Correio da Cidadania

Hannah Arendt e os cadáveres no armário do jornalismo brasileiro

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Algumas poucas pessoas, algumas poucas obras e alguns poucos gestos podem ter a força de mudar o curso das coisas. Na eterna discussão sobre a prevalência dos processos históricos sobre indivíduos, tendo a concordar com diversos argumentos de quem acredita nisso. Exceto para alguns, esses muito poucos que carregam tal força e deixam de ser plateia para serem protagonistas de um tempo e para todos os tempos.
Hannah Arendt foi assim, foi uma dessas. Uma intelectual cuja força arrebatadora da obra foi capaz de alterar conceitos, percepções, práticas.

Em resumo: foi capaz de mudar o mundo. Ao retratar o carrasco na obra maior “Eichmann em Jerusalém” expôs para a humanidade o terrível desconforto que cala em todos nós todos os dias: o demônio, capaz de cometer as piores atrocidades, não era o demônio, mas alguém “terrível e horrivelmente normal”. Aquele ser que está ao nosso lado ou em nós mesmos, segundo ela, “um burocrata que se limitara a cumprir ordens com zelo, por amor ao dever, sem considerações acerca do bem e do mal”.

A cortante definição que nos remete ao espelho nosso de cada dia, o pavoroso embate capaz de horas remexendo na cama sobre termos nos limitado a cumprir ordens com zelo por amor ao dever sem considerações acerca do bem e do mal. Marcante na obra da autora é também a crítica veemente que fez sobre a “adaptação ao novo regime” que os pares dela tiveram ao nazismo que emergia. Naqueles palavrões alemães capazes de juntar uma bíblia inteira em uma palavra ou expressão, essa capacidade camaleônica de “adaptação ao novo regime” leva o nome de “Gleichschaltung”, tratado com desprezo por Hannah Arendt.

Muito longe por parte do autor aqui sequer rascunhar alguma analogia com um carrasco nazista. E aqui estamos diante de um ponto extremamente sério, pois banalizar o horror com analogias reducionistas é pecado irreparável. Algo tão sério que para muitos historiadores tal horror é “irrepresentável”, outra longa discussão teórica que merece todo respeito e expressa a absoluta impossibilidade de se banalizar o horror acima de tudo.

O que podemos fazer é aproveitar a ideia dela, destacada de tal contexto histórico e, portanto, de qualquer analogia com determinado fato, e assim aplicável por todo o sempre, de que o conceito de alguém capaz de tanta aberração pode ser “terrível e horrivelmente normal” e estar entre nós ou em nós todos os dias.

Quanto às omissões diárias ao longo dos anos nas páginas, TVs e sites, foram cúmplices de tudo o que está aí, do show de horror nosso de cada dia nesse Brasil cuja perplexidade de estarmos vivendo um golpe em pleno 2017 não quer passar.

E é assim que chegamos aos dias de hoje, ao Brasil dos dias de hoje, tentando entender, sob este conceito da banalização do burocrata que cumpriu ordens com zelo, e trazendo para minha área de atuação, aquela a qual melhor posso entender por viver nela, do quanto as omissões diárias ao longo dos anos nas páginas, TVs e sites foram cúmplices de tudo o que está aí, deste show de horror nosso de cada dia nesse Brasil cuja perplexidade de estarmos vivendo um golpe em pleno 2017 não quer passar.



Da omissão que, acima de qualquer ideologia ou óbvio reconhecimento dos descalabros das gestões petistas, não pode se desconhecer a aberração e barbaridade do ponto mais básico e elementar de tudo: um vice que conspira abertamente contra a presidência será sempre uma aberração, um escroque, uma pessoa sem princípios morais e éticos para estar à frente de uma nação. Simples assim, sem ser necessário entrar em qualquer outra consideração maior.

Ao se banalizar e justificar – mais do que isso, tornar normal – o ato de um conspirador, de um traidor, de um Judas, banalizamos e autorizamos toda e qualquer outra barbárie, todo e qualquer avanço sobre a Constituição, toda e qualquer censura que agora se abate, toda e qualquer cassação de direitos trabalhistas conquistados com suor e dor através dos tempos. Pois isso estava acima de qualquer gambiarra na Constituição, de qualquer pedalada.

Um homúnculo capaz de conspirar contra o seu par será sempre o mais desprezível entre todos os seres. Não é preciso ser constitucionalista para saber, basta ter um mínimo de formação moral. E no momento em que o horror disso não foi e não é apontado todos os dias por quem tem como mandamento primordial fiscalizar e retratar os atos do poder e dos poderosos é que somos mesmo capazes de nos limitar em nossa profissão de jornalista “a cumprir ordens com zelo”.

Nada é mais repugnante no imaginário popular, através dos tempos, do que o traidor. O Judas. Ponto.

Na prática, recordemos alguns episódios tão caros para exemplificar o quanto fomos cúmplices em nossas páginas virtuais ou de papel e TVs nas omissões diárias que desembocaram nisso tudo que está aí. E que permite a modesta conclusão pessoal, sem jamais ter a pretensão de ser dono da verdade, de que muito do horror que agora bate à porta não teria existido se nesse país existisse uma imprensa minimamente cumpridora dos seus deveres básicos, ressalvadas as exceções de sempre, que, independentemente do lugar onde estão, atravessam a carvoaria todos os dias e saem de roupa branca intacta.

– Há quase duas décadas é sabido que Sérgio Cabral tinha bens incompatíveis com a renda, desde que a nababesca mansão de Mangaratiba foi descoberta. Apesar disso, ninguém foi tão pouco acossado pela imprensa no poder como o ex-governador, muito pelo contrário. Foram parceiros no caos das UPPs que se anunciava, foram cúmplices na patética encenação da “Tomada do Alemão”, foram parceiros quando cruzava os ares nos jatinhos de empresários amigos. Daria para mais 500 itens dessa cumplicidade. Até o dia em que foi preso e, perplexos, alguns perguntavam, como uma comentarista na TV afeita a ironias pobres de seu posto em Brasília: “como ninguém viu isso”?

– Eike Baptista chegou a ter série em programa dominical para explicar como ser empreendedor. É autoexplicativo, não precisa maiores considerações. Suas relações promíscuas com o estado eram conhecidas demais. Mas confortavelmente esquecidas. Até na hora de tomar o caminho de Bangu, já no aeroporto de Nova Iorque, o repórter paralisado diante de tamanho gênio do empreendedorismo se compadecia a perguntar sobre o “Estado malvado” que tomava propina do brilhante homem de negócios. Tadinho… O homem que de dia era Self Made Man e de noite assaltava as burras do estado.

– Eduardo Paes foi tratado em oito longos anos como o maior gestor da história da humanidade. Suas agressões permanentes nas poucas vezes em que era fustigado eram romantizadas, para vergonha de todo carioca, como “fruto de um jeito carioca”.

As sucessivas evidências, do Porto Maravilha às obras olímpicas, passando por abertura de empresa do pai no Panamá, passavam em branco. Os colegas da cobertura diária de prefeitura no período dizem que ele mesmo ironizava alguns órgãos de imprensa chamando de “Diário Oficial”, naquela expressão evidente para quem abaixa muito... Quando chegar sua hora da viagem Nova Iorque/Bangu, espera-se que um repórter não esteja tão embasbacado com o do dia do embarque de Eike e faça as perguntas que nunca foram feitas. Sobre perguntas e reportagens inconvenientes, vale lembrar como ele tratava quem ainda ousava: “baixo astral”.

– O mesmo Paes entregou o carnaval do Rio a uma cervejaria,  passando a coisa pública e o mais lindo cenário do mundo a uma empresa em um contrato que ninguém conhece.

– Vários textos podem e devem ser escritos sobre a aberração das aberrações, o símbolo maior desses anos de barbárie: hoje sabemos que um patrimônio histórico como o Maracanã foi destruído apenas porque um governador queria pegar 5%. Como pode ter ocorrido num estado democrático de direito tamanha aberração sem que a imprensa apontasse para algo tão surreal e abominável? Naqueles dias, quem insistia sobre o tema era tratado como chato, retrógrado e monotemático.

– Enquanto José Mariano Beltrame era cortejado diuturnamente pela imprensa, o genocídio de pretos e pobres crescia a níveis inacreditáveis no Rio de Janeiro. As UPPs eram louvadas como o maior feito da história da humanidade, algo como dividir as águas do mar e permitir a travessia de todos (brancos e ricos, claro). A realidade já apontava para o contrário, todos sabiam, mas a cumplicidade não deixava que o dedo apontasse. Na Maré, 10 inocentes foram chacinados pela polícia de Beltrame. No Chapadão, cinco meninos morreram com mais de 100 tiros em um carro. Muitos outros. Todos no pé da página por apenas um dia.

– Na área de esportes, a CBF e seus cartolas eram tratados como Steve Jobs dos trópicos por boa parte da imprensa. Suas peraltices eram todas por demais sabidas, mas adentravam mesas-redondas como quem apresenta o novo iPhone diante de plateias embasbacadas. Havelange chegou a ser chamado ao vivo de “o homem que nunca sua” (eu vi, tá lá no arquivo) por um desses que se enquadram no conceito de “cumpridores de ordem”.

Até que o FBI fez o que, salvo as exceções de sempre, a imprensa daqui nunca fez. E aí surgiu a onda de oportunismo jamais vista, quando o aliado incondicional de ontem passou a tacar impiedosas pedras. Como agora com Cabral. Até aquele que era atachê deles deu pancada no Teixeira e no Havelange. E também aquele que faz segunda voz no programa da noite de segunda completando as frases de outro, até ele bateu.

– Milhões gastos em confederações de esporte e resultados pífios, salvo nos óbvios sinais de riqueza de seus cartolas. E todos exaltados. “Cases” de gestões vitoriosas. Tinha um exaltado como o “O esporte mais vitorioso do país”. “Isso 9000 de gestão”. Outro era “o Apóstolo das Águas”. Um terceiro “o homem que fazia uma revolução no esporte da bola laranja”. Um diretor de marketing que beneficiava suas empresas e era premiado como gestor do ano por um jornalista jabazeiro. E por aí fomos, até um dia, naturalmente, todos se darem conta de que o esporte brasileiro é um escândalo.

– As Olimpíadas vendidas sem crítica alguma… O número um exaltado como o homem que mudou a história, passando na cara da sociedade seus anos como o mais intocável de todos os tempos, a farsa de visionário. Enquanto isso, pateticamente alguns repetiam na TV os chavões sobre espírito olímpico e desciam a lenha em quem achavam “sem comprometimento”. Hoje sabemos: a realização das Olimpíadas por aqui foi uma sucessão de crimes contra o patrimônio público, contra as finanças públicas, contra tudo. E uma vergonha sem fim para o jornalismo.

– Depois de todos conhecermos a “Lei de Jucá”, aquela “com supremo, com tudo”, um repórter (?) e comentarista de política atônito postou recentemente: “Como isso é possível? Dez dos 13 senadores investigados na Lava Jato estão na CCJ, que vai sabatinar indicado ao STF”. Responde-se: é possível porque muitos repórteres (?) e comentaristas se limitaram a cumprir ordens sem maiores considerações, como já falava Hannah.

– Como é de amplo conhecimento nos bastidores do meio, a regra na imprensa mudou nos últimos tempos: até aqui, foram publicados todos os vazamentos de delação premiada. Os seletivos vazamentos. Como já contamos em outro texto, tem um gabinete togado em Brasília que tem até fila do vazamento. Entra aquela revista, sai, entra um jornal, sai, entra a TV, e assim o falastrão que deveria se ater a responsabilidade de sua suprema função vai cumprindo o que Jucá falou.

De alguns meses para cá, a regra mudou: agora, como foi decretado pelo comando de uma redação, só quando tiverem públicas essas delações, só quando o documento estiver disponível (aí não tem mais jeito de segurar, né?). Ou seja: antes valia o vazamento sem documento. Com o vento pegando alguns mui estimados, só vai valer quando não tiver mais jeito. Aí, o serviço já cumprido, o golpe dado, o supremo botando pra prescrever, todos saberão o que na imprensa já se sabe, mas agora não se publica até não ter mais jeito: o dono verdadeiro da conta de Cingapura, o depósito na conta da filha, a verdade sobre a saída à francesa com dor nas costas...

É isso, estava lá em Hannah: terrivelmente normais. O cara faz um negócio desses no exercício da profissão de jornalista e depois vai para casa, brinca com os filhos, janta com a família...

Lucio de Castro é jornalista. Produziu a série de documentários Memórias do Chumbo: Futebol nos Tempos do Côndor, série de quatro filmes sobre a relação das ditaduras de Brasil, Argentina, Chile e Uruguai com o esporte. Hoje é responsável pela Agência Sportlight de jornalismo investigativo.

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