O MST, a Folha e a ética
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Por Luiz Antonio Magalhães*

 

O Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, que inclui entidades como a CPT (Comissão Pastoral da Terra) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), fez na semana passada uma denúncia envolvendo a Superintendência Regional do Incra do Paraná, o jornalista Josias de Souza e o repórter fotográfico Alan Marques, ambos da Folha de São Paulo.

De acordo com o Fórum, o Incra pagou uma viagem dos jornalistas – entre Curitiba e alguns assentamentos no interior do estado –, e estadias em hotel durante os dias 8 e 10 de maio. Em função disso, as entidades protocolaram, no dia último dia 9, na sede do Ministério Público Federal de Curitiba, uma representação contra a Superintendência Regional do Incra-PR.

O Fórum apresentou ao Ministério Público Federal uma série de relatórios internos da Superintendência onde é possível comprovar o financiamento das despesas de viagem e diárias de hotel por parte do órgão. Os papéis mostram também que o Incra-PR cedeu um veículo oficial com motorista para levar o jornalista aos assentamentos. As viagens tinham por objetivo, ainda segundo os documentos enviados ao MP, "subsidiar matéria sobre aplicação do Procera e Pronaf".

A partir desses documentos, membros do Fórum elaboraram um press-release, distribuído para a imprensa no dia 9, onde acusam o Incra de "usar a mídia como veículo de combate às legítimas causas do povo do campo e de tentar desmoralizar e criminalizar a luta dos trabalhadores rurais no Brasil." A referência é à matéria intitulada "MST desvia dinheiro de Reforma Agrária", assinada por Josias de Souza e publicada na Folha de S. Paulo no dia 14 de maio deste ano, logo após as viagens.

Outro lado
Josias de Souza confirmou que viajou aos assentamentos em carro cedido pela Superintendência, mas negou que tenha deixado de pagar as diárias de hotel e ironizou a vinculação que o Fórum fez entre a matéria e o pagamento da viagem: "fico triste em saber que meu preço na praça é tão baixo: apenas uma viagem na Parati do Incra".O jornalista da Folha conta que visitou a Superintendência do Incra no Paraná logo no início do trabalho de apuração da matéria, a fim de recolher dados sobre os assentamentos. Segundo ele, foi neste momento que uma funcionária da Superintendência ofereceu o carro, recomendando ser "mais seguro" aos jornalistas viajarem com o motorista do órgão. Josias afirma que concordou com a oferta, com a condição de pagar todas as despesas. Quando foi acertar a conta, porém, a funcionária recusou o recebimento, alegando problemas contábeis para receber os pagamentos. "Acho bom que estejam entrando com representação no MP, pois assim talvez seja possível fazer o ressarcimento", disse o jornalista.

Questão ética
Além do problema jurídico que envolve a denúncia – o fato de um funcionário público fazer gentilezas para entidades privadas à custa do erário é crime –, existe uma questão de natureza ética a ser considerada. O verbete "viagem" do Manual de Redação da Folha de S. Paulo diz o seguinte: "a Folha incentiva a realização de viagens pelo jornalista. Quando ela ocorrer a convite e resultar em reportagem, deve ser mencionada ao final do texto a identidade do patrocinador". O verbete "convite" é ainda mais incisivo: "qualquer convite que um jornalista receba como profissional da Folha deve ser comunicado a seu superior imediato antes de aceito. O jornal não se compromete a publicar reportagem sobre o assunto do convite apenas porque o aceitou. Devem ser previamente submetidos à Direção de Redação convites para viagens, colaboração com outros meios de comunicação, participação em conferências, palestras, seminários, cursos, bolsas de estudo, estágios ou encontros com autoridades públicas. A direção vai definir se a presença do jornalista deve se dar como representante do jornal ou em caráter particular. A Direção de Redação pode julgar a presença de um jornalista da Folha em alguns desses eventos incompatível com sua atividade no jornal.

Jornalistas da Folha podem viajar a convite de instituições, governos ou personalidades. Se a viagem resultar em texto publicado, o jornal informa com clareza que o jornalista teve suas despesas pagas pelo patrocinador"
O problema todo é que na matéria do dia 14 de maio, o jornal não avisou seus leitores sobre as condições em que a reportagem foi elaborada. Ora, Josias de Souza é diretor da sucursal de Brasília da Folha de S. Paulo e certamente não desconhece o manual do órgão em que trabalha há tantos anos. Na opinião do jornalista, o indicativo de que o Incra custeou a viagem de Curitiba aos assentamentos não era necessário porque a reportagem não foi feita "a convite" do órgão. Na verdade, trata-se de um formalismo de Josias. Ainda que o Incra não tenha "convidado" o diretor da sucursal de Brasília e o repórter fotográfico para conhecer os assentamentos, a informação de que um órgão governamental sabidamente antipático ao MST custeou parte da viagem era fundamental para que os leitores pudessem fazer um juízo correto do que estavam lendo. Aliás, a Folha poderia ter explicado que tentou, sem sucesso, fazer o pagamento das despesas: isto só aumentaria a credibilidade do jornal, pois a transparência dos procedimentos adotados é uma virtude do bom jornalismo. O fato é que, ao escamotear as condições em que a reportagem foi feita, a Folha de S. Paulo rasgou o seu próprio Manual de Redação e, pior, traiu seus leitores. Resta saber se um jornal que preza tanto a autocrítica vai ter a grandeza de reconhecer o erro.

* Luiz Antonio C. C. Magalhães é editor-assistente do Observatório da Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br). Foi diretor-adjunto e editor deste Correio (1996-2000). Endereço eletrônico: laccm@ig.com.br

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