Correio da Cidadania

Bolívia na contrarrevolução: como derrubaram Evo?

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Comecemos pelo final (ou pelo final provisório da história): nas últimas horas do domingo, o novo líder do departamento de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, desfilou sobre um carro policial nas ruas de La Paz, escoltado por policiais amotinados e festejado por setores da população opositores a Evo Morales. Configurava-se assim uma contrarrevolução cívico-policial que tirou do poder o presidente boliviano. Morales se refugiou em seu território, a região cocalera do Chapare, que o viu nascer para a vida política e onde se refugiou dos riscos revanchistas. É uma parábola – ao menos transitória – em sua vida política. Deste modo, o que começou como movimento de demanda de um segundo turno eleitoral após a polêmica e confusa eleição de 20 de outubro terminou com o chefe das Forças Armadas “sugerindo” a renúncia do presidente.

Uma sublevação contra Evo Morales não estava no horizonte de ninguém. Mas em três semanas a oposição se mobilizou com mais firmeza que as bases evistas, que depois de 14 anos no poder foram perdendo potência mobilizadora enquanto o Estado ia substituindo as organizações sociais como fonte de poder e burocratizando o apoio ao “proceso de cambio”.

Em poucas horas, o que foi o governo mais forte do século 20 na Bolívia pareceu se desmoronar (há vários ex-funcionários refugiados nas embaixadas). Ministros renunciaram denunciando que suas casas eram queimadas e os opositores mostravam três mortos dos enfrentamentos entre grupos civis como prenda de indignação sobre o que chamavam ‘ditadura’. Finalmente, no domingo Evo Morales e Alvaro Garcia Linera renunciaram e denunciaram o golpe em marcha.


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O Movimento ao Socialismo (MAS), formado nos anos 90, foi sempre um partido profundamente camponês – mais do que indígena – e isso se trasladou em muitos sentidos ao governo Morales. O apoio urbano foi sempre condicionado – em 2005 era uma aposta em uma nova liderança indígena diante da profunda crise que vivia o país; depois porque Evo manteve muito boa performance econômica. Mas a tentativa de Morales de permanecer na presidência, somada aos substratos racistas de velha data e a sensação de exclusão do poder, alentaram as classes médias urbanas a sair à rua contra Morales.

Objetivamente, o chamado “proceso de cambio” não favoreceu a classe média tradicional nem o estamento “blancoide” – como se quer denominar os “brancos” na Bolívia – e, em troca, lhes tirou poder. A revolução política de Morales foi antielitista. Por isso chocou contra as elites políticas anteriores e as substituiu por outras, mais plebeias e indígenas. Este fato desvalorizou até fazer desaparecer o capital simbólico e educativo com que contava a classe “burocrática” que existia antes do MAS. Entretanto, suas vitórias eleitorais com mais de 60% lhe permitiram ocupar todo o poder de Estado.

Morales pareceu selar uma vitória da política sobre a técnica. Se o neoliberalismo acreditava no direito dos “mais capazes” de impor suas visões de conjunto, o “proceso de cambio” acreditava no direito da Bolívia popular se impor sobre os “mais capazes”. Para atuar recorreu à política (igualitarismo) e a divisão corporativa de cargos entre diversos movimentos sociais acima da técnica (elitismo). Por esta razão não encheu de maneira meritocrática os vazios deixados pela recomposição da burocracia neoliberal.

E tampouco recorreu sistemática e amplamente às universidades para prover-se de capital cultural que, em compensação, considerava prescindível. Isso agrediu a classe média, especialmente seu segmento acadêmico-profissional, cuja expectativa máxima era conseguir um claro reconhecimento social e econômico por seus saberes adquiridos. 

Finalmente, o MAS foi crescentemente estatista. O enfoque sempre estatista com que o governo abordava os problemas e necessidades que iam surgindo no país o levou a ignorar e no fim das contas trombar com os pequenos empreendimentos privados, isto é, com os empreendimentos de classe média. Por essa razão havia fricções entre o “proceso de cambio” e os setores empreendedores não indígenas e não corporativos (que se beneficiavam dos aspectos políticos da mudança e indignavam aos “classemedieros”). É certo que existia certo pacto de não agressão e de apoio tático entre o “proceso de cambio” e a alta burguesia ou classe alta, mas este se fundava em razões políticas antes que empresariais ou econômicas.

Por outro lado, várias medidas desestabilizavam a dotação de capitais étnicos, prejudicando os brancos: apesar de não ter feito a reforma agrária, beneficiou os pobres com dotação de terras fiscais; houve redistribuição do capital econômico – mediante infraestruturas e políticas sociais – em favor de setores mais “cholos” e populares; a política educacional implementada melhorou a dotação de capital simbólico dos indígenas e mestiços, mediante a revalorização de sua história e sua cultura.

Ao mesmo tempo, o governo fez muito pouco para elevar o nível de educação pública e, portanto, arrebatar o atual monopólio branco da educação (privada) de alta qualidade. Assim, as elites anteriores perderam espaços no Estado, viram debilitados seus capitais simbólicos e suas vias de influência no poder. Em síntese: o Clube de Golfe perdeu qualquer relevância como espaço de reprodução de poder e status.

Diversas pesquisas já mostravam a desconfiança dos setores médios a respeito do presidente. Não pela gestão, que aprovavam, mas pela duração do domínio da elite que Evo dirigia. Essa era a questão que importava para a classe média, uma questão que a persistência na meta reeleicionista de Morales tornou impossível de resolver, precipitando a classe média à revolta. E a isso se somou que o “proceso de cambio” não enfraqueceu os microdespotismos presentes em toda estrutura estatal boliviana. O uso dos empregados públicos nas campanhas eleitorais e, mais em geral, na política partidária do MAS debilitou o pluralismo ideológico entre os funcionários, inclusive de menor patente.

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A Bolívia é um país quase geneticamente antirreeleicionista: nem Victor Paz Estenssoro, condutor da Revolução Nacional de 1952, conseguiu dois períodos consecutivos. Em parte esta tendência parece uma sorte de reflexo republicano desde baixo e em parte reflete a necessidade de uma maior rotação do corpo político. Pois quando alguém não vai embora, limita o acesso dos “aspirantes”. Todos os partidos populares que chegam ao poder têm o mesmo problema: há mais militantes que cargos para dividir. O Estado é fraco, mas é uma das poucas vias de ascensão social.

A Bolívia é também o paraíso da lógica das equivalências de Laclau: logo que a situação sai do trilho e o Estado se vê fraco, todos se somam com suas demandas, indignações e frustrações, que são sempre muitas, dado que o país é pobre e com muitas carências. Assim também foi desta vez. Os motins policiais expressam rancores de velho tipo de setores baixos com os mandos mais altos, por assuntos como desigualdade econômica e abusos de poder entre tais “classes”: aconteceu em 2003, no motim de 2012 e no fim de semana passado.

Potosí, enfrentada com Evo há anos por sentir que desde a colônia suas riquezas – agora o lítio – viram fumaça e eles seguem sendo pobres também entrou na rebelião. E o mesmo aconteceu com setores dissidentes de todas as organizações sociais (cocaleros yungas, ponchos vermelhos, mineradores, transportadores). Isso se soma a uma cultura corporativa que faz as demandas por região ou setor pesarem mais que as posições mais universalistas, o que habilita possíveis alianças inesperadas: a esta última ofensiva se aliaram Potosí e Santa Cruz, arranjo impensável durante a crise de 2008, quando a primeira foi um bastião evista.


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Depois de vários anos de impotência política e eleitoral da oposição tradicional – os velhos políticos como Tuto Quiroga, Samuel Doria Medina ou o próprio Carlos Mesa – aparece uma “liderança carismática” nova: a de Fernando Camacho. Este personagem desconhecido até poucas semanas atrás fora de Santa Cruz se projetou primeiro ocupando um vazio na dirigência crucenha, que desde sua derrota para Evo em 2008 havia pactuado certa paz. Elevado por uma nova de radicalização juvenil, o “macho Camacho”, um empresário de 40 anos, se erigiu líder do Comitê Cívico da região, que agrupa as forças vivas com hegemonia empresarial e defende interesses regionalistas.

Mais recentemente, diante da debilidade da oposição, Camacho esgrimiu uma mistura de Bíblia e “pedras” para enfrentar “o ditador”. Primeiro escreveu uma carta de renúncia “para que Evo a assine”; depois foi levá-la a La Paz e foi repelido pelas mobilizações oficialistas; porém, voltou no dia seguinte para finalmente entrar no domingo num deserto Palácio Quemado – o velho edifício do poder hoje trasladado à Casa Grande do Povo – com sua Bíblia e sua carta; ali se ajoelhou no chão para que “Deus volte ao Palácio”.

Camacho selou pactos com os “ponchos vermelhos”, aymaras dissidentes, tirou fotos com cholas e cocaleros anti-Evo e jurou não ser racista e se diferenciar da imagem de uma Santa Cruz branca e separatista (“os crucenhos somos brancos e falamos inglês”, havia dito certa vez uma Miss). E, numa produtiva estratégia, Camacho se aliou com Marco Pumari, o presidente do Comitê Cívico de Potosí, um filho de minerador que vinha liderando a luta nesta região contra o “esquecimento” de Evo.

Assim, o líder emergente e histriônico terminou sendo artífice da revolta cívico-policial. Para isso desalojou o ex-presidente Carlos Mesa, segundo nas eleições de 20 de outubro, que no curso da aceleração dos acontecimentos se radicalizou sem convicção nem grandes chances de ser aceito no clube mais conservador por ser considerado “tíbio”.

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René Zavaleta dizia que a Bolívia era a França da América do Sul: ali a política se dava com seu sentido clássico, isto é, como revolução e contrarrevolução. Mas o país viveu mais de uma década de estabilidade, um período que pôs em dúvida a vigência do pensamento de Zavaleta. Em 2008, Evo Morales resolveu sua dissensão com as velhas elites neoliberais e regionalistas que haviam se oposto à sua assunção no poder e começou seu ciclo hegemônico: uma década de crescimento econômico, de confiança do público no porvir, de aprovação majoritária da gestão governamental; um mercado interno com grandes investimentos financiados a partir de rendas extraordinárias em um tempo de altos preços das exportações; uma melhora no bem-estar social. 

Mas a rebelião voltou e se articulou com um movimento conservador e contrarrevolucionário. À diferença de Gonzalo Sanchez de Lozada em 2003, Evo Morales não colocou o Exército na rua. Mobilizou os militantes do MAS, ao passo que se expandiram através das redes sociais e meios de comunicação a imagem de “hordas masistas” – já não se pode dizer campesinas ou indígenas.

O informe da OEA sobre o resultado eleitoral, alertando sobre alterações, minou a autoconfiança do governismo: perdeu a rua e as redes ao mesmo tempo. Esta auditoria, que poderia ter pacificado a situação, foi rejeitada pela oposição, que considerava Luis Almagro um aliado de Morales, por ter avalizado sua recandidatura. A organização acaba de se pronunciar para rejeitar “qualquer saída inconstitucional à situação”. 

Uma das razões do insurrecionalismo é o caudilhismo, isto é, a ausência de instituições políticas consolidadas. Não existe mais que uma lógica imediatista, de soma zero: ganha-se ou perde-se tudo, mas nunca se busca acumular vitórias e derrotas parciais com o olhar no futuro. Evo Morales não superou essa cultura e por isso buscou seguir em seu cargo; mas a oposição tampouco o faz e emerge outro “caudilho”, de direita, como Camacho. Não sabemos que futuro político o aguarda, mas já cumpriu uma “missão histórica”: que as cidades acabem com a exceção histórica de um governo campesino no país. Não por acaso, depois da derrubada de Evo, queimaram Whipalas, bandeira indígena transformada em uma segunda bandeira nacional sob o governo do MAS. Adicionalmente, tirou-se o nacionalismo de esquerda do poder: “tiramos o comunismo”, repetiam as mobilizações nas ruas, alguns com cristos e bíblias.

A Bolívia não é só o país das insurreições, mas também das refundações. Só a ideia de uma “refundação” permite coesão às forças que requerem as saídas insurrecionais e anulação da influência social e política dos derrotados. Por outro lado, uma “refundação”, e a destruição criativa” de instituições estatais e políticas que lhes são consubstanciais, permitem uma mobilização de promessas e acordos com a dimensão que os novos ganhadores requerem para “ocupar” (aproveitar) verdadeiramente o poder. Mas o paradoxo é que o país muda pouco em cada refundação. Sobretudo em termos de cultura política. 

Agora o pêndulo ficou para o lado conservador, veremos se a fragmentada oposição a Evo Morales consegue estruturar um novo bloco de poder. Mas as feridas étnicas e sociais da derrubada de Evo serão duradouras.

Pablo Stefanoni é de chefe de Redação da Revista Nueva Sociedad e vive entre Buenos Aires e La Paz, onde foi editor da edição latina do Le Monde Diplomatique. 
Fernando Molina é jornalista, escritor e colaborador do diário espanhol El País.

Retirado de Revista Anfibia.
Traduzido por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.

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