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Era uma vez um reino
encantado chamado Brasil, onde vivia uma família muito rica chamada Brennand.
Essa família teve dois filhos que nasceram empresários, como todos na
família. Mas, no meio de suas vidas, os dois foram tocados pela varinha de
condão das artes. E se projetaram na cena social do reino para além da
vocação mercantil do lar.
O primeiro Brennand
modelou seus instintos artísticos apoiado na tradição da família, grande
fabricante de cerâmica no país. Revelou um evidente valor artístico. Seu
trabalho consiste significativamente em grandes esculturas e murais, que
evocam, nos temas e nos tons, as raízes européias mais profundas da nossa
terra, inevitavelmente moldada no barro nativo. Percorrendo uma exposição de
seus trabalhos, temos a impressão de penetrar um passado medieval que nunca
se deu entre nós.
Dotado de talento, mas
também de dinheiro, Brennand pôde sitiar uma exposição permanente de suas
obras em uma confortável chácara na grande Recife. Aproveitou as instalações
parcialmente abandonadas de uma fábrica da família, recuperadas e
transformadas em museu.
Muitas obras estão assentadas sobre o jardim
lateral, contornado por um alto muro lembrando arcos romanos. Espécies de
gárgulas do novo mundo enfeitam as paredes, que desembocam em um espelho
d’água remetendo fantasticamente a um momento onde esta terra sofreria o seu
batismo primal. No seu todo, o conjunto parece uma grande catedral tropical
sem telhado, sem vidro e sem cruz: apenas uma figura de Adão e Eva nos
fundos.
Já o imenso galpão
coberto divide espaço entre as obras expostas, uma oficina e a fábrica de
cerâmica propriamente dita, que segue operando. Na entrada para o museu, é
possível vislumbrar, ao lado de uma estátua da justiça de olhos vendados,
uma porta de vidro que conduz à linha de produção. Walter Benjamin
dificilmente vislumbraria uma ilustração mais didática da sua afirmação:
“Não há um documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da
barbárie”.
Outro filho Brennand
seguiu com maior rigor a vocação empresarial da família, mas recentemente
investiu também em outros interesses. Com menos talento, mas também muito
gosto artístico, começou a colecionar os valiosos e raros quadros de Frans
Post, pintor holandês trazido por Nassau quando ocuparam Pernambuco no
século XVII. Em pouco tempo, Brennand comprou quase a metade das poucas
obras que o artista fez no próprio Brasil, as primeiras pinturas desta terra
feitas nesta terra. Adquiriu também uma série de telas menores e gravuras
feitas já na Europa, algumas de autoria controversa, e em pouco tempo reuniu
o maior acervo iconográfico sobre a colônia no tempo dos holandeses no
Brasil.
Consciente do
interesse público da coleção, Brennand tomou a iniciativa de fundação do
instituto Francisco Brennand – homenagem a um tio, grande apreciador das
artes na família e, por coincidência, homônimo seu. Em outra generosa gleba
de terra da família no grande Recife, decidiu sediar o instituto e a
coleção, e para tal achou apropriado a construção de um castelo. Inaugurado
há pouco, a excentricidade obriga os interessados em arte e na história
brasileira a atravessarem um feudo e adentrarem um castelo para poder
conhecê-los.
Os episódios envolvendo
a família Brennand na paisagem cultural brasileira em Pernambuco refletem a
natureza acidental do subdesenvolvimento. Subordinadas à vocação egoística
de seus expoentes capitalizados, manifestações culturais e sociais dependem
do atrelamento feliz a alguma egotrip identificada com a sua causa. Em raros
casos, ocorre uma feliz simbiose entre talento e fortuna, que se alimentam
retroativamente. No subdesenvolvimento, o interesse coletivo está
subordinado à vaidade de egos social e economicamente salientes. Em uma
realidade onde o Estado não se identifica com o bem comum, nossa cultura se
revela subdesenvolvida, justamente onde aparece mais apoiada e acolhida.
Fábio Luís é jornalista.
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