Correio da Cidadania

“Não sei até quando Dória viverá de factoides e ignorará todas as discussões estruturantes”

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A gestão de João Dória já vai completar 100 dias e o que se registrou até aqui foram mais performances do que debates e ideias estruturantes. Foi esse o teor da análise do arquiteto e urbanista João Whitaker, em longa conversa com o Correio da Cidadania, que também abordou a gestão do ex-prefeito Fernando Haddad, em especial na questão da habitação, onde foi o secretário no último ano de mandato.

“A gestão de uma cidade como São Paulo tem um nível de complexidade gigantesco, as pessoas não têm noção. Ainda assim, conseguir sanear finanças, pagar todos os precatórios, deixar dinheiro em caixa, renegociar a dívida pública, deixar uma margem fiscal inédita na cidade e bater recordes de investimentos... Quando a mídia falou desses aspectos?”, disse João, que também elencou uma série de atitudes de manipulação tanto em relação à gestão da prefeitura como às entrevistas que ele mesmo concedeu à chamada grande mídia.

João Whitaker não tem dúvida em considerar a gestão do ex-prefeito “revolucionária” do ponto de vista administrativo, ainda que percalços e polêmicas, como a aliança com o PP de Paulo Maluf, tenham feito parte da trajetória. Sobre a promessa das 55 mil mordias, Whitaker garante que foi cumprida, além de diversas outras politicas estruturantes encaminhadas. Na conversa, ele ressaltou que transformações autênticas não se dão no prazo de um mandato e diz temer pela gestão de Dória, a seu ver baseada em muito marketing e poucas ideias efetivas para a melhoria da cidade.

“Resumindo: cria-se um factoide e gera-se uma discussão em torno de algo que não é relevante. Essa é a lógica do Dória. Minha impressão é que tal lógica não se sustenta, tem fôlego curto. Chega uma hora que perde a credibilidade. Ache no mundo um empresário que queira comprar o serviço funerário de São Paulo. É cômico. Portanto, quando acabar a baboseira, o que será feito do ponto de vista estrutural?”, indagou.



A entrevista completa com João Whitaker pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, qual balanço você faz da gestão de Fernando Haddad à frente de São Paulo? O que deu certo, o que deu errado?

João Whitaker: O balanço é extremamente positivo, mas nas políticas públicas urbanas, para ter plenitude de transformação, são necessários mais de 4 anos. Pra qualquer governante. Políticas sérias precisam de um tempo de maturação e implementação maior do que uma gestão.

A gestão assumiu a prefeitura num quadro de desolação absoluta, com endêmica crise de corrupção, os esquemas do AREF e ISS na aprovação de projetos, totalmente contaminados por corrupção. Até entender tudo e colocar a casa em ordem, criar uma nova Secretaria de Licenciamento para limpar um pouco das lógicas de corrupção de antes já demandou um tempo significativo.

Somando-se a isso o fato de que logo após o início da gestão tivemos os eventos de junho de 2013, que até hoje não foram bem assimilados, e recaíram sobre todas as prefeituras, tem-se quase 40% da gestão dedicada a colocar a casa em ordem, no meio daquele maremoto de manifestações.

Se já não é fácil implementar tudo em quatro anos, a gestão teve efetivamente, no mínimo, um ano a menos. Dado o prazo muito curto, acredito que foi uma gestão revolucionária, pois fez em cerca de três anos muito mais do que a gestão Kassab.

Infelizmente, perdemos a eleição e a oportunidade de entrar num período onde normalmente se complementariam a implementação de uma série de políticas do primeiro mandato, que poderiam dar um nível maior de completude à gestão. Falo das ciclofaixas, da merenda orgânica nas escolas, qualquer política precisa de maior tempo de maturação, mesmo tendo colhido alguns frutos.

Isso é mais significativo por conta do que considero a grande qualidade do Fernando Haddad: não ter medo de promover mudanças estruturais. Temos hoje no quadro político brasileiro uma maneira generalizada de atuação do político, no sentido de sempre se optar por iniciativas de curto prazo e pouca transformação, porém muito vistosas, com resultados eleitorais certeiros. Uma política estrutural exige 8, 10, 12 anos para refletir de fato na sociedade. Essa é a norma, o político tem medo.

Na hora de fazer, por exemplo, uma melhoria na mobilidade da cidade, o governo do estado pegou 1,2 bilhão, que dariam 10km de metrô, pra fazer novas e inúteis faixas na Marginal Tietê. Por quê? Porque aparece rápido, em seis meses o serviço está feito, geram-se votos, o responsável aparece, faz um barulho... Fazer metrô é abrir buraco, atrapalhar a população e ser xingado por um bom tempo, porque a obra demanda mais tempo.

Haddad escolheu fazer a coisa mais importante do ponto de vista da funcionalidade da cidade, aquilo que São Paulo mais precisava, que foi a opção radical e definitiva pelo transporte público e de massa, em detrimento do automóvel. Isso tem peso, e precisa ser feito também nas pequenas e médias cidades brasileiras. Nessas cidades também se segue a lógica imediatista do carro, constroem-se anéis viários em vez de investir em ônibus, VLT, um sistema moderno. Cidades como Ribeirão Preto e Sorocaba também optam por obras que favorecem os 30% de habitantes que usam carro, quando poderiam fazer diferente.

A opção pelo transporte público de massa deveria ter sido feita há muito tempo, mas nunca tinha sido. Só essa já é uma demonstração de coragem política, ao colocar a mudança estrutural acima da preocupação eleitoral. É a característica mais importante do Haddad, ele sempre falou: “se não me reeleger, paciência, vou fazer o que acredito ser o melhor”. Isso aumenta aquilo que falei: a necessidade de tempo de maturação para políticas estruturantes, sobretudo de mobilidade urbana.

A derrota eleitoral tem a ver com o que expliquei, pois não houve tempo para receber dividendos eleitorais e não houve tempo para se compreender a qualidade da gestão.

Correio da Cidadania: Acredita que, ao lado do que você já pontuou, em meio a um momento onde políticos se dizem não políticos, enchem o debate público de clichês e raciocínios rasos, Haddad pagou mais pelo desgaste de seu partido do que pelo seu mandato em si?

João Whitaker: É uma mistura de fatores. Acho que de fato o peso do debate nacional, com a perseguição implacável ao Lula e ao PT, teve maior responsabilidade na derrota do que o tsunami de superficialismo que é o Dória. Nos 15 dias anteriores à eleição prenderam dois dos principais ministros do governo Lula, sendo um deles, o Mantega, inocentado logo na sequência. Era absolutamente um factoide eleitoral, proposital, mas colocá-lo na cadeia, uma figura bem reputada, com capa de todas as revistas da grande mídia e sua campanha interesseira, mais a campanha também vergonhosa contra o próprio Haddad, antiética ao extremo, chegamos a esse resultado.

Não estou falando à toa. Dei entrevistas enormes pra Folha, Estadão, explicando largamente os detalhes das políticas e ideias que levávamos adiante pra depois ver reportagens sacanas, picaretas, o que ficou cristalino logo nesse começo de ano, quando o UOL publicou uma entrevista comigo absolutamente falsificada, com uma manchete que tentava me queimar, me associando a uma ideia de criminalização dos movimentos sociais. Portanto, a batalha da mídia contra o Haddad foi implacável.

A Jovem Pan escalou o Marco Antônio Villa pra atacar diariamente a honra do prefeito, de forma bem questionável até juridicamente, pra citar um exemplo mais cabal. Depois escalou repórter pra passear com o Doria em Abu Dhabi, Doha etc., nessa viagem totalmente sem nexo que ele fez logo no começo do mandato. Uma mudança de tratamento inacreditável.

A Band rompeu com o prefeito por causa dessas mudanças estruturais. Haddad logo de cara resolveu tirar a Fórmula Indy da cidade, uma aberração, que custava uma fortuna pra cidade, causava transtorno e gerava frutos particulares, mas enchia os cofres da Band. E assim começou a perseguição implacável de mais esse grupo de mídia. Aliás, a Band também mandou repórter para passear com o Dória nessa viagem.

Correio da Cidadania: Ou seja, o velho cerco conservador também continua a recusar qualquer mudança de paradigma.

João Whitaker: Foi uma fortíssima mobilização da mídia contra o prefeito. E também do Ministério Público Estadual. A um mês da eleição, com todo o estardalhaço da mídia, entrou com uma ação de improbidade por conta daquela mudança na Agenda do Dia, ideia pra provocar a reação raivosa do Villa. Foi manipuladíssimo, ele não alterou a agenda, ele apenas copiou a redação da agenda do governador Alckmin, exatamente pra testar a reação raivosa da mídia. Tratava-se de um dia de despachos internos, em ambas as agendas. Depois a ação caiu no colo de uma juíza séria e nada aconteceu. Dizer que era improbidade? Isso é algo seríssimo, mas o promotor se deu o trabalho de gastar recursos públicos pra fazer essa cena, com todo o apoio e estardalhaço midiático.

Outro exemplo: tive um prédio da área de habitação que teve sua construção paralisada pela justiça e o MP a 10 dias da eleição sem sentido nenhum, de forma que fizemos o agravo ao desembargador, da instância superior, que retirou o embargo na hora. Uma obra que entregaria 64 unidades, perdendo um dinheiro enorme por conta da paralisação, coisa de 10 mil reais por dia. Somando tudo isso fica difícil governar.

Tínhamos uma situação onde a dificuldade de governar era enorme, foi construída uma máquina que juntava setores da imprensa, da justiça e do MP pra fazer ataques permanentes à gestão do prefeito. Pagamos o preço desse cerco, ao lado de políticas que levam tempo pra consolidar.

Quantas vezes saiu na mídia que foi feito um sistema inédito de merenda escolar com alimentação oriunda da agricultura familiar e agroecológica? Quantas vezes saiu que construímos duas usinas de triagem – por incrível que pareça não existiam – e mudamos a lógica da coleta de lixo na cidade? 80% das ações cotidianas da prefeitura não foram veiculadas.

A gestão de uma cidade como São Paulo tem um nível de complexidade gigantesco, as pessoas não têm noção. Cuidar de uma cidade em contexto de golpe de Estado – como na reta final -, de animosidade com o governo federal, pois a cidade de São Paulo sofria pra receber repasses, quando recebia, inclusive por parte do governo Dilma, ao lado de uma grande recessão econômica, é bem difícil.

Ainda assim, conseguir sanear finanças, pagar todos os precatórios, deixar dinheiro em caixa, renegociar a dívida pública, deixar uma margem fiscal inédita na cidade e bater recordes de investimentos... Quando a mídia falou desses aspectos?

Já no momento eleitoral, vieram ataques pela esquerda que prejudicaram também. Agora que teremos um desastre com o Dória, setores da esquerda poderiam um dia sentar, por mais que tivessem críticas compreensíveis, e repensar algumas coisas.

A maneira como o padre Júlio e setores do PSOL saíram batendo no momento da crise do frio foi, a meu ver, absolutamente antiético. Porque em qualquer grande cidade do mundo, quando se sofre uma onda de frio como essa, existe dificuldade de atender tudo, ainda mais quando a gestão se preocupa em humanizar a questão. Agora é diferente, o novo prefeito já começou cercando tudo e todos e tirando os sem tetos da vista. Mas em qualquer grande cidade do mundo a questão é difícil.

Esconderam que se colocou em prática um programa com 30 mil vagas de acolhimento para moradores de rua, ampliou o número de albergues em nível inédito, criou albergue específico para a população LGBT, para moradores que queriam manter animais de estimação, conseguiu controlar o ímpeto, algo difícil, da abordagem policial... O Dória já chegou combatendo tudo isso e a gritaria geral foi bem menor.

A campanha que se fez na época, e também nas eleições, a esconder tudo que era feito, também pela esquerda, certamente causou prejuízos. Juntar tudo deixa difícil qualquer vitória eleitoral, ainda mais no meio de um tsunami conservador que levou o Trump à presidência dos EUA e se reflete por aqui também.

E a manipulação continua, já que as aberrações do Doria têm uma suposta aprovação – não acredito no DataFolha, mas estão tentando emplacar o novo prefeito. Se ganhássemos as eleições teríamos chances de concluir políticas estruturantes, mesmo diante de marcação cerrada dos setores conservadores. Do jeito que está o cenário seria incerto, talvez tivéssemos enormes dificuldades numa segunda gestão, tamanho o grau de perseguição midiática do MP, mas poderia dar certo.

De novo sobre o MP: os secretários eram chamados a irem lá prestar contas duas vezes por semana, sempre ameaçados de conduções coercitivas e que tais, como aconteceu comigo até em relação à política ambiental, que nem era meu assunto. Toda hora vinha uma intimação desse nível, coisa que os promotores sequer têm direito de fazer, só os juízes. Não generalizo o MP, também me entendi bem com vários promotores, mas é preciso repensar suas práticas, porque do jeito que está é difícil, ainda mais com algumas aberrações que vemos por aí.

Correio da Cidadania: Como você descreve sua participação na Secretaria de Habitação (Sehab)?

João Whitaker: Outra característica positiva da gestão foi o fato de implementar uma política de gestão de fato intersetorial e coletiva. Ou seja, realmente havia a preocupação de trabalhar na ótica de que a gestão é um conjunto de ação de todo o secretariado. Uma somatória de políticas setoriais.

Na habitação isso era muito claro. Na verdade, temos um conjunto de ações que, como falei, recolocavam a cidade em situação de governabilidade para se começar a atuar. Neste setor, defendemos mudanças estruturais que foram feitas, mesmo no começo. Quando entrei, já no final, dei sequência a um trabalho fundamental que já era feito, sendo o mais importante deles a reforma do Plano Diretor, inclusive premiado pela ONU.

De longe, é o Plano Diretor mais avançado já feito no Brasil. Trouxe mudanças essenciais pra política habitacional como a duplicação das ZEIS (Zona Especial de Interesse Social), onde se exige fazer habitação social até em áreas privilegiadas em infraestrutura. Rompeu-se com a pendularidade da cidade, um dos grandes problemas, coisa que faz os pobres se deslocarem horas e horas da periferia até o emprego, ao promover uma lógica estruturada em torno dos corredores.

Teve também a cota de solidariedade, inédita no Brasil, que significa obrigatoriedade de grandes empreendimentos imobiliários cederem 10% da área para habitação social. Estabeleceu-se que 30% do Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano) fossem obrigatoriamente destinados à produção habitacional, com desapropriações para este fim.

Foram gastos 700 milhões, antes da minha chegada e para além desta secretaria, em desapropriações para projetos de habitação dentro do Minha Casa Minha Vida (MCMV). Teve a aprovação da nova lei de zoneamento, que demorou muito. E aí teve outro fato inédito, que precisa ser lembrado, porque pela primeira vez na história do Brasil o STF se imiscuiu na política e na competência municipal, ao proibir a reestruturação do IPTU, a fim de aumentar a arrecadação de forma progressiva. O Gilmar Mendes foi o responsável, algo inédito, repito.

Sem essas transformações, feitas na primeira parte do mandato, não havia como por em prática o Plano Municipal de Habitação, o que só foi possível no último ano. O segundo mandato era importante porque os desdobramentos e a implementação real do plano só seriam possíveis no segundo mandato. Até porque só poderíamos fazê-lo com aprovação do Plano Diretor, da Lei de Zoneamento, inclusive porque a gestão tinha o procedimento, mais lento e muito mais efetivo, de promover a participação social.

É bom lembrar que o Kassab acabou com todas as instâncias participativas, que foram recriadas com o Haddad, inclusive novas, como o Conselho da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos, com exigência de pelo menos 50% de participação feminina, entre outros.

Correio da Cidadania: Deixar tal pasta por três na mão do PP, o que lembra a famigerada foto de Lula, Haddad e Maluf, foi um pecado que teve seu preço?

João Whitaker: O pessoal fala do acordo com o Maluf, que foi muito prejudicial etc. Discordo, porque até minha chegada as coisas que falei foram feitas, e eram necessárias. Aconteceu o seguinte: a política habitacional pode em parte ser feita de forma autônoma pelo município, desde que tenha cacife. São Paulo até tem, mas não tanto. Isso porque é uma política muito cara, que precisa se aliar à política estadual e federal, como ocorre desde os tempos do BNH. No caso paulista, podemos eliminar o estadual, porque nem de longe a CDHU gasta o 1% de ICMS que supostamente deveria gastar em habitação, pois o governo do estado prefere fazer seu “equilíbrio financeiro” em vez de investir. Assim, sobrava o investimento federal, e qualquer município tem de se alinhar a ele.

Podemos levantar alguns dados técnicos negativos, mas o MCMV foi um programa gigantesco, que pela primeira vez colocou um investimento daquela monta pra financiar a casa dos mais pobres sem mais custo a eles – quase 100 bilhões de reais em subsídios. Em 20 anos, o BNH chegou muito pouco à população pobre. Normalmente, beneficiou a população que ganha acima de 3 e sobretudo 5 salários mínimos.

Agora, o governo Temer começou mudando o limite do FGTS, inferior no governo Lula e Dilma. Agora, ele financia casas de quase 1 milhão de reais. FGTS, supostamente, deve ser usado pra financiar moradia popular, não milionária. São mudanças técnicas que as pessoas não percebem, mas ocorrem. O MCMV tinha a característica de destinar bastante dinheiro ao setor mais pobre da população.

Ao lado disso, a gestão Kassab optou por não entrar no programa. É bom lembrar que 2011 e 2012 foram um ápice de investimentos. O Rio de Janeiro produziu 30 mil unidades pelo programa, enquanto São Paulo ficou abaixo de 8 mil na época. São Paulo preferiu fazer algumas urbanizações de favelas, vistosas, em lugares de muita visibilidade, como Heliópolis e Paraisópolis, e que deixavam de fora praticamente metade da população original, inchando o auxílio-aluguel (solução dada para os não contemplados) e não se alinhou ao MCMV.

Durante os dois primeiros anos de Haddad, foi preciso fazer um realinhamento com a política federal. E lançamos um número recorde de unidades. Além das 15 mil unidades entregues, ficaram 23 mil em obras, grande parte via MCMV. Ou seja, foi aberto um verdadeiro campo de obras na cidade. Inclusive, São Paulo foi a cidade que mais se abriu para a modalidade Entidades, modalidade que trabalha ao lado de movimentos sociais, o que agora o MPF, MPE e governo federal tentam eliminar, não à toa o MTST acampou na Paulista.

Destinamos mais de 80 terrenos para as entidades tocarem o programa em frente – e mais de 100 na modalidade Empresarial, que no geral construíram muito mais, ao contrário do que diz o MP, ao alegar que movimentos foram favorecidos. Mas a verdade é que as empresas produziram muito mais. Se colocarmos no papel, ainda não saiu quase nada das Entidades em comparação com as empresas, apesar das falácias que a Folha tentou emplacar no começo deste ano, ao manipular entrevista minha. Os números mostram que a produção via empresas foi cinco vezes maior do que, a muita custa, se fez um pouco em favor dos movimentos. E tal demanda é legítima, os movimentos também têm todo o direito de construírem casas.

A questão do acordo com o Maluf vai ficar no ar pra sempre. O tempo de TV cedido pelo PP foi essencial ou não para a vitória eleitoral? Eu não sei dizer, Lula e Haddad que entendem mais que eu de política disseram que sim. Infelizmente, agora vemos o preço do sistema de presidencialismo de coalizão que prevalece no Brasil e leva a esse tipo de arranjos, que de fato são terríveis. Mas assim foi feito.

Correio da Cidadania: Como você descreve a dinâmica de trabalho da secretaria nesses anos?

João Whitaker: Posso dizer que na Sehab Haddad foi muito exigente. Colocou no cargo um técnico, que não era filiado ao PP, nunca tinha tido cargo eletivo e trabalhava na área no interior de São Paulo, o José Floriano. Trata-se de um sujeito absolutamente ético, quando cheguei lá não tive problema nenhum relativo a desvios ou coisas do tipo, bem pelo contrário, pois era alguém muito cuidadoso.

Pode ser que tivesse pouco diálogo com os movimentos, mas não foi o principal problema, e corremos atrás disso também. De toda maneira, o mais importante foi feito, que era realinhar a política habitacional ao MCMV, o que foi feito enquanto se conseguia as reformas de Plano Diretor, marco regulatório etc.

Claro que a mídia transformou isso numa ponta de lança, mas a partir de 2014 o programa começou a fazer água e os repasses para São Paulo foram congelados, pois a Dilma não repassava mais. O famoso PAC 2 só teve adiantamento da própria prefeitura, não veio nada de Brasília. Menos ainda o PAC 3.

O MCMV não fechou contratos novos a partir de 2014. Portanto, o esforço de alinhar a política municipal à política federal, no auge, quando tudo estava prontinho – com desapropriações de terra, reforma no setor de licenciamento para agilizar processos – deparou com a interrupção do programa no qual nos baseávamos.

Assim, deixamos um número significativo de projetos que estavam prontos, com ordem para início de obras, mas que simplesmente ficaram impossibilitados pela ausência de dinheiro. Tivemos a mesma dificuldade de todas as prefeituras e governos – exceto SP, que tem suposta autonomia com a CDHU, mas também apostara as fichas no MCMV. De toda forma, tudo fez água porque os recursos federais secaram, por conta da crise econômica e política e também porque a cidade era pouco favorecida pelo governo federal.

Correio da Cidadania: Dá pra dizer que a missão da Sehab foi cumprida nesses quatro anos?

João Whitaker: Quando assumi, tivemos de fazer mais um realinhamento. Na verdade, era uma continuidade, mas apressada pelas circunstâncias. Tivemos de começar a elaborar a fase seguinte da mudança do marco regulatório, através de um plano que oferecesse à cidade um plano habitacional pelos próximos 16 anos, coisa que nunca existiu. A lógica da política habitacional do Brasil é muito do varejo, do imediatismo. Compreensível, porque há problemas enormes no dia a dia e é necessário responder logo. Mas atropela-se a possibilidade de fazer política de médio e longo prazo de forma mais estruturante.

Foi um esforço enorme pra promover um plano estrutural, e de fato fizemos. Conseguimos fazer 4 anos em 1. Deixamos uma resposta para a problemática da habitação, que foi o Plano Municipal. No fim das contas, reestruturamos o relacionamento com os movimentos e fortalecemos o conselho municipal da área. Era preferível chegar na Secretaria antes, mas as condicionantes da política eram essas, e dentro de tal quadro o Haddad conseguiu estruturar uma equipe que tocou o necessário, como expus aqui.

Bateram muito na meta das 55 mil unidades, esquecendo-se de que pra isso é necessário obter terreno, projetar, licitar, licenciar, garantir fontes de financiamento e, por fim, produzir as unidades. Essa era a meta. Não é pegar, comprar e entregar a chave, até porque não se consegue fazer isso, do ponto de vista físico, em quatro anos. Significa viabilizar e tal meta foi cumprida, já que foram 54500 unidades viabilizadas.

Deixamos, como falei, licenciadas e prontas, à espera somente do dinheiro, que nunca chegava, 18 mil unidades licenciadas, além de 23 mil em obras e 12 mil entregues. É muita coisa. E tem mais um número fenomenal, de 85 mil unidades em análise, que estão na Sehab, um processo de longo prazo. Demoram-se anos em muitos casos, independentemente de ser o Haddad ou o Maluf. Regularização fundiária é um processo longo, até o governo Temer, através de uma MP temerosa, é certo, está tentando mudar um pouco o processo.

Nossa contribuição foi deixar uma discussão qualitativa no sentido de introduzir uma política pública de planejamento habitacional de forma mais autônoma ao MCMV. Essa foi minha contribuição específica. Precisamos estruturar uma política de médio e longo prazo mais independente. Estruturamos um plano que tem repercussão em muitas cidades brasileiras.

Posto isso, considero o novo secretário, Fernando Chucre, um cara sério, com quem tenho boa relação. Não me refiro a toda a nova secretaria, muito menos a gestão Dória e o governo em seu todo, mas o secretário é uma pessoa séria, que entende a importância do Plano, que está na Câmara e ele acompanha. Voltando ao início, eram necessários mais quatro anos.

Correio da Cidadania: Passando para o presente e a nova gestão, o que pensa de João Doria e suas primeiras atitudes na prefeitura?

João Whitaker: São performances. A lógica do Dória é a mesma lógica do Trump: criar factoides, casos, fatos que gerem uma enorme discussão pública, para o bem ou para o mal – não há absolutamente nenhuma preocupação em relação a isso. Ele não tem uma estratégia política, mas usa a tática imediata de marketing, trabalha com muitas imagens e é exatamente o que faz Donald Trump, dadas as proporções. Uma série de coisas que o Trump andou falando e soltando sequer são da competência dele. E o mesmo ocorre com o Dória.

O vídeo que o Dória soltou é um exemplo disto. Refiro ao vídeo em inglês no qual fala que vai privatizar uma série de coisas, entre elas o Pacaembu, mas não explica como é difícil fazer isso, por uma ser uma obra de arquitetura tombada, um patrimônio da cidade, e por ter um movimento dos moradores do entorno que é fortíssimo e impede a realização de eventos barulhentos como shows.

Dificilmente, haverá um empresário que queira comprar um estádio e só realizar jogos de futebol à tarde sem poder reformar nada. Assim, o prefeito põe no vídeo que é um baita gestor e vai privatizar o Pacaembu, mas não expõe a discussão técnica. E não está nem aí pra isso, só quer criar um factoide, um fato político que gere toda a discussão.

A partir daí ele colhe alguns frutos: o de estar constantemente na mídia, alimentar a lógica de ação, que soa como música para a grande mídia porque ela quer factoide para vender jornal e conseguir acessos. E assim a grande mídia entra na jogada, apoia, estimula, sabe que todo mundo vai querer vê-lo vestido de gari... Cria-se um ciclo autossustentável de factoides que não têm absolutamente nada de estrutural.

É exatamente o oposto total e radical da atitude do Haddad de fazer planos estruturais acima de qualquer coisa que rendesse frutos de imagem. Inclusive há quem diga ter sido um erro do Haddad. Não sei avaliar se foi ou não, porque acho honesto. O Haddad reduziu a verba de imagem dele, quase suprimiu o dinheiro destinado à comunicação de sua gestão. O Dória já aumentou isso e saiu na mídia. Podemos dizer que o Haddad pagou preços por erros estratégicos, mas o fato é que agora vemos uma postura radicalmente oposta.

Correio da Cidadania: O que pensa dos planos de Doria a respeito de vender a cidade no exterior e “criar oportunidades de investimentos” a partir de um grande e variado pacote de privatizações?

João Whitaker: Agora o que vale não é o estrutural, mas fabricar fatos absolutamente superficiais, que podem ter um impacto do ponto de vista simbólico, como pintar de cinza a arte de rua. Quer dizer, é uma coisa quase semelhante ao Estado Islâmico, que está acabando com os templos históricos. Pintam de cinza a arte de rua que é uma marca de São Paulo, inclusive artes que passaram por curadoria e foram financiadas com dinheiro público junto a artistas reconhecidos.

E apagou-se tudo em nome de uma imagem, uma falsa imagem de combate ao crime e à pichação. Uma semana depois, deu no SPTV uma reportagem sobre pichação, falando em letras garrafais o quanto era crime, quanto tempo de prisão pode gerar e tudo o mais. Podemos ver um alinhamento entre esses factoides que são feitos para criar uma discussão que, por sua vez, passa a imagem de que alguém está combatendo esses “bandidos”, que são os jovens pichadores. Isso, evidentemente, muda o foco de atenção de assuntos muitos importantes em relação aos jovens pobres das cidades, neste caso grave, pois se incentiva o genocídio dos jovens negros da periferia, por sua vez algo muito mais emergencial de ser discutido do que um punhado de jovens que usam a pichação para se expressar – uma atitude mundial, inclusive, não é exclusividade de São Paulo.

Resumindo: cria-se um factoide e gera-se uma discussão em torno de algo que não é relevante. Essa é a lógica do Dória. Minha impressão é que tal lógica não se sustenta, tem fôlego curto. Chega uma hora que perde a credibilidade. Ache no mundo um empresário que queira comprar o serviço funerário de São Paulo. É cômico. Portanto, quando acabar a baboseira, o que será feito do ponto de vista estrutural? Aí teremos dois caminhos: um é ter alguns secretários sérios, que consigam levar adiante um mínimo de uma política estruturante, e eu torço para que secretário de habitação Fernando Chucre esteja nesse grupo – pude observá-lo e conversar com ele e vejo que têm ótimas intenções nesse sentido; ou vamos ter um governo que por total desgoverno, pelo fato de não haver uma condução da gestão. E uma das características do Haddad é a capacidade fenomenal dele de fazer a gestão da governança, não centralizar, mas fazer, ele sabia tudo o que acontece na prefeitura.

Ou seja, ao não ter liderança, mas um cara que só está preocupado em gerar factoides, vai chegar uma hora em que por um fator de sorte um grupo de secretários segura minimamente a onda, ou teremos uma cidade absolutamente deixada nas mãos de equipes heterogêneas, composições políticas que estão aí fazendo nomeações em função de acordos políticos aqui e ali e, portanto, farão qualquer coisa sem controle, entrando inclusive em guerras internas.

O resultado é temerário pra cidade e por enquanto já houve algumas ações efetivas. Na política para a população de rua, tivemos demissão de todos os técnicos que estavam no Comitê da População de Rua porque houve um desmonte total dessa gestão. Na questão das farmácias houve um desmonte das farmácias das UBS, enquanto no Atendimento Hora Certa houve um desmonte a criar um recorde de não comparecimento e atendimentos que precisam ser remarcados.

Algumas dessas ações já estão gerando impactos significativos para a população. A retirada do bilhete único mensal para estudante tem um impacto tremendo. Além disso, do ponto de vista federal, várias ações do Governo Federal também vão nesse sentido. Temos que ir além da discussão apaixonada puramente político-partidária no sentido de dizer que “é tudo horrível porque o governo é golpista”. É verdade, mas também é verdade que somos apaixonados politicamente. A verdade é que, tecnicamente, temos de mostrar na prática. Por exemplo: o Minha Casa Minha Vida parou de vez. Não está dando mais subsidio. Tivemos o MTST acampado na Paulista por causa de um programa no qual tínhamos a previsão de entregar 11 mil unidades, motivo pelo qual o movimento reclamou, a partir de uma decisão do Governo Federal.

A falta de políticas estruturais no lugar de factoides vai gerar um “desmomento”. Por outro lado, um dos acertos do prefeito Haddad foi o fato de ter implementado planos que passam pela Câmara e dão diretrizes às políticas e gestão da cidade para os próximos 30 anos, como é o caso do Plano Diretor. Portanto, se ele não construir um desmonte do Plano na Câmara, o que é muito complicado, terá de estabelecer e começar a resolver algumas coisas como, por exemplo, a continuidade da realização dos corredores de ônibus ao longo dos eixos estruturantes da cidade, e desenvolver os bairros a partir do acesso ao transporte de massas do corredor de ônibus.

Há várias políticas de fôlego e de médio prazo que se forem continuadas, pois já estão na Câmara Municipal e têm seus planos aprovados, darão condição de salvar alguma coisa. Mas estou muito pessimista, porque Dória não demonstra ter essa preocupação, nem mesmo a capacidade de uma visão estruturante de longo prazo.

Correio da Cidadania: Quais são, em sua visão, as políticas públicas mais urgentes à cidade e quais poderiam ser viabilizadas num espaço relativamente curto de tempo?

João Whitaker: As mais importantes são as continuidades de políticas que estavam sendo implementadas. As mudanças do modal prioritário de transporte e mobilidade da cidade, do transporte de automóvel para o transporte público, é uma mudança que se não for finalizada vai tornar a cidade um caos.

A volta do aumento de velocidades dos automóveis mostra uma postura novamente de favorecimento ao modal automotivo em detrimento dos outros. Com isso, favorece a mentalidade e a lógica do carro. Não é um retrocesso em relação ao Haddad, mas em relação ao mundo. Em Londres a velocidade é 35 km por hora, em Nova Iorque estão pensando em retirar de vez os carros do centro. Em Paris a mesma coisa. Quer dizer, é uma tendência mundial. Mas aqui em São Paulo o novo prefeito reverte o esforço para o sentido contrário.

Isso mostra que provavelmente a opção prioritária pelo transporte público de massa não é uma política que vá ter continuidade. Há retirada de bilhetes de estudantes. Se interrompida a transição que havia sido iniciada de mudar a lógica da mobilidade da cidade pra outros modais diferentes do carro, como o metrô, os corredores de ônibus e as ciclofaixas, São Paulo volta a ser um caos nas dimensões que tínhamos antes dessas reformas.

Outra política fundamental é a continuidade da reestruturação completa do atendimento de saúde, como o Hora Certa. Essa mudança, que é uma ideia tirada da cartola de fazer o pessoal ir de noite, não passa de mais um factoide de campanha, significa quebrar todo um processo de reestruturação de atendimento que estava começando a melhorar – não estou dizendo que era maravilhoso, mas o tempo da fila de espera durante a gestão do Padilha tinha caído assombrosamente, estava em transformação.

Tem coisas que são estruturais. Se o Plano Diretor não tiver continuidade no sentido de promover o adensamento da cidade fora dos bairros ultraprivilegiados, nas grandes avenidas e bairros das periferias, vai gerar inúmeros problemas a longo prazo, por precisar quebrar novamente as lógicas da cidade e gerar um novo adensamento, com possibilidades de emprego descentralizados em relação à privilegiada região sudoeste da cidade.

As políticas mais importantes são exatamente essas que buscam realizar mudanças estruturais na lógica da cidade, mas há no varejo uma série de outras pequenas alterações fundamentais para a imagem e autoestima da cidade que, se também forem interrompidas, vão gerar um prejuízo muito grande lá na frente. Por exemplo, toda a rede de coletivos de cultura, com os quais estava sendo feito um trabalho estupendo pelo Nabil, sobretudo com coletivos da periferia. Isto é uma transformação a longo prazo, de uma nova geração. Assim como o Carnaval de rua, que estava tendo um impacto positivo na autoestima, na apropriação da cidade. Tentar limitar, restringir, confinar blocos no Memorial da América Latina, proibir na Praça Roosevelt, limitar horários já são pequenas demonstrações. Outra coisa é a merenda escolar vir da agricultura familiar, em geral produtos orgânicos, outra política que não vai aparecer agora, mas que a médio e longo prazo tem um impacto muito grande.

Portanto, temos políticas estruturais que devem ser continuadas. A mesma coisa vale para o Plano Municipal de Habitação que se não for implementado tal qual foi proposto – envolveu fisicamente cerca de 5 mil pessoas e vitualmente cerca de 20 mil –, e não fizer nada a médio e longo prazo, não vamos resolver a questão da habitação. Com o plano já é difícil resolver a questão, sem ele é melhor nem começar a tentar resolver, senão aprofunda ainda mais o problema.

Resumindo, tem Plano Municipal pra tudo: habitação, transporte, cultura, política de mulheres, população de rua, é um número de projetos muito diverso. Há planos regionais, importantes para as subprefeituras e superbem elaborados. Tudo está feito, mas se não for continuado vai dar problema lá na frente. É disso que estou receoso.

Leia resposta de João Whitaker aos veículos de mídia que o entrevistaram

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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