Correio da Cidadania

Depois da farsa do golpe: perspectivas da esquerda classista na crise brasileira em 2016

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O desenrolar recente da atual crise se caracteriza por dois fatores: seus vários e por vezes surpreendentes capítulos, tal qual uma novela melodramática da Globo (com a esquerda a resenhá-los diuturnamente, como nas revistas que resumem e especulam sobre os próximos capítulos); e seu caráter ficcional, construindo narrativas que corroborem a comparação com o golpe de 64.

 

Em meio à sucessão frenética de fatos, acompanhados por boa parte da sociedade brasileira (mas não por toda ela), nem sempre uma reflexão política cuidadosa é realizável. Apesar disso, ela é necessária, sob pena de ficarmos a reboque dos fatos e, pior, das versões sobre os fatos – o que parece estar acontecendo, em parte, com a oposição de esquerda (PSOL, PSTU, PCB, MTST, entre outros), ator político que não está diretamente envolvido no processo de impeachment de Dilma.

 

Além disso, o que vivemos em 2016, até agora, torna inevitável o uso do velho clichê marxista: nossa história está se repetindo como farsa. O suposto golpe do impeachment de Dilma não passa de um arremedo do golpe de 64.

 

Quando somamos tais fatores – reflexões precipitadas, versões farsescas dos fatos, comparações históricas inadequadas, envolvimento da oposição de esquerda em conflito de que não faz parte – o resultado não é favorável aos movimentos autônomos da classe trabalhadora brasileira. Assim, parte da militância combativa da oposição de esquerda passa a atuar com os termos e a pauta do discurso – não da prática – lulista. Voltam as ideias a ficar fora do lugar. E se fortalece uma visão dualista da política e da sociedade brasileira: governistas e coxinhas aparentam, com mais força, ser inimigos encarniçados, não o que são de fato: ex-aliados em crise por conta da bancarrota do lulismo.

 

Lulismo e populismo

 

A condução coercitiva de Lula por ordem do juiz Sérgio Moro provocou significativa comoção política nas hostes governistas, e mesmo para além delas.

 

Tal fato deixou evidente a arbitrariedade judicial, em conformidade com a perseguição política que a grande mídia tem feito ao PT. Certamente que, em casos análogos a este, nos momentos em que a arbitrariedade do judiciário se deu a serviço do governismo (casos da admissão da contratação de OSs para realizar atividades-fim na esfera pública ou das protelações de julgamento de ações de inconstitucionalidade relativas a armadilhas privatistas), PT e PCdoB se congratulavam com esse mesmo poder.

 

Mas outro ponto interessa chamar atenção aqui.

 

A pressão sobre Lula fez reemergir toda a identificação social com ele, ainda existente entre a parcela da classe trabalhadora cooptada pelo governismo, bem como entre grande parte da intelectualidade brasileira atuante junto às políticas públicas do Estado. Tantas foram as injustiças sociais visibilizadas nos últimos anos sob o lulismo – contra os povos tradicionais, contra a juventude que foi às ruas desde 2013, contra greves como a dos professores universitários e trabalhadores do IBGE, entre inúmeros outros casos – que salta aos olhos que parte da classe média trabalhadora sob influência do lulismo tenha se mobilizado mais para defender Lula de uma injustiça do que para defender Rafael Braga Vieira (o último preso político das Jornadas de Junho de 2013), os guaranis kaiowás ou outra vítima do neodesenvolvimentismo que nos é imposto.

 

Esta identificação com Lula perfaz exatamente o prescrito pela teoria uspiana do populismo, elaborada por autores como Francisco Weffort, Octavio Ianni e outros nos anos 1950/60: a identificação é individual, do cidadão para com o líder carismático, que nele enfeixa as possibilidade de mudança social, em detrimento do protagonismo dos movimentos classistas dos trabalhadores. Fica claro, então, o viés elitista do raciocínio e do sentimento populistas, pois o líder carismático, já integrado ao sistema político burguês, torna-se o receptor preferencial da sensibilidade popular. Rafael Braga Vieira resta invisibilizado, portanto.

 

Em outras palavras: um líder político, um “incluído”, motiva mais os grupos polarizados pelo governismo a se mexerem politicamente do que as cotidianas agruras dos excluídos e dos demais setores populares, promovidas seja pelo neodesenvolvimentismo lulista, seja pelo neoliberalismo explícito praticado por tucanos, peemedebistas etc. (mas também pelo PT e cia.). Tal operação hierarquizante consubstancia uma cultura política que só reforça a histórica tradição de desigualdade do capitalismo brasileiro – por mais que alguns tenham conseguido ver progressismo na defesa acrítica de Lula ou do PT.

 

Neste sentido, as palavras de Roberto Schwarz - em Cultura e Política, 1964-1969 - sobre a aliança do antigo PCB com a burguesia nacional são oportunas, pois para ele constituiu-se “uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico, um complexo ideológico ao mesmo tempo combativo e de conciliação de classes”, que se assemelha ao lulismo, embora neste reste pouca ou nenhuma combatividade.

 

É evidente a persistência do populismo entre nós, populismo que costuma ser a tradução política de nosso “capitalismo burocrático”, conceito elaborado por Caio Prado Jr. em A Revolução Brasileira para descrever nosso capitalismo amalgamado ao Estado, construção burguesa específica que costuma enredar em suas teias parte da esquerda e dos movimentos sindicais e sociais.

 

Impeachment, dualismo e ideias fora do lugar

 

O mês que antecedeu a votação do impeachment na Câmara, liderada pelo reacionário e corrupto Eduardo Cunha, nos trouxe um festival de equívocos e manipulações.

 

Estabeleceu-se, a partir do campo do governismo, mas atingindo até a oposição de esquerda, uma narrativa simplória, claramente dualista, beirando o senso comum: Dilma e Lula estariam cercados por viscerais inimigos conservadores, que estariam a ameaçar as conquistas sociais do neodesenvolvimentismo lulista. No entanto, tal visão não se sustenta: os inimigos eram até ontem aliados fundamentais dos governos do PT, que, fornecendo base parlamentar e ministerial, tinham garantido justamente aquelas conquistas sociais – bem como, simultaneamente, a degradação de direitos sociais conquistados a duras penas pela classe trabalhadora.

 

Michel Temer fora escolhido pelo PT para ser vice-presidente, Eduardo Cunha era uma das maiores lideranças do aliado preferencial PMDB (ainda mais por ser oriundo do Rio de Janeiro de Cabral, Pezão e Paes, todos unha e- carne com Lula e Dilma por conta da Copa e das Olimpíadas, que deixaram o estado falido), Marco Feliciano fora uma liderança evangélica apoiadora de governos petistas, Bolsonaro manteve-se filiado a um partido da base do governo até ontem. A política de colaboração de classes do PT e do PC do B torna tais alianças não apenas eventuais, mas sempre necessárias.

 

Mais do que lembrar destes fatos, aparentemente esquecidos no momento em que vivemos (e pior: supostamente equacionados por uma análise de conjuntura que, inexplicavelmente, preserva o farsesco caráter progressista do lulismo, a par de tais alianças), o que importa aqui é mostrar o seguinte: Dilma não está caindo por conta das virtudes de suas políticas sociais inclusivas – pois, como já apontado, PMDB, PP, PR e outros partidos conservadores sempre sustentaram tais políticas públicas petistas. Se não é por este bom motivo (fornecido pela narrativa governista), por que, então, o PT está sendo expelido do governo federal por seus ex-aliados, com o apoio da velha oposição da direita liberal (PSDB e DEM)?

 

Porque o segundo governo Dilma tornou-se rapidamente impopular e frágil. Não servindo mais, portanto, para exercer a típica função populista de amaciamento da insatisfação popular por meio de políticas sociais. Por isso o PT não consegue mais liderar o bloco dominante de nosso capitalismo de viés neodesenvolvimentista.

 

Por conseguinte, o discurso progressista do governismo passou mais fortemente a ser uma ideia fora do lugar. Ao mesmo tempo que não consegue sustentar uma versão autoelogiosa dos fatos, capaz de explicar o suposto golpe do impeachment, os defensores do lulismo, na iminência de estarem fora dos postos do Estado, sentem-se ainda mais à vontade para acionar um discurso que não corresponde à sua prática de cooptação dos movimentos sociais, de repressão da insatisfação social, de privatização do Estado, de favorecimento às grandes empreiteiras, indústrias, bancos e ao agronegócio, de predação socioambiental. Já adeptos do neodesenvolvimentismo que não possuem a mesma origem petista-cutista, como Bresser Pereira, podem sem problemas negar o imaginário de esquerda do lulismo: “estamos trocando um presidente que fez tudo pelo acordo de classes” (http://jornalggn.com.br/noticia/tudo-por-um-vice-envolvido-na-lava-jato-por-bresser-pereira).

 

Neste contexto, deve ser relembrado o que é definidor da política populista: sua capacidade de distribuir desigualmente os ganhos sociais em períodos de crescimento econômico, e sua incapacidade de fazê-lo em momentos de crise, quando revela seu caráter conservador e antipopular. O que é comprovado pelos diversos ataques desferidos pelo governo Dilma contra os trabalhadores: Lei Antiterrorista, MP 665/2014, PL 247/2016, entre outros.

 

A farsa do discurso do golpe

 

Dilma, portanto, está caindo não pelas virtudes do lulismo, mas tendo em vista a dinâmica de qualquer sistema populista, que acompanha as crises do capitalismo mundial. Nosso capitalismo burocrático surfou na onda internacional das commodities, mas quando esta termina não há mais riqueza para prover os ricos nem sobras para compensar os pobres (na verdade, conquistas dos trabalhadores maquiadas como dádivas do Estado). Ademais, o populismo continuamente alimenta seus algozes, os conservadores que grassaram junto ao governismo e agora voltam-se contra eles. É o preço que qualquer política de colaboração de classes paga, cedo ou tarde.

 

Em boa medida já sabemos disso tudo, por meio das consagradas interpretações sobre o populismo e o golpe de 64, realizadas tanto por acadêmicos uspianos como por intelectuais trotskistas.

 

Neste diapasão é que podemos compreender o impeachment de Dilma: como um acerto de contas intraburguês, entre as facções do “capitalismo burocrático” (PT, PCdoB – antes de 64 o PTB) e do “capitalismo ortodoxo” - outro conceito de Caio Prado Jr. - ou liberal (PSDB e DEM, antes de 64 a UDN), com os partidos clientelistas transitando entre a hegemonia de um e de outro (PMDB, PP, PR etc. – antes de 64, o PSD). A diferença, porém, é que em 64 efetivamente houve rompimento da democracia burguesa, isto é, um golpe – por conta da movimentação social que ameaçava ultrapassar o pacto populista.

 

Tal quadro inexiste hoje, pois a domesticação dos movimentos populares promovida pelo PT foi de tal dimensão que ainda estamos no início do processo histórico de reconstrução de movimentos classistas, capitaneada de modo fragmentário (e não poderia ser de outra maneira) por CSP-CONLUTAS, MTST, MPL e outras entidades. Em não havendo reformas impulsionadas pelos movimentos sociais, mas sim políticas sociais promovidas pelo Estado, um partido de origem operária como o PT vê alguns aparatos deste mesmo Estado que ele ajudou a empoderar se voltarem contra ele, exclusivamente nos marcos da democracia burguesa à qual o PT aderiu desde fins do século 20, com vistas a amortecer a insatisfação popular.

 

Não cabe aqui um debate teórico sobre o que é ou não golpe. Mas parte-se do entendimento de que para haver de fato golpe – golpe de Estado, com mudança de regime, no sentido forte e original do termo – é necessário, pelo menos em sociedades mais complexas como a brasileira, um ato de força, capaz de reprimir movimentos sociais e políticos combativos. Caso contrário, bastam manobras jurídicas, midiáticas e outras, de caráter antidemocrático – como é forçosamente recorrente na democracia liberal – para imobilizar setores, como o lulismo, que se restringem aos marcos da ação política na institucionalidade estatal (eminentemente de caráter burguês).

 

Assim, não se trata de golpe, se o impeachment é um recurso comum à democracia liberal burguesa, já usado no caso brasileiro contra Collor, com o apoio – correto, diga-se de passagem – da esquerda da época (que incluía o PT, diferentemente de hoje). Não é golpe, pois o impeachment de Dilma, lembremos, seguiu as regras, definidas pelo STF no final de 2015, exatamente como pleiteado pelo governismo. Alguém já viu um golpe aplicado sob regras ditadas pela vítima?

 

Alguém conhece algum golpe de Estado – longe do sentido frouxo do termo, tão acionado hoje em dia – que tenha sido decidido no voto, mecanismo fundamental das democracias ocidentais? (Decidido inclusive num rito onde um de seus promotores, o presidente da Câmara Eduardo Cunha, foi – adequadamente – adjetivado como gângster, corrupto, ladrão etc. Alguém imaginaria isso num regime que está se fechando autoritariamente?) Se Dilma acreditasse sinceramente que se trata de golpe, certamente teria, em nome da democracia (esse termo tão vago), decretado Estado de Defesa ou mesmo Estado de Sítio, como permite a Constituição.

 

Por acaso, nos estados e municípios governados por PT e PC do B, estão eles abrindo mão dos partidos dito golpistas de suas coalizões governistas? Se fosse golpe de verdade, por que a CUT não ocupou fábricas no seu berço, o ABC paulista, fábricas estas de propriedade de industriais da reacionária FIESP? Se de fato se crê que vivemos um golpe, com a implantação de um regime autoritário (lembrando sempre que a sociedade brasileira e a democracia burguesas são autoritárias por si mesmas), teremos que aguardar, então, a ida do PT para a clandestinidade... Alguém acredita nisso?

 

Mesmo sendo o impeachment de Dilma meramente uma manobra típica da política burguesa que o PT encampou, não é fácil concebê-lo assim no plano simbólico. Por quê? Porque o PT não tem apenas uma origem popular e operária, ele tem uma origem classista e antipopulista, o inverso do que ele é hoje. E mais: quase toda oposição de esquerda no Brasil se formou politicamente dentro do PT e da CUT, razão pela qual temos apresentado dificuldades em resistir a esse remanescente, mas resistente apelo simbólico do lulismo como algo progressista.

 

Por isso, no plano do discurso, os governistas acionam a farsante versão do golpe (e continuarão a fazê-lo), por isso também parte da oposição de esquerda assumiu este discurso – o que é grave, pra não dizer desastroso, pois assim confunde-se o plano simbólico com o da realidade concreta.

 

A “defesa da democracia” desmistificada

 

Passado o impeachment (embora uma volta de Dilma não deva ser descartada), talvez a força discursiva do governismo, suas ideias fora do lugar, perca capacidade persuasiva. Durante a votação do impeachment, caso extremo de espetáculo da democracia burguesa, esta força atingiu o auge de sua expressividade farsesca. Deputados do PT e do PC do B votavam contra o suposto golpe falando em nome dos trabalhadores que hoje sofrem com o desemprego, em nome dos camponeses massacrados pelo agronegócio da ministra Kátia Abreu, em nome da juventude pobre reprimida pelas diversas polícias, em nome dos indígenas e quilombolas expulsos de suas terras pelas hidrelétricas do neodesenvolvimentismo lulista. O show atingiu seu clímax com a performance histriônica do fascista Bolsonaro e a resposta justa, mas personalista, de Jean Wyllys.

 

A curiosa defesa da democracia nesse processo é desmentida pelos ataques antidemocráticos promovidos por PT e PC do B e operados, por exemplo, por suas bases instauradas na burocracia das universidades: seja no caso das aprovações autoritárias e policialescas da EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares) Brasil afora, seja na tentativa de desmonte do sindicalismo autônomo por meio de acordos espúrios negociados com braços sindicais do Estado como o PROIFES, seja fomentando em suas bases ações para a deslegitimação de greves, ferramenta de luta essencial dos trabalhadores. Ferramenta tão atacada pelo lulismo que não pôde sequer ser cogitada como possibilidade de reação ao falso golpismo...

 

Terminado o ritual do impeachment, o protagonismo da luta política pode voltar às ruas e às classes populares, já que prosseguem os ataques de todos os governos aos trabalhadores, os quais devem se intensificar com um possível governo Michel Temer. Servidores públicos estaduais e outros setores respondem com greves às tentativas de supressão de seus direitos e conquistas.

 

Mas ao contrário do que um senso comum governista tenta fazer crer, não estamos enfrentando uma ascensão conservadora contra o PT. Mas, sim, uma reação conservadora, de que fez e faz parte o PT, contra a movimentação social da juventude e dos trabalhadores, que prosseguem em suas lutas por direitos e tomam impulso ainda maior a partir das Jornadas de Junho de 2013.

 

Algumas evidências que apontam neste sentido, apenas a título de exemplo: o encarceramento da juventude pobre e negra no Brasil se acelerou nos governos lulistas (http://www.cartacapital.com.br/politica/o-governo-dilma-e-extremamente-repressivo-4045.html); a terceirização e precarização nas relações de trabalho, supressoras de direitos e que atingem principalmente negros, mulheres e LGBTs, triplicou no mesmo período (http://www.ihu.unisinos.br/noticias/541795-nos-governos-lula-e-dilma-a-terceirizacao-saltou-de-4-milhoes-para-127-milhoes-de-trabalhadores).

 

A reação do conservadorismo - frente à retomada das lutas sociais e greves desde o início desta década, como bem aponta Marcelo Badaró Mattos – acabou por engolfar alguns de seus promotores, seja o PT, que passou a ser vítima além de algoz, mas também o PSDB e outros partidos tradicionais.

 

O problema para a oposição de esquerda é que uma leitura rasa do conservadorismo como ascensão – não como reação às lutas sociais - reforça o enganoso dualismo na política brasileira, entre um polo supostamente progressista liderado pelo PT e outro conservador, da direita liberal.

 

Na verdade, o que temos é a falsa narrativa de uma ascensão conservadora contra o PT, desenvolvida pelo lulismo para reencantar suas frágeis bases sociais e se desresponsabilizar por todo o quadro construído por ele mesmo. É neste sentido que parece apontar o dirigente petista Valter Pomar (http://valterpomar.blogspot.com.br/2016/03/notas-sobre-o-dia-18.html): ao confessar que se buscava evitar a desmoralização do PT como referência de esquerda antes que lutar contra o impeachment com alguma chance de vitória, fica transparente que o “não vai ter golpe” de maneira alguma era uma luta pela democracia, mas apenas uma operação de agitprop, que objetivava o salvamento das bases eleitorais que orbitam o lulismo.

 

Daí as manifestações governistas terem consistido em propaganda pré-eleitoral de Lula, oportunamente aproveitada por prováveis candidatos aos postos do legislativo e do executivo. Os atos se concentraram em sua figura carismática, nunca relacionando a ofensiva antilulista da direita liberal com o cerceamento de direitos dos setores populares de nossa sociedade. E não poderia ser de outra maneira, visto que Lula, garoto-propaganda de empreiteiras corruptas mundo afora, objetivamente não pertence mais ao campo popular, mas, sim, ao mundo do grande capital. E, uma vez que os ataques aos trabalhadores e à juventude prosseguiram nos governos Lula e Dilma, como falar em defesa da democracia nesses termos?

 

Esta operação de agitprop governista se desmascara mais claramente pois, na proporção que as chances de aprovação do impeachment de Dilma aumentavam substancialmente, o discurso governista do “não vai ter golpe” assumia ares triunfalistas – por exemplo: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/10-coisas-que-o-Brasil-inteiro-precisa-saber/4/35808 (onde constam afirmações que destoam da realidade do iminente impeachment, como “mas isso não acontecerá” ou “o fascismo não passará!”). Se a derrota era quase certa, este otimismo irracional só se explica pela intenção de manipular e reanimar maquiavelicamente a ex-militância petista, não de lutar contra um golpe imaginário e pela democracia.

 

O lulismo não mais popular

 

Ocorre que esta mobilização governista sensibilizou apenas certos setores sociais. Com efeito, as pesquisas realizadas sobre as manifestações de coxinhas e governistas apontam incríveis semelhanças no perfil geracional (mais velho que a média brasileira) e de classe (renda e escolaridade muito acima das do restante da sociedade) de quem foi às ruas estimulado exclusivamente pela pauta do impeachment: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2016/03/1752481-46-dos-que-protestaram-contra-impeachment-aprovam-estao-dilma.shtml.

 

Ao contrário do que a máquina publicitária lulista quis fazer crer – e parte da esquerda classista comprou esta ideia – a maior parte dos jovens e trabalhadores pobres não se pautou pela luta intraburguesa do impeachment e pelo slogan do “não vai ter golpe”: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-04/classes-c-e-d-veem-debate-sobre-impeachment-como-briga-da-elite-diz.

 

Isto se evidencia pelos relatos de alguns dos que foram aos atos governistas: antigos e ex-militantes se reencontravam, professores universitários e burocratas operadores das políticas públicas lulistas confraternizavam tirando selfies, artistas consagrados conferiam aos atos a melhor atmosfera de encantamento e não de luta – nada que denunciasse a gravidade de um golpe que estivesse a ocorrer ou a necessidade de construção de uma resistência popular contra um hipotético regime autoritário. Deve ser registrado que extratos da juventude mais intelectualizada também se fizeram presentes, até onde se pode perceber de modo impressionista.

 

Aliás, as manifestações governistas atestaram todo o envelhecimento do padrão de politização das redes societárias petistas-cutistas. Seus atos foram absolutamente tradicionais e hierárquicos: grandes palcos e estruturas, figuras públicas do mundo parlamentar burguês dominando os discursos, artistas consagrados se apresentando e falando a velhos e novos fãs. As manifestações foram exclusivamente demonstrativas, isto é, apenas levaram gente às ruas para pressionar o Congresso; ocupações e outras modalidades de ação direta não foram cogitadas (exceção feita aos atos do MTST, que fecharam rodovias).

 

Como não poderia deixar de ser, as lições mobilizatórias das Jornadas de Junho de 2013 – horizontalidade, espontaneidade, radicalidade, presença ostensiva no espaço público urbano, ocupações e pichações de símbolos institucionais do poder público e privado, enfrentamentos com as forças repressivas etc. – continuam sendo tabu para os lulistas.

 

Os desafios da oposição de esquerda diante do lulismo em crise

 

A oposição de esquerda, que busca manter uma perspectiva classista das lutas, teve dificuldades para se situar no último período da atual crise brasileira. Em parte ela assumiu o discurso governista do golpe. Entender as razões desse processo é fundamental para seguirmos na luta anticapitalista.

 

A perda da base de sustentação conservadora que o lulismo sempre teve forneceu a aura de progressismo que o PT tinha perdido. Com isso, setores do PSOL passaram a flertar novamente com as bases eleitorais e sociais governistas – seja por acreditarem na leitura do avanço conservador, seja por mero cálculo político (neste caso, especialmente por parte de suas figuras públicas parlamentares). Se este segundo caso revela oportunismo eleitoreiro, o primeiro reveste-se até de maior gravidade, dos pontos de vista ideológico e estratégico.

 

De fato, houve de tudo nos dois últimos meses: militantes sentindo-se como se estivessem nas décadas de 1960 e 70, alarmismo quanto à ameaça fascista no Brasil, trotskistas ressuscitando o velho etapismo pecebista (com fórmulas do tipo “primeiro defendemos Dilma, no futuro a derrubamos”), gente que prometera nunca mais votar no PT nos segundos turnos eleitorais voltando a raciocinar em termos do “menos pior” (o pior seria o golpe, é claro) etc.

 

Parte da intelectualidade da oposição de esquerda, impactada pelo conservadorismo da direita liberal (parlamentar, judiciária, midiática) e pelo chamamento hipócrita do lulismo, mas também por razões acadêmicas ingênuas (foi ou não golpe? o fascismo está voltando?), passou a crer autenticamente no discurso governista, sendo “mais realista do que o rei” - afinal de contas, a máquina publicitária lulista, como antes demonstrado, apenas realizou uma operação pragmática de salvamento eleitoral do PT, pois sabe que não há golpe nenhum. Este quadro está em conformidade com o corte de classe de quem foi às ruas contra o impeachment: classe média trabalhadora, intelectualizada e de maior renda.

 

Além disso, desde 2014, ao menos, a oposição de esquerda, corretamente, vinha negando, na maioria das análises de conjuntura feitas, as condições para a ocorrência de um golpe de Estado no país. Um súbito reposicionamento a respeito por parte de alguns, sem o devido embasamento analítico, pode ser explicado pela pressão exercida pelo governismo.

 

A oposição de esquerda se origina da matriz petista-cutista e toma mais corpo, quando da criação do PSOL, ainda no início do lulismo no governo federal. O contexto que hoje vivemos, de derrocada do neodesenvolvimentismo, cria um novo e desafiador contexto para a esquerda classista. Se para muitos o chamado programa democrático-popular está falido – e objetivamente, está, sem dúvida – o mesmo não se dá na subjetividade de parte da militância combativa nos movimentos sindicais e sociais, que volta e meia cede às tentações de se comportar como uma bem intencionada franja de esquerda do lulismo – como atesta seu apego dissimulado ao “Fica Dilma” ao invés de lutar por eleições gerais ou outra bandeira menos vinculada à estabilidade da democracia burguesa.

 

Um caminho para responder positivamente a estes desafios é ter em conta a perspectiva histórica nacional. Pouca ou nenhuma novidade estamos vivendo. A esquerda classista brasileira sempre se viu apertada entre o conservadorismo liberal e o populismo. Já enfrentou a elitista ditadura militar e a ditadura varguista de base popular. Nossos antepassados - as dissidências do antigo PCB, os agrupamentos trotskistas, a POLOP e outras esquerdas marxistas revigoradas, os que fizeram a luta armada, os educadores populares, os militantes basistas e autonomistas etc. – aprenderam a negar, com maior ou menor dificuldade, o “mal menor” do colaboracionismo de classe.

 

A saída consiste em seguir apostando nos movimentos populares classistas. Apenas eles produzirão novos acúmulos para a classe trabalhadora, apenas eles darão sustentação à atual oposição de esquerda. Por meio deles, dialogando com as massas populares, será possível superar mais essa experiência reformista fracassada no Brasil, a do lulismo – experiência degradada que almeja nos levar junto em seu apego à democracia liberal. Mas sabemos, seja como militantes combativos, seja como marxistas, que democracia só pode ser pensada, praticada e defendida com a devida clivagem de classe, não em termos abstratos burgueses. Nosso compromisso é com os explorados e oprimidos.

 

 

Marco Antonio Perruso e Viviane Becker Narvaes são militantes do PSOL e do ANDES-SN.

Comentários   

0 #1 O saboneteRafael 22-05-2016 03:06
Me parece que o Lula joga sempre no lado que esta ganhando . Nao me surpreendo se depois de amanha ate o Caido o apoiar .Ja aconteceu com o ministro da economía da ditatura militar .
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