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O Brasil descobre o Brasil
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Por  Frei Betto
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Duas imagens marcaram as comemorações ­ no sentido de fazer memória ­ dos 500 anos: o índio Gildo Jorge Terena ajoelhado frente à truculência da polícia baiana e os pataxós ocupando a missa concelebrada pelos bispos brasileiros.

O governo FHC teve cinco anos para preparar as comemorações. Gastou mais de R$ 100 milhões. E o fiasco está simbolizado no fracasso da réplica da nau capitânia, encalhada no porto de Aratu. No entanto, comemorou-se a réplica do desembarque da frota de Cabral. Ou alguém acredita nas imagens idílicas das pinturas de Vítor Meireles? A ter em conta o que Pero Vaz de Caminha enfrentou nas Índias, após deixar o Brasil, a frota cabralina desembarcou aqui como FHC e seus ministros em Porto Seguro: muita pauleira, para manter a gentalha à devida distância.

O sociólogo FHC escreveu, em 1977, que é o Estado que forma a sociedade civil brasileira. Não se deu conta o presidente de que a realidade desmente o sociólogo. Nos últimos 40 anos, a sociedade civil articula-se a partir dos movimentos populares, de baixo para cima, à margem e em conflito com o Estado dominado pela oligarquia. Pastorais sociais, Central de Movimentos Populares, MST, CUT, CPT, CIMI e tantas outras entidades, como as que representam os movimentos indígena e negro, tecem a malha na qual emerge o efetivo exercício do direito de cidadania.

A imagem do presidente sitiado por suas próprias tropas na ilha de Comandatuba e, em seguida, em Porto Seguro revelou significativamente a largura e a profundidade do fosso que há entre governo e nação. Em nenhum momento, a nação foi convocada para debater um programa comum de comemorações. Ao contrário, o desprezo pela nação traduziu-se, ao início dos festejos, na destruição do monumento indígena em Cabrália.

A Igreja católica, pela voz dos bispos, pediu perdão por seus graves pecados cometidos contra indígenas e negros. E vem se penitenciando na prática pelo apoio aos movimentos populares. O cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado do Vaticano e amigo pessoal do ex-ditador Augusto Pinochet, pretendeu "despolitizar" o modo como a Igreja comemorou os 500 anos. Porém, ao chegar ao Brasil, fez-se receber pelo presidente da República. Teriam os caciques indígenas acolhido com alegria uma visita do cardeal. Felizmente, os pataxós tomaram a iniciativa e, ao contrário da missa de Frei Henrique de Coimbra, conquistaram vez e voz. Naquele altar, ignorar a presença indígena seria uma contradição com o sentido da própria missa, sacrifício redentor de Cristo.

Há 330 mil indígenas, hoje, no Brasil, divididos em 215 povos, que falam 186 idiomas diferentes. Isso faz deste país, talvez, o mais rico do mundo em diversidade cultural. O governo reconhece oficialmente 594 terras indígenas, das quais, em desrespeito à Constituição, apenas 279 estão registradas no Departamento de Patrimônio da União. Restam 315 por demarcar e homologar.
Aliás, desde 1973, pela lei 6.001, o governo está obrigado a demarcar todas as áreas indígenas. E a Constituição de 1988 deu prazo de cinco anos para que as demarcações fossem concluídas. Passados doze anos, a maioria das áreas indígenas enfrenta pendências administrativas e judiciais, e sofre invasões e violências.

Agora, o governo culmina sua desastrosa comemoração dos 500 anos encaminhando ao Congresso o projeto do novo Estatuto do Índio. Hoje, os povos indígenas são tutelados pelo Estado. O projeto visa acabar com a tutela e conceder ao índio pleno direito de cidadania, exceto às tribos em fase de aproximação com os brancos.

Ora, cidadania supõe direitos e deveres. Não se pode destutelar os índios sabendo que, deles, é impossível exigir deveres como ao restante da nação. Eles têm outra cultura, outra lógica, outros valores. E, como demonstrou Lévi-Strauss, não constituem uma etapa primitiva da escala civilizatória, nem são "retardatários" em relação à cultura européia. São nações próprias, dotadas de identidades singulares, porém desprovidas de meios de defesa frente à barbárie da sociedade que idolatra o lucro e tem no mercado seu totem mais sagrado. Retirar dos povos indígenas a tutela do Estado é abrir caminho para que a polícia, tanto a oficial quanto a jagunceira, torne sistemático o que ocorreu em Porto Seguro. É transformar a Funai em Funerária Nacional dos Índios.

Os 500 anos serviram para trazer ao banquete dos vencedores o grito dos vencidos. O general Alberto Cardoso lamentou que, nesta festa de aniversário, nem todos os familiares tenham se comportado bem. Esqueceu-se de que nem todos os familiares foram convidados, mas se sentiram no direito de participar. A violência com que o governo tratou, em Porto Seguro, os movimentos indígena, negro e popular é o retrato fiel do que a oligarquia fez com o povo brasileiro nesses 500 anos.

Segundo a nova sociologia fernandista, a democracia é o melhor dos regimes. Desde que o povo seja mantido à distância e os movimentos sociais tratados pelo figurino da ditadura militar. O positivo de tudo isso é que, agora, o Brasil descobre o Brasil.



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