Equador repete dinâmica em que esquerda fala de passado e direita aponta ao futuro
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- Gabriel Brito, da Redação
- 28/11/2023
Foto: AP
País que sediou um dos mais inovadores processos políticos dos anos 2000, o Equador afunda na instabilidade, inclusive com níveis inéditos de violência, após a retomada dos governos neoliberais. A falência do governo de Guillermo Lasso, que dissolveu o congresso, forçou eleições nas quais o empresário Daniel Noboa derrotou a advogada Luísa Gonzalez para um curto mandato de 18 meses. De toda forma, o país reproduziu um roteiro cada vez mais frequente nas democracias liberais, onde setores reacionários e conservadores conseguem captar a insatisfação social, inclusive das classes subalternas. Na entrevista ao Correio, o cientista político equatoriano Decio Machado, oferece sua explicação para o contexto deste país.
Na entrevista, Decio descreve as razões que levaram o governo do banqueiro Guillermo Lasso à bancarrota, processo que envolve um esgarçamento do tecido social causado por uma recente adesão à agenda norte-americana de guerra às drogas. Ainda assim, dada a mediocridade dos ultimos mandatários, Noboa tem condições de se fortalecer para as eleições de 2025.
“Os dois últimos governos, liderados por Lenín Moreno e Guillermo Lasso, foram tão desastrosos que a Daniel Noboa bastaria reduzir os índices de violência e insegurança interna, e alcançar certo dinamismo econômico com algum investimento estrangeiro e geração de empregos dignos para poder aspirar à reeleição em 2025”, resumiu.
Sobre a entrada do narcotráfico no país, com forte incidência nas eleições, trata-se de uma história cujo fracasso o Brasil conhece bem. “A violência começa a aumentar quando a administração Moreno importa a guerra dos Estados Unidos contra as drogas. Até então, a droga passava pelo território equatoriano, deixava uma pequena parte para o microtráfico interno e saía por portos e aeroportos com destino aos Estados Unidos e Europa, que são os mercados onde essas redes criminosas geram grandes lucros. Esse erro tático, devido à subserviência dos governos de Moreno e Lasso à política antidrogas da Casa Branca, é a origem da situação que o país enfrenta hoje, agravada quando os cartéis mexicanos começam a pagar com mercadorias a seus parceiros locais, desencadeando uma guerra interna entre gangues pelos mercados e pontos de venda internos”, explicou.
Quanto à esquerda hegemônica do país, cabe entender por quê nao conseguiu vencer as eleições após protagonizar a chamada Revolução Cidadã, que instituiu uma nova constituição, com reconhecimento da diversidade de povos e respeito aos direitos da natureza, além de ter produzido avanços socioeconômicos. Mais uma vez, movimentos sociais com forte subjetividade antissistêmica não abraçaram a candidata apoiada pelo ex-presidente Rafael Correa.
“Rafael Correa criticou seu candidato presidencial nas eleições de 2021, Andrés Arauz (candidato a vice nesta eleição), quando este tentou se aproximar do movimento indígena. Neste processo eleitoral de 2023, foi o líder da Confederação Nacional Indígena do Equador (CONAIE) quem propôs apoiar o correísmo, desde que este se comprometesse a atender às demandas políticas do povo indígena, mas na prática tudo ficou em nada”.
Machado complementa com uma análise cada vez mais frequente do atual momento das lutas políticas e mesmo de classes que marcam os processos políticos. Enquanto a esquerda defende um passado que já não pode voltar, a direita se apresenta como “disruptiva”. A despeito das ilusões institucionais, a ausência de crítica ao capitalismo e suas lógicas de reprodução parece fatal. “Em última análise, estamos testemunhando um fenômeno de proletarização do voto para a ultradireita, relacionado ao fato de que o progressismo renunciou a uma obviedade fundamental: os problemas que nossas sociedades enfrentam derivam da estrutura do sistema político-econômico ao qual estão submetidas. Assim, a esquerda vai ficando restrita à defesa desesperada de direitos cada vez mais diminuídos a cada novo ciclo econômico, acomodando-se ideologicamente aos termos políticos que o capital e o mercado vão gradualmente impondo”.
Leia a seguir a entrevista completa com Décio Machado.
Correio da Cidadania: Como observou a disputa pelo segundo turno das eleições do Equador entre Daniel Noboa, representante conservador, e Luisa Gonzales, do movimento Revolução Cidadã, até hoje atrelado a Rafael Correa e os governos que fizeram parte da onda progressista da América Latina? O que a vitória de Noboa significa?
Decio Machado: Estamos na fase de formação do novo governo, que assumirá as funções no final deste mês de novembro, o que permite analisar o processo eleitoral com certa objetividade e uma visão retrospectiva.
Após analisar os relatórios de diferentes empresas de pesquisa sobre a evolução da intenção de voto durante a campanha eleitoral, tudo indica que a disputa presidencial foi decidida no primeiro turno.
Apesar de a família Noboa fazer parte das elites econômicas mais privilegiadas do país e de o pai, Álvaro Noboa, ter sido candidato presidencial cinco vezes com pouco sucesso, no início deste processo eleitoral Daniel Noboa era praticamente desconhecido pela sociedade equatoriana. Na verdade, durante todo o primeiro turno, sua estratégia de campanha tinha os traços clássicos de uma campanha de posicionamento de imagem com foco nas próximas eleições, de 2025.
No entanto, em um processo eleitoral desestabilizado pelo impacto da violência que resultou nos assassinatos de várias autoridades locais, candidatos ao parlamento e um dos candidatos presidenciais, Daniel Noboa conseguiu obter 2,31 milhões de votos (23,47% dos votos válidos emitidos) e surpreendentemente avançou para disputar o segundo turno contra outros rivais de direita que, a princípio, pareciam mais favoritos.
Em um Equador imerso em uma crise de representação e diante do cansaço generalizado que a sociedade equatoriana sente em relação ao seu estabelecimento político, Noboa conseguiu representar o novo em oposição ao antigo, com slogans como "Por um novo Equador" ou "Somos uma nova geração".
Assim, enquanto o discurso da candidata correísta Luisa González reivindicava um passado "romantizado", fazendo referência à década de governo de Rafael Correa, o discurso de Daniel Noboa, com 35 anos, falava aos jovens e se concentrava no futuro.
Chegando ao segundo turno, bastou o alinhamento do variado espectro político e social anticorreísta para que Daniel Noboa vencesse sua oponente por uma margem estreita de votos.
Em resumo, diante do envelhecimento prematuro da política progressista equatoriana, a vitória de Daniel Noboa demonstra a capacidade de renovação política e liderança na conservadora direita equatoriana.
Correio da Cidadania: Como avaliar a presidência de Guillermo Lasso? Que fatores levaram à derrocada de seu governo a ponto de decretar o fechamento deste congresso e forçar novas eleições?
Decio Machado: O governo de Guillermo Lasso é possivelmente o pior governo que o Equador teve ao longo de sua história republicana. É um governo composto apenas por elites brancas, onde as mulheres ocupam cargos ministeriais secundários e no qual todos os seus membros estão vinculados ao mundo corporativo. Eles nunca entenderam a política, nunca se importaram com o país e menosprezaram o papel do Estado. Um governo onde os níveis de ineficiência e corrupção são escandalosos.
Mas mais grave do que tudo isso é que o governo de Guillermo Lasso tem sérios indícios de vínculos com o narcotráfico, algo que não é tão surpreendente, considerando que o presidente é proprietário do segundo banco mais importante do país, e é nas instituições financeiras que as redes criminosas lavam seus ativos.
A partir disso, uma série de ações investigativas foram iniciadas no Legislativo equatoriano, que resultariam em um julgamento político que deveria levar à destituição do atual presidente do Equador. Dois dias antes desse julgamento político, Lasso dissolveu a Câmara de Representantes e convocou essas eleições antecipadas.
Podemos definir o governo de Guillermo Lasso como um governo fracassado e desconectado da realidade do país, sem proposta econômica exceto o benefício das elites empresariais mais próximas ao governo, e durante o qual o país se tornou um dos principais centros de drogas na América Latina e elevou seus indicadores de violência a níveis nunca antes vistos no Equador.
Correio da Cidadania: Para o público brasileiro, o que decreto de morte cruzada significa exatamente? O que você pensa deste dispositivo?
Decio Machado: A "muerte cruzada" é o termo usado para se referir ao mecanismo de destituição do presidente do Equador e à dissolução da Assembleia Nacional (o congresso equatoriano), conforme previsto nos artigos 130 e 148 da Constituição vigente.
Sob causas, formas e prazos estabelecidos, o artigo 130 permite que o Legislativo destitua o presidente da República com uma maioria qualificada de dois terços dos parlamentares, enquanto o artigo 148 confere ao presidente o poder de dissolver o poder legislativo, como ocorreu em maio deste ano no Equador. Isso permite que ele governe por decreto durante seis meses até o estabelecimento de um novo governo eleito nas urnas.
Do meu ponto de vista, é um grave erro dos constituintes equatorianos permitir que o presidente da República possa dissolver o poder legislativo. A solução para uma crise democrática passa por mais democracia e não por menos. Permitir que um governo em crise governe por decreto em um país que o questiona responde a lógicas autoritárias e não aos processos constituintes pós-neoliberais, como era o caso da Constituição de 2008 no Equador.
Correio da Cidadania: Quais perspectivas se abrem para o curto mandato de Noboa? Há chances de estabilização do país?
Decio Machado: O governo entrante administrará o país por apenas 18 meses, sendo um governo transitório até um novo processo eleitoral que ocorrerá no primeiro trimestre de 2025, com uma nova posse prevista para o final de maio desse ano.
O presidente Noboa assumirá as rédeas de um país imerso em uma grave e multifacetada crise: de segurança, com o Equador atualmente registrando uma taxa de mais de 40 homicídios para cada 100.000 habitantes; de representação política, onde a legitimidade da classe política e das instituições públicas está diminuindo cada vez mais em uma sociedade que já não acredita em nada nem em ninguém; e econômica, que resulta na semiestagnação desde 2015, após o fim do "boom das commodities". O Equador é o único país da região que ainda não recuperou os indicadores macroeconômicos anteriores à pandemia de 2020. Não houve uma verdadeira recuperação econômica, como sugere a falácia discursiva do governo; o que o país experimentou foi apenas um "efeito rebote" após a paralisia econômica causada pelo coronavírus.
Os dois últimos governos, liderados por Lenín Moreno e Guillermo Lasso, foram tão desastrosos que a Daniel Noboa bastaria reduzir os índices de violência e insegurança interna, e alcançar certo dinamismo econômico com algum investimento estrangeiro e geração de empregos dignos para poder aspirar à reeleição em 2025.
Apesar de Moreno e Lasso terem deixado o patamar muito baixo, Noboa não terá facilidades. Ele conta apenas com 14 cadeiras em um parlamento de 137 legisladores, onde a bancada correísta é a principal oposição. O fato de o país estar imerso novamente em um processo pré-eleitoral em poucos meses não ajudará na geração de consensos.
Correio da Cidadania: Como observa a entrada em cena do narcotráfico num país visto internacionalmente como mais imune a esta influência? Há preparo suficiente do Estado nacional em lidar com este poderoso ator transnacional?
Decio Machado: O Equador tem estado historicamente sob pressão do narcotráfico desde a década de 1990. Sua posição geográfica, situada entre a Colômbia e o Peru, o tornou um país de trânsito. Posteriormente, após o processo de dolarização em janeiro de 2000, também se tornou um mercado para a lavagem de dinheiro. No entanto, nos anos seguintes, isso não implicou em um aumento significativo do crime dentro de suas fronteiras.
A violência começa a aumentar quando a administração Moreno importa a guerra dos Estados Unidos contra as drogas. Até então, a droga passava pelo território equatoriano, deixava uma pequena parte para o microtráfico interno e saía por portos e aeroportos com destino aos Estados Unidos e Europa, que são os mercados onde essas redes criminosas geram grandes lucros.
Esse erro tático, devido à subserviência dos governos de Moreno e Lasso à política antidrogas da Casa Branca, é a origem da situação que o país enfrenta hoje, agravada quando os cartéis mexicanos começam a pagar com mercadorias a seus parceiros locais, desencadeando uma guerra interna entre gangues pelos mercados e pontos de venda internos.
Quando Condolezza Rice, durante a administração Bush, redefiniu o conceito de "Estado falido" - termo surgido nos anos 1990 após o colapso da União Soviética - ela falava de um Estado onde redes criminosas haviam penetrado seu sistema político, seu sistema judicial e seu sistema de segurança... Bem, no Equador, o narcotráfico financia campanhas eleitorais e penetra o Estado em seus múltiplos níveis, comprando e chantageando juízes, e evidentemente tem influência sobre determinados comandantes e membros da Polícia Nacional e das Forças Armadas.
Correio da Cidadania: Alguns analistas dizem que novamente o movimento Revolução Cidadã não obteve o necessário apoio dos grupos indígenas organizados no país, num contexto onde se votou em plebiscito a proibição de exploração de petróleo em área amazônica, no chamado Parque Yasuni. Como observa essas diferenças entre um grupo político tido como progressista e movimentos que têm uma visão mais radical de preservação da natureza e a própria defesa de outro modo de vida?
Decio Machado: Uno dos elementos característicos da década de gestão de Rafael Correa no Equador de 2007 a 2017 foi sua problemática relação com os movimentos sociais, não apenas com o movimento indígena, mas também com o movimento de mulheres e o ambientalismo. A falta de reflexão crítica por parte do correísmo faz com que essas feridas ainda não tenham cicatrizado.
Rafael Correa criticou seu candidato presidencial nas eleições de 2021, Andrés Arauz, quando este tentou se aproximar do movimento indígena. Neste processo eleitoral de 2023, foi o líder da Confederação Nacional Indígena do Equador (CONAIE) quem propôs apoiar o correísmo, desde que este se comprometesse a atender às demandas políticas do povo indígena, mas na prática tudo ficou em nada.
Para os setores sociais, apoiar um partido político implica, além da vontade, acordos concretos. Vimos isso na Colômbia com Gustavo Petro e o Pacto Histórico. Sem acordos de governo e até mesmo nomes em determinadas áreas de gestão, qualquer posicionamento público a favor da Revolución Ciudadana por parte dos movimentos sociais seria apenas submissão.
Enquanto a Revolución Ciudadana e seu líder histórico não entenderem isso, continuarão disputando os processos eleitorais sem o apoio da rede social organizada no Equador. E, os fatos confirmam, sozinhos não avançam.
Correio da Cidadania: Como observa a chamada onda progressista latino-americana, iniciada em 1998 com a eleição de Chávez na Venezuela e governos de perfil esquerdista em praticamente todos os países sul-americanos na primeira década dos anos 2000? Como avalia o atual estágio dos grupos políticos que protagonizaram esta onda, após crises estruturais em todos os países, retornos de governos de direita, alguns deles até de perfil neofascista e, apesar de tudo, novas vitórias eleitorais deste campo?
Decio Machado: Na minha atividade como consultor político, tive a oportunidade de assessorar diversas organizações políticas e governos associados ao progressismo na América Latina, o que me permite distinguir dois momentos.
No primeiro momento, situado na primeira década e meia do presente século, apesar das diferenças entre eles, o progressismo compartilhava pelo menos quatro características: o fortalecimento/reposicionamento dos Estados após o período neoliberal; a implementação de políticas sociais compensatórias como eixo das novas governabilidades; o modelo extrativista de produção e exportação de commodities como base da economia; e a realização de grandes obras de infraestrutura.
Hoje, após o breve período de restauração política conservadora, a realidade daquele primeiro período é muito mais tênue. Estamos falando de governos muito mais conservadores, mais domesticados e com menos pretensão de reformar o sistema do que os do passado. Para citar apenas alguns casos na região, temos Lula aliado a Alckmin no Brasil, Lucho Arce confrontado com Evo Morales na Bolívia, a deriva argentina que fez o candidato do peronismo progressista ser Sergio Massa. Enfim, independentemente das avaliações, estamos diante de outra realidade cuja capacidade de encantamento para os cada vez mais amplos setores insatisfeitos com a relpolík é muito limitada.
Aqueles que ocupam hoje o espaço da alternativa na política são outros, são as tendências filofascistas em crescimento ao longo e largo do continente. Em última análise, estamos testemunhando um fenômeno de proletarização do voto para a ultradireita, relacionado ao fato de que o progressismo renunciou a uma obviedade axiomática fundamental: os problemas que nossas sociedades enfrentam derivam da estrutura do sistema político-econômico ao qual estão submetidas. Assim, a esquerda vai ficando restrita à defesa desesperada de direitos cada vez mais diminuídos a cada novo ciclo econômico, acomodando-se ideologicamente aos termos políticos que o capital e o mercado vão gradualmente impondo.
Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.
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