agora volta a ficar tenso o clima, com a possível volta e mobilização da guerrilha. A população que vive nas áreas que melhor conhecem a violência ficou muito assustada com o resultado. Ela se sente muito desprotegida, com incertezas sobre a volta da guerrilha, a proteção do exército...

 

Apesar do prêmio Nobel da paz concedido a Santos, ninguém sabe o que vai acontecer. A incerteza atinge todo o povo colombiano.

 

Correio da Cidadania: Se até dentro da Colômbia o resultado surpreendeu, fora do país mais ainda, pois se transmitia um clima de que a vitória do Sim aos acordos era líquida e certa. Quais fatores, em sua visão, acabaram inclinando a população a votar em maioria pelo Não e manter esse impasse histórico?

 

Agnese Marra: Foram vários fatores. Um deles é que a campanha do Não, protagonizada pelo ex-presidente Alvaro Uribe, alcançou um grande apelo. Ele tem um bom discurso, sabe chegar ao povo com mais habilidade do que Santos, que tem um jeito mais “de elite”, um perfil mais “internacional”. Isso não coloca muita gente ao seu lado. O perfil do Santos é muito pouco aprovado e esse é um ponto importante.

 

Quando os acordos foram assinados, eu também estive no país, em Cartagena de Índias, e vi todo um espetáculo com presidentes e ex-presidentes, Nações Unidas etc. Deu pra sentir que o cidadão da rua, comum, não estava gostando muito. Ironizava-se, dizia-se “parece que a paz já chegou, hein”. Muita gente achou um desrespeito a forma como se assinou o acordo e se fez a celebração, isto é, antes de se consultar o povo.


Creio que o espetáculo de Cartagena de Índias, muito festejado internacionalmente, foi negativo. Pesquisas do governo inclusive levantaram a informação de que havia pegado mal a euforia daquele momento.

 

Assim, tem-se um presidente rejeitado pela população, visto como fraco, que “não fez nada mais tangível pelo país, exceto os acordos de paz”, que teriam sido sua obsessão. Não é uma verdade absoluta, mas as pessoas sentem as coisas assim. A comemoração prematura e a ideia de que se tratava de uma festa para a comunidade internacional, com pouco protagonismo dos colombianos, contribuíram para a derrota do Sim.

 

Correio da Cidadania: Em relação à dualidade entre Uribe e Santos, lembramos que o atual presidente foi seu sucessor eleitoral direto, mas eles têm pensamentos diferentes: Santos seria um liberal conservador, enquanto Uribe representaria o conservadorismo neoliberal; um é herdeiro da política pré-violência, representada na figura de seu tio avô Eduardo, ao passo que o outro é conhecido por alguns como ‘narco-presidente’ e tem de se explicar pelo passado do pai, cujo assassinato se atribui às FARCs, mas as investigações não corroboram. Como colocar a oposição entre essas duas figuras ante o plebiscito?

 

Agnese Marra: Fala-se muito do Uribe, diz-se que com os acordos assinados seria investigado e acabaria na cadeia. Suas ligações com o paramilitarismo são fortes, todo mundo sabe, além do fato de ter um irmão na cadeia. Um tribunal especial do conflito seria uma ameaça a ele nesse sentido.

 

Ficamos preocupados com tal aspecto, quando se pergunta pelas ruas ao cidadão médio evita-se um pouco. Uribe quer o Não também pela questão da terra, pois os acordos propõem a reforma agrária. Ademais, ele alega que a justiça precisa por os guerrilheiros na cadeia – seus chefes, não apenas soldados baixos.

 

Pra resumir, um possível julgamento por suas relações com o paramilitarismo e o narcotráfico, e também a questão das terras, pois ele tem muita propriedade, são os principais motivos para Uribe lutar pelo Não, ao menos segundo o discurso dos partidários do Sim.

 

Uribe ainda alega temer as FARCs como partido político, mas a realidade é que ele tem uma relação de ódio com elas. Muitos dizem que agora, com a guerrilha fragilizada, o ex-presidente vislumbra a possibilidade de acabar com ela.

 

Correio da Cidadania: Quanto ao perfil social e geográfico da votação, como você vê o fato de que nas zonas que mais viveram a confrontação militar o Sim foi preponderante, enquanto nas grandes áreas urbanas espalhou-se pela opinião pública a preferencia pelo Não. O que você comenta sobre esse aspecto?

 

Agnese Marra: De fato, a primeira leitura da votação mostrou que nas áreas rurais mais afetadas pela luta armada, onde o conflito foi realmente mais forte, as pessoas, os camponeses, votaram pelo Sim, uma vez que sabem bem de perto como é a violência. Nas grandes cidades também se sentiu a violência, porém, mais por meio dos sequestros. Claro que também é importante, porém mais pontual, não se trata da guerra diária, permanente, da pressão que paira o dia todo nas pessoas que vivem em áreas conflagradas.

 

A exceção nas grandes cidades foi Bogotá, cidade de Santos, mais aberta e cosmopolita. Mas no geral é a população das cidades que mais questiona os acordos, alega que falta definir melhor alguns pontos. Uma parte da população não se dá conta de que o mais importante agora é a superação de uma etapa da sua história, que é a do conflito armado. É hora de começar a perdoar, como já se fez com outros grupos, como os próprios paramilitares, que já tiveram vários membros anistiados, algo pouco lembrado. No entanto, as FARCs são muito odiadas por uma parte da população e fica evidente a relação ruim entre setores médios e a guerrilha.

 

Correio da Cidadania: Em relação ao Brasil, pouco se falou do plebiscito por aqui, apesar do interesse geral pela estabilidade na região e da participação nos diálogos. No entanto, a ausência do chanceler Serra em sua assinatura já significava um recado, além da participação de alguns marqueteiros próximos ao governo Temer na campanha pelo Não. Acredita que também houve uma campanha de desinformação pelo Não?

 

Agnese Marra: A campanha do Não, de fato, contou com marqueteiros de outros países, que obviamente contribuíram para manipular algumas informações a seu favor. O Brasil era mediador dos acordos e agora, até pelo momento, sob o governo Temer, não há mais interesse em auxiliar na busca pela paz.

 

Os ânimos em torno do plebiscito têm algumas semelhanças com algumas coisas que permearam o impeachment de Dilma. Assim, fica a impressão de que para alguns é bom manter um clima de polarização nas sociedades dos países da região, uma oposição, não se sabe até que ponto real, entre esquerda e direita.

 

Vamos ver o que acontece, porque há investigações sobre a campanha do Não e isso traz alguns riscos para o partido de Uribe – é certo que com a continuidade das negociações não sabemos até onde irão. Está difícil falar de esquerda e direita na América Latina em geral, mas é óbvio que há interesses mais abrangentes, em todos os países.

 

Correio da Cidadania: O que será da Colômbia depois desse resultado e da ressaca que deve vir junto? O que acha que marcará o cotidiano e a política do país nos próximos meses?

 

Agnese Marra: É difícil responder, não está muito claro. Há chances de as negociações demorarem muito. Uribe e seu grupo querem mais é que demore, não têm pressa nenhuma. Isso pode levar o país a uma crise econômica, que na verdade já existe. O país já está em momento complicado, o desemprego começa a ficar mais alto etc.

 

Se daqui a pouco tempo se consegue fechar os acordos, a situação pode mudar um pouco, com mais apoio e investimentos externos. Mas não dá pra afirmar o que irá acontecer. Tenho a impressão de que os acordos paz terão de esperar mais pra se concretizarem.

 

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Gabriel Brito é editor-adjunto do Correio da Cidadania; Matias Pinto é jornalista da webrádio Central; ambos participam do programa Conexão Sudaca, onde a entrevista foi originalmente realizada.

 

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