Correio da Cidadania

“A casta política latino-americana e suas instituições têm cada vez menos credibilidade ante a cidadania”

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Imagem: Ecuador Today

Após 10 dias de sublevação popular, um histórico encontro entre o presidente Lenin Moreno e lideranças indígenas televisionado ao vivo selou um pacto parcial no Equador. Furiosa com o aumento dos combustíveis e pacote de medidas econômicas austeritárias, por ora suspensos, as massas do país andino afluíram às ruas com tamanha força que obrigaram o governo a “mudar de capital”, refugiando-se em Guayaquil. Para explicar a convulsão social equatoriana, conversamos com o cientista político local Decio Machado.

“Com um Estado cada vez mais endividado, o gasto de consumo foi decaindo tanto em termos públicos como privados, sentindo-se claramente como os serviços públicos foram se deteriorando. Terminada a grande festa propiciada pelos excedentes petrolíferos – nunca houve uma redistribuição da riqueza durante o período correísta, mas a transferência de excedentes do Estado para sustentar políticas de subsídios e investimento público em infraestrutura – o motor da economia nacional foi desligado. Fruto de tudo isso, o país está há seis anos estancado economicamente e os equatorianos perdem ano após ano a capacidade aquisitiva”, disse.

Como se vê, Decio Machado estende sua crítica ao governo anterior de Rafael Correa, que tomou parte dos protestos e é acusado por seus inimigos de ser o grande potencializador dos acontecimentos, uma flagrante mentira. Isso porque, apesar da forma menos radical, já iniciara o giro econômico de retorno ao neoliberalismo.

“O movimento indígena é o principal protagonista do protesto e a greve nacional teve, sim, um perfil anticapitalista. Em paralelo, os sindicatos equatorianos, uma estrutura organizativa com escassa capacidade de se adequar aos tempos de precarização atuais e que mantêm uma narrativa discursiva dos anos 80, mobilizaram o pouco que têm durante essas jornadas de luta. Ainda assim, a surpresa adveio de setores sociais urbanos marginais, muitos deles jovens, que se somaram de forma decidida à luta. De igual forma, os estudantes universitários e um movimento feminista cada vez mais potente que se constrói com base em novas lideranças jovens”, resumiu.

Trata-se de um roteiro que cada vez mais se repente. Entre esquerdas moderadas e populistas e uma direita que não faz concessões em sua agenda, uma população em processo de empobrecimento a colocar ambos os lados contra a parede. Pra completar, um perfil de manifestantes que conforma um novo mosaico de protagonistas e lideranças políticas, sociais, comunitárias.

“O sistema de representação está em crise, os governos têm cada vez menos credibilidade ante a cidadania. Tal realidade supera a geografia do nosso continente, é uma tendência mundial. Tudo isso implica a necessidade de novas formas de organização política, de novos mecanismos na forma em que se tomam decisões desde as diferentes estruturas dos Estados, na implementação de mecanismos de democracia direta e consensos cidadãos. Enfim, há que se reinventar a política, importante objetivo em um momento onde o modelo produtivo e consumista capitalista mostra impactos já irreversíveis para a sustentabilidade a médio e longo prazo do planeta”, analisou.

A entrevista completa com Decio Machado pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como resume o pacote econômico de Lenin Moreno que desatou enormes protestos no Equador?

Decio Machado: O governo de Lenín Moreno já tem quase dois anos e meio de gestão. Durante o primeiro ano, período em que paulatinamente foi se distanciando ideologicamente do correísmo, não se teve clareza de seu papel na agenda econômica. Ainda assim, durante essa segunda metade todas as medidas econômicas tiveram uma clara tendência à liberalização dos mercados, austeridade econômica, diminuição do Estado mediante demissão de 23 mil funcionários públicos e políticas de flexibilização trabalhista.

No anúncio destas últimas medidas econômicas que acabaram incendiando o país, vieram questões como eliminação do subsídio ao combustível, a redução de 20% da massa salarial de todos os contratos na função pública que viessem a ser renovados, a redução do período anual de férias dos empregados públicos de 30 para 15 dias, assim como a obrigação por parte dos trabalhadores das empresas públicas de contribuir obrigatoriamente com um dia de salário mensal ao Estado.

Paralelamente, se decretaram uma série de medidas trabalhistas que implicam em flexibilização do mercado de trabalho privado, justificando-o sob o argumento da necessidade de implementar um modelo correspondente aos novos tempos.

Correio da Cidadania: Por que o Equador recorre ao FMI para a orientação de sua política econômica?

Decio Machado: Durante a década de governo de Rafael Correa contou-se à sociedade equatoriana que éramos um modelo econômico exemplar para todo o planeta. O regime chegou a definir a economia como o “jaguar latino-americano”, buscando se comparar aos “tigres asiáticos”. Mas a realidade era bem diferente.  

Entre 2010 e 2019, a dívida por cada equatoriano cresceu 7 vezes, passando de 538,81 dólares a 3,582; o pagamento de juros por habitante cresceu 11 vezes, de 38,31 dólares a 435,29; e o gasto em serviço de dívida cresceu 12 vezes, evoluindo de 613 milhões de dólares a 7,4 bilhões. Em termos comparativos, o gasto de dívida atual (juros e amortizações, cerca de 7,4 bilhões) supera quase duas vezes o orçamento da educação (4,97 bi) e quase três vezes o de saúde (2,882 bi).

Com um Estado cada vez mais endividado, o gasto de consumo foi decaindo tanto em termos públicos como privados, sentindo-se claramente como os serviços públicos foram se deteriorando. Terminada a grande festa propiciada pelos excedentes petrolíferos – nunca houve uma redistribuição da riqueza durante o período correísta, mas a transferência de excedentes do Estado para sustentar políticas de subsídios e investimento público em infraestrutura – o motor da economia nacional foi desligado. Fruto de tudo isso, o país está há seis anos estancado economicamente e os equatorianos perdem ano após ano a capacidade aquisitiva.

Dessa forma, ao aumento do déficit fiscal se seguiu o incremento do endividamento, ao que se seguiram problemas de acesso ao financiamento, o que fez as reservas internacionais do país começarem a baixar.

Depois do fim do “boom das commodities”, a economia se estancou, em 2017 Correa entregou um país onde o gasto público era amplamente superior às receitas permanentes necessárias para sustentá-los. Isso implicava a necessidade de reformas de caráter estrutural. Frente a outras possíveis opções, Moreno terminou optando pela visão neoliberal de tentar reativar a economia.

Durante a gestão de Rafael Correa, o Estado equatoriano recorreu a créditos chineses para sustentar soluções de médio prazo. Desde a chegada de Lenin ao poder, o país mudou sua posição no tabuleiro geopolítico internacional. Com uma política exterior entregue aos Estados Unidos, o Equador passou dos usurários créditos chineses com altas taxas de juros ao financiamento fundomonetarista e seus planos de ajuste estrutural.

Correio da Cidadania: Quais os fundamentos de tamanho giro de Lenin em relação a seu antecessor e colega de partido?

Decio Machado: O setor empresarial equatoriano tem uma taxa de investimento na economia nacional substancialmente inferior à média latino-americana, que já é baixa por si só. Paralelamente, a economia equatoriana está muito concentrada, a maioria de seus setores econômicos é oligopólica e, portanto, muito pouco democrática. O país goza de um empresariado ao qual podemos definir como escassamente patriótico. Foi assim durante a década correísta e segue sendo durante a gestão Moreno.

Nada mudou durante os últimos 40 anos, inclusive na gestão de Correa o país nunca transformou a matriz de acumulação capitalista herdada do período neoliberal anterior. Apesar de suas críticas ao FMI e aos tratados de livre comércio, durante o último período de gestão de Correa o país já começara a ser supervisionado pela tecnoburocracia fundomonetarista, em troca de empréstimos futuros, até firmar um tratado de livre comércio com a União Europeia.

Em resumo, a liberalização econômica e perda de direitos dos trabalhadores no Equador começaram a partir do término da grande festa dos altos preços do óleo cru. Dois anos e meio antes de Rafael Correa abandonar a presidência.

Correio da Cidadania: A considerar a dependência da população em relação ao subsídio no setor de combustíveis, quais seriam as consequências do aumento de preços?

Decio Machado: O Decreto 883 de liberalização de preços do combustível implicava um notável incremento de preços da gasolina “extra” – a mais usada no país – passando o galão de 1,45 a 2,41 dólares. De igual maneira, aumentavam a gasolina Eco País (com etanol extra), de 1,45 a 2,53, e a Súper, de 2,3 a 3,07. Mas, além disso, por experiência histórica o povo equatoriano sabe que o aumento de preços do combustível afeta o setor alimentício, os produtos de primeira necessidade e as taxas de inflação.

Isso, somado ao descontentamento generalizado com a gestão de Lenín Moreno, fez estourar a revolta nacional encabeçada pelo setor indígena, também apoiada por amplos setores da população mais humilde.

Correio da Cidadania: Como descreve as reações populares registradas? Houve um caráter insurrecional anticapitalista?

Decio Machado: O movimento indígena, como anteriormente disse, é o principal protagonista do protesto e a greve nacional teve, sim, um perfil anticapitalista. Em paralelo, os sindicatos equatorianos, uma estrutura organizativa com escassa capacidade de se adequar aos tempos de precarização atuais e que mantém uma narrativa discursiva dos anos 80, mobilizaram o pouco que têm durante essas jornadas de luta.

Ainda assim, a surpresa adveio de setores sociais urbanos marginais, muitos deles jovens, que se somaram de forma decidida à luta. De igual forma, os estudantes universitários e um movimento feminista cada vez mais potente que se constrói com base em novas lideranças jovens.

Enquanto isso, influenciadores de redes sociais, geradores de opinião em meios de comunicação convencionais e jornalistas tradicionais desprestigiavam de forma cotidiana as mobilizações, mas amplos setores da sociedade de Quito e de outros locais do país expressavam diariamente sua solidariedade com os manifestantes, entregando medicamentos aos doentes e feridos, mantas, alimentos, sapatos, água e comida.

Foi assim que fracassou uma estratégia desenhada pelos setores mais conservadores do país, que pretendia contrapor brancos cultos e urbanitas acomodados contra indígenas pobres provenientes de setores rurais.

Correio da Cidadania: Quais as nuances e tonalidades do movimento popular neste momento, considerando que parte dele apoiava Correa e outra parte, a exemplo da Confederação Nacional dos Indígenas do Equador (Conaie) já havia rompido com o anterior governo da Alianza País?

Decio Machado: As fraquezas na gestão de governo de Moreno permitiram a Rafael Correa manter um apoio popular estimado entre 22 e 24% da sociedade. Longe daqueles mais de 50% que historicamente se apoiou durante grande parte de seu mandato, ainda segue sendo uma porcentagem importante de seguidores para um país onde se prevê um enorme fracionamento do voto nas próximas eleições presidenciais.

Em todo caso, em um país onde o establishment político está altamente desprestigiado, o mais interessante neste momento é a conformação de novas lideranças jovens nos movimentos sociais. Isso se pode ver durante as mobilizações destes últimos 12 dias de sublevação popular, onde o movimento de estudantes, de mulheres e especialmente dos indígenas esteve dirigido por uma nova geração de militantes sociais que nada têm a ver com o correísmo e inclusive o repudia.

Correio da Cidadania: O que pensa das reações do governo, tanto em termos de uso dos aparatos repressivos como da mudança da sede administrativa de Quito para Guayaquil? O governo corre risco de cair?

Decio Machado: O atual governo do Equador carece de inteligência política, construção prospectiva de cenários e capacidade estratégica. A frente política do governo Lenín Moreno está em mãos de uma geração de jovens políticos que pretendem ser a renovação da direita do país.

A resposta repressiva do Estado às reivindicações populares deixou 8 pessoas mortas, 1192 detidas, 1340 feridas para terminar cedendo ante o movimento indígena em uma histórica negociação televisionada ao vivo, fruto da exigência dos setores mobilizados.

Depois de tamanha crise o governo nacional ficou ainda mais enfraquecido do que antes do conflito. Tendo em conta que o ano de 2020 será um período pré-eleitoral no Equador e considerando que inclusive a direita expressa fortes críticas ao governo por ceder em suas posições e voltar atrás do Decreto 883 ante as demandas populares, é de se supor que será muito complexo o trabalho do presidente Moreno no que lhe resta de mandato.

Correio da Cidadania: O que pensa da formulação “do fracasso do neoliberalismo ao populismo; do fracasso do populismo de volta ao neoliberalismo”? O que revela de nossas construções políticas e ideológicas até aqui logradas, tanto no Equador como nos países sul-americanos?

Decio Machado: O neoliberalismo dos anos 80 e 90 na América Latina mostrou-se um modelo falido para o subcontinente. Deste fracasso adveio o chamado ciclo progressista. Tendo em conta que a América Latina é o território com maior desigualdade no planeta, a carência de transformações econômicas estruturais durante este período voltou a deixar a sociedade latino-americana órfã de ilusão política. Os líderes progressistas são filhos do “boom das commodities”; terminado este ciclo econômico que permitiu grandes excedentes para os Estados da região, o modelo de políticas de subsídio sem redistribuição da riqueza se tornou inviável.

O sistema de representação política está em crise, a casta política latino-americana e nossas instituições públicas carecem de legitimidade social, os governos têm cada vez menos credibilidade ante a cidadania. Tal realidade supera a geografia do nosso continente, é uma tendência mundial.

Tudo isso implica a necessidade de novas formas de organização política, de novos mecanismos na forma em que se tomam decisões desde as diferentes estruturas dos Estados, na implementação de mecanismos de democracia direta e consensos cidadãos. Enfim, há que se reinventar a política, importante objetivo em um momento onde o modelo produtivo e consumista implementado pelo capitalismo mostra impactos já irreversíveis para a sustentabilidade a médio e longo prazo do planeta.

Na América Latina e outras partes do sistema-mundo assiste-se hoje a experiências inéditas de como determinados grupos comunitários desenvolvem mecanismos de apoio mútuo e geração de sociedades paralelas que já não disputam o poder nos termos do Estado. Tais resistências em forma de processos autônomos antissistêmicos podem exercer um papel importante perante o colapso que está por vir.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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