No bombardeio midiático desencadeado pelo ataque terrorista de 11 de setembro aos EUA,
são identificáveis dois discursos diferentes que expressam atitudes antagônicas perante
a história, a aventura e o destino do homem.
Coincidem somente na condenação do repugnante crime.
Um deles faz da retaliação a primeira prioridade. É um discurso
maniqueísta. A humanidade estaria dividida em nações civilizadas e nações bárbaras.
Os bons teriam por missão punir os maus. Apresenta perigosas analogias com a tese do
professor Samuel Huntington sobre a inevitabilidade do choque violento das civilizações
no século XXI.
A contrapor o discurso da irracionalidade, escutamos com muitos matizes
o daqueles que, embora solidários com o sofrimento do povo norte-americano, não
acreditam que atos de guerra contra este ou aquele país possam ser uma resposta eficaz ao
terrorismo.
A dicotomia reflete uma crise global da civilização, na qual os
ataques terroristas ao Pentágono e às torres de Manhattan funcionaram apenas como
espoleta.
O que primeiro me impressiona na situação criada pelos crimes de 11
de setembro é a incapacidade para identificar algumas evidências por parte da maioria
dos que os comentam:
- A reação à tragédia do sistema de poder dos EUA deixa transparecer uma visão
hierarquizada da humanidade, como se esta fosse um edifício habitado por povos de
primeira, de segunda e terceira.
- Retomando o mito da «nação predestinada por Deus», ideado pelos Pais Fundadores, os
EUA teriam não só o direito de punir o inimigo sem rosto que os atacou, levando a guerra
onde e quando considerarem necessário, como teriam o direito a receber o apoio ativo para
essas ações daquilo a que se convencionou chamar a comunidade internacional.
- Destas evidências decorre uma terceira: o presidente Bush apresenta-se como um porta
voz da humanidade civilizada quando identifica a retaliação guerreira com uma nova
Cruzada.
O som dos tambores de guerra acionados pelo sistema de poder dos EUA
gera atitudes de medo. Na Europa, e em numerosos países do Terceiro Mundo, intelectuais
desorientados aderem ao coro da solidariedade incondicional, aceitando implicitamente a
tese da hierarquização das sociedades ou, por outras palavras, a conclusão de que a
vida de um norte-americano é muito mais importante do que a vida de um africano ou de um
asiático.
As estimativas provisórias admitem que o número de vitimas dos
atentados do 11 de setembro seja superior a 6 mil. Ora, a firme condenação do monstruoso
crime não pode fazer esquecer que para citar apenas três casos os
bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, os dois genocídios em Timor-Leste e as matanças
de Ruanda assumiram proporções muito maiores no tocante à dimensão dos matadouros
humanos. O mesmo se poderia dizer da Guerra do Golfo e da agressão à Iugoslávia.
Esses crimes contra a humanidade não provocaram, entretanto,
movimentos de protesto e solidariedade com as vítimas nem de longe comparáveis àquele a
que assistimos. Ora, os EUA foram o único responsável pelo uso das armas nucleares
contra o Japão, e poderiam, com um simples gesto, ter evitado os genocídios timorenses.
O terrorismo, sobretudo atos como os do 11 de setembro, em cuja origem
é identificável um fanatismo tresloucado, gera, naturalmente, um repúdio muito
peculiar. Mas isso não pode servir de argumento para, invocando princípios éticos,
lançar apelos a guerras punitivas cujas vítimas seriam povos inteiros.
Um dos incontáveis absurdos da campanha marcada pelo discurso da
irracionalidade é a obsessão do sistema de poder dos EUA em identificar o «grande
responsável». Quase imediatamente, o terrorista saudita Osama bin Laden passou a ser
apontado como «o inimigo número um» dos EUA. Tal atitude seria ridícula se não fosse
acompanhada de iniciativas políticas definidoras da estratégia da resposta
político-militar dos EUA. De repente, o sistema de poder da primeira potência do mundo
fez de um fanático islamita o cérebro e o responsável por um atentado de
extraordinária complexidade, sobre cuja montagem e densa rede de cumplicidades no
interior dos EUA quase tudo permanece envolvido em mistério.
No momento em que escrevo, são ainda imprevisíveis as conseqüências
práticas do ultimato dos EUA ao governo fundamentalista de Kabul para que entregue bin
Laden.
As posições do presidente Bush, do Departamento de Estado e do
secretário da Defesa levam a crer, entretanto, que o destino do «inimigo número um»
terá pouca ou nenhuma influência no tipo de resposta militar do sistema de poder dos EUA
ao devastador golpe que lhe foi infligido por um inimigo ainda nevoento.
A insistência com que os mais altos responsáveis anunciam em
Washington a necessidade de aplicar ao Afeganistão uma punição exemplar é, por si só,
reveladora da desorientação e irresponsabilidade do establishment norte-americano.
Quatro viagens ao Afeganistão e a travessia durante a guerra civil da
cordilheira do Hindu Kuch proporcionaram-me um razoável conhecimento do país, da sua
história milenar, das suas principais cidades e dos povos que ali vivem.
Pergunto-me: que punição têm em mente os estrategos
norte-americanos, famintos de retaliação? Num território bem maior do que a França,
onde não existe um único caminho de ferro, nem indústria, nem laboratórios, onde os
computadores são peças raras e a vida quotidiana transcorre quase no ritmo da Idade
Média, o que pensam esses senhores bombardear? O povo, primeira vítima do regime de
cruel obscurantismo ali implantado há cinco anos pelo seita dos Taliban?
Merece referência a quase omissão, no noticiário torrencial que nos
é oferecido sobre o Afeganistão, de análises sobre as circunstâncias em que os Taliban
chegaram ao poder em Kabul em 1996, substituindo ali a coligação também fundamentalista
que o ocupava. Foram os EUA quem, pela mão do Paquistão, e com o apoio da Arábia
Saudita, deram o sinal verde para que a seita Taliban inaugurasse o seu reinado de terror.
Foram os EUA quem, desde 1980, financiaram as escolas de terrorismo
instaladas nos territórios tribais da Fronteira do Noroeste. Ali se formaram sucessivas
gerações de terroristas, primeiro a serviço das chamadas Sete Organizações Sunitas de
Peshawar e depois dos Taliban. Os homens saídos da academia do terror ideada e montada
sob a supervisão da CIA ficaram internacionalmente conhecidos como «os afegãos»,
embora alguns fossem árabes. Quando o pão e o petróleo acabaram em Kabul e os
mujaedines entraram sem combate na capital que não haviam sido capazes de tomar pelas
armas, os profissionais do terrorismo «afegãos» espalharam-se pelo vasto mundo,
oferecendo os seus serviços a quem melhor lhes pagasse. Muitos foram parar na Argélia,
outros aos EUA. Entre essa escória humana, havia, por exemplo, especialistas no uso dos
mísseis stinger (fornecidos pela CIA), com os quais foram atacados e derrubados aviões
comerciais da Companhia Ariana, então do Governo da Revolução Afegã.
Hoje o feitiço virou-se contra o feiticeiro, mas é oportuno recordar
que cabe a Washington a responsabilidade pelo aparecimento no mundo dos terroristas
afegãos.
O QUE VEM AÍ
A histeria midiática que faz de bin Laden o inimigo principal dos EUA
terá curta duração. Foi uma necessidade da perversão desinformativa nos dias
posteriores à tragédia do 11 de setembro. Enquanto se elaborava a estratégia da
retaliação, era indispensável individualizar «o grande responsável», e desde o
presidente Bush, com a sua indisfarçável indigência intelectual, ao general Colin
Powell, passando pelo superfalcão Rumsfeld, da Defesa, o fogo oratório dos porta-vozes
do sistema de poder foi concentrado no ex-aliado, a quem antes definiam como «combatente
da liberdade».
Em breve, será transparente que a retaliação visa outros alvos.
Não há certezas por hora. Mas, na Casa Branca e no Pentágono, bin
Laden é um cartaz amarrotado nos debates sobre a utilização do poder militar
norte-americano. Certamente, fala-se mais do eventual bombardeamento da Líbia ou de
arrasar o que resta do Iraque. Não faltarão generais megalômanos a sugerir que o
castigo exemplar inclua o Irã, talvez o misérrimo Sudão.
A torrente de disparates vomitada hora a hora pelos mass media desvia a
atenção do alvo principal. A retaliação militar em preparação será,
previsivelmente, dirigida contra os chamados rogue states. O famigerado terrorista
saudita não passa de uma formiguinha na crise em desenvolvimento.
Washington não tem pressa, ao contrário do que as aparências
sugerem. Os homens chave do sistema de poder não se aperceberam ainda de que a
coligação universal de que os EUA seriam o pólo e o motor é uma utopia. Washington
conta para a anunciada Cruzada com o apoio declarado (sem carta branca) dos governos da
União Européia, do Japão, do Canadá, da Austrália, ou seja, dos ricos do planeta, mas
os povos desses países distanciam-se cada vez mais do projeto de ações militares
punitivas, cujas vitimas seriam as populações.
O tempo joga contra os EUA, porque, pouco a pouco, as intenções reais
do sistema de poder imperial principiam a transparecer.
Grandes questões inseparáveis do funcionamento da engrenagem da
globalização neoliberal podem vir a pesar decisivamente nas decisões militares.
A solidariedade dos governos da Alemanha e da França, por exemplo,
não resistiria a um eventual bombardeamento dos poços e refinarias do Irã, fonte
importantíssima do abastecimento da Europa em combustíveis.
Interesses econômicos e financeiros multimilionários chocam-se já
nos bastidores do jogo da guerra, antes da explosão, algures, da primeira bomba punitiva
norte-americana, esperada com ansiedade pelas forças mais obscurantistas da sociedade.
Não é segredo e os grandes jornais dos EUA já reconheceram
essa evidência que a Cruzada de que fala Bush daria um impulso enorme à economia
do país, sendo festejada pelo complexo militar-industrial.
Alguns analistas lembram que uns meses de guerra permitiriam a retomada
do crescimento, restituindo a saúde a uma economia combalida, temerosa do futuro. As
centenas de milhares de despedimentos das últimas semanas iluminaram a gravidade da
crise. Essa situação é, aliás, usada como argumento pelos partidários de uma «guerra
justa», por eles encarada como o melhor remédio para todos os grandes males da nação.
VENTOS NEOFASCISTAS
Nunca como hoje a pretensão dos EUA para agirem como império
universal e perpétuo foi tão transparente e perigosa.
A evolução da crise é, por hora, imprevisível.
Julgo útil, entretanto, chamar a atenção para dois pontos.
- A Cruzada proclamada por Bush não irá adiante porque o projeto se choca com o desejo
de paz da esmagadora maioria da humanidade. Os povos não acompanharão o aventureirismo
guerreiro. Condenam essa política.
- Esboça-se no horizonte uma ameaça de contornos pouco claros, mas que deve ser
combatida desde o início com a maior firmeza.
A pretexto de dar combate eficaz ao terrorismo, os governos da maioria
dos países industrializados tentarão restringir liberdades e direitos constitucionais,
intensificando e ampliando políticas repressivas.
Num momento em que pelo mundo afora está subindo a maré da
contestação ao neoliberalismo e ao seu projeto desumanizante, Washington e os seus
aliados europeus tudo farão para impor pela força um modelo de sociedade desacreditado e
que os povos rejeitam. A partir de agora, não tenhamos dúvidas, será cada vez mais
difícil que as massas, nas ruas, como aconteceu em Seattle, em Davos e em Gênova,
expressem o seu repúdio pelo governo mundial das minorias, que faz da desigualdade
crescente entre os homens a alavanca do crescimento econômico.
Um neofascismo de matizes diferenciados aflora já no discurso
político dos apologistas da Cruzada bushiana.
Colar o rótulo de terroristas potenciais a quantos se batem pela
liberdade e pelo progresso da humanidade, a quantos se rebelam contra o discurso e o
projeto neoliberal, é uma tentação para os ideólogos do sistema de poder dos EUA e
para os seus aliados.
Nunca, portanto, foi tão necessária a solidariedade a combatentes de
vanguarda, como são os palestinianos, os guerrilheiros das FARC colombianas, os
revolucionários venezuelanos unidos em torno do governo Chávez, os Sem Terra
brasileiros, para citar quatro exemplos expressivos.
Supérfluo será acrescentar que a luta dos comunistas em todo o mundo
será doravante muito mais difícil.
Miguel Urbano Rodrigues é jornalista português.
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