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Os Brennand



Fábio Luís
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Era uma vez um reino encantado chamado Brasil, onde vivia uma família muito rica chamada Brennand. Essa família teve dois filhos que nasceram empresários, como todos na família. Mas, no meio de suas vidas, os dois foram tocados pela varinha de condão das artes. E se projetaram na cena social do reino para além da vocação mercantil do lar.

O primeiro Brennand modelou seus instintos artísticos apoiado na tradição  da família, grande fabricante de cerâmica no país. Revelou um evidente valor artístico. Seu trabalho consiste significativamente em grandes esculturas e murais, que evocam, nos temas e nos tons, as raízes européias mais profundas da nossa terra, inevitavelmente moldada no barro nativo. Percorrendo uma exposição de seus trabalhos, temos a impressão de penetrar um passado medieval que nunca se deu entre nós.

Dotado de talento, mas também de dinheiro, Brennand pôde sitiar uma exposição permanente de suas obras em uma confortável chácara na grande Recife. Aproveitou as instalações parcialmente abandonadas de uma fábrica da família, recuperadas e transformadas em museu.

Muitas obras estão assentadas sobre o jardim lateral, contornado por um alto muro lembrando arcos romanos. Espécies de gárgulas do novo mundo enfeitam as paredes, que desembocam em um espelho d’água remetendo fantasticamente a um momento onde esta terra sofreria o seu batismo primal. No seu todo, o conjunto parece uma grande catedral tropical sem telhado, sem vidro e sem cruz: apenas uma figura de Adão e Eva nos fundos.

Já o imenso galpão coberto divide espaço entre as obras expostas, uma oficina e a fábrica de cerâmica propriamente dita, que segue operando. Na entrada para o museu, é possível vislumbrar, ao lado de uma estátua da justiça de olhos vendados, uma porta de vidro que conduz à linha de produção. Walter Benjamin dificilmente vislumbraria uma ilustração mais didática da sua afirmação: “Não há um documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie”.

Outro filho Brennand seguiu com maior rigor a vocação empresarial da família, mas recentemente investiu também em outros interesses. Com menos talento, mas também muito gosto artístico, começou a colecionar os valiosos e raros quadros de Frans Post, pintor holandês trazido por Nassau quando ocuparam Pernambuco no século XVII. Em pouco tempo, Brennand comprou quase a metade das poucas obras que o artista fez no próprio Brasil, as primeiras pinturas desta terra feitas nesta terra. Adquiriu também uma série de telas menores e gravuras feitas já na Europa, algumas de autoria controversa, e em pouco tempo reuniu o maior acervo iconográfico sobre a colônia no tempo dos holandeses no Brasil.

Consciente do interesse público da coleção, Brennand tomou a iniciativa de fundação do instituto Francisco Brennand – homenagem a um tio, grande apreciador das artes na família e, por coincidência, homônimo seu. Em outra generosa gleba de terra da família no grande Recife, decidiu sediar o instituto e a coleção, e para tal achou apropriado a construção de um castelo. Inaugurado há pouco, a excentricidade obriga os interessados em arte e na história brasileira a atravessarem um feudo e adentrarem um castelo para poder conhecê-los.

Os episódios envolvendo a família Brennand na paisagem cultural brasileira em Pernambuco refletem a natureza acidental do subdesenvolvimento. Subordinadas à vocação egoística de seus expoentes capitalizados, manifestações culturais e sociais dependem do atrelamento feliz a alguma egotrip identificada com a sua causa. Em raros casos, ocorre uma feliz simbiose entre talento e fortuna, que se alimentam retroativamente. No subdesenvolvimento, o interesse coletivo está subordinado à vaidade de egos social e economicamente salientes. Em uma realidade onde o Estado não se identifica com o bem comum, nossa cultura se revela subdesenvolvida, justamente onde aparece mais apoiada e acolhida.

 

Fábio Luís é jornalista.

 

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