Correio da Cidadania - Coluna Cidade Aberta

Favela: gueto ou enclave?

Roberto Rocco


Peter Marcuse define o enclave como “uma área espacialmente concentrada, onde membros de uma dada população, definida pela etnia, religião ou outros fatores, congregam-se como meio de incrementar seu desenvolvimento econômico, social, político ou cultural” (“The Ghetto of Exclusion and the Fortified Enclave”, 1997). Ao enclave, contrapõe-se o novo gueto dos excluídos, onde o fator raça se combina com classe social, num espaço onde as atividades econômicas dos residentes são excluídas pela sociedade, que por sua vez não se beneficia significativamente da sua existência. Segundo Marcuse, “o confinamento dos residentes num gueto é desejado pela classe dominante por medo de que suas atividades, não controladas, possam colocar em perigo a paz social”.

Talvez, o exemplo mais acabado do gueto contemporâneo sejam os campos palestinos, embora a história esteja cheia de exemplos tão ou mais grotescos, como o apartheid sul-africano, discutido anteriormente nessa coluna.

A favela brasileira, pesem as diferenças regionais e locais, não se encaixa plenamente na descrição do gueto, embora alguns elementos possam ser nela reconhecidos. O caso brasileiro é particular, entre outros motivos, pela resistência de pensadores e do público em geral em reconhecer o elemento racial como determinante da separação entre “morro” e “asfalto”, ou qualquer outra topografia da separação que se queira desenhar. Quando muito, admite-se a “pesada herança do escravismo” na composição da exclusão, sendo o racismo derivado visto como fator menor.

A favela não é gueto, no que se refere aos benefícios econômicos que a elite realiza com a sua existência: afora a eterna fonte de mão-de-obra barata e desqualificada que se traduz num exército de domésticas, porteiros, pedreiros e seguranças que se encarregam de manter o mundo das classes privilegiadas funcionando, a própria existência da favela traduz em forma urbana a opção por um modelo desenvolvimentista excludente, que amplifica os ganhos da classe dominante via, entre outros fatores, os baixos investimentos em moradia social e a prioridade para os investimentos em infra-estrutura que facilitam a acumulação de capital.

Entretanto, a favela se firma cada vez mais como “enclave”, isso é, plataforma para a mudança e para a promoção social, através das redes internas de solidariedade e das estratégias da economia informal. Isso apesar do efeito devastador que o tráfico de drogas tem sobre as relações de poder e a sociabilidade na favela.

Os fenômenos culturais da favela há muito ultrapassaram suas fronteiras e hoje são apropriados pela indústria cultural, mas isso não impede que esses fenômenos e redes de solidariedade sirvam como instrumento de resistência e afirmação cultural e econômica.

Talvez o Estado não esteja “ausente” do espaço da favela, como se supõe amiúde, mas constitua uma instância que envolve e possibilite a favela, estabelecendo com ela laços de clientelismo que vão além da corrupção política pelo dinheiro do tráfico. No caso brasileiro, a favela é mais que nada um produto do Estado, que sorrateiramente se furta a assumir sua responsabilidade, naturalizando a pobreza e apontando a favela como “infeliz produto da história”. Esta explicação é lacunar e, portanto, ideológica. Não há, na verdade, espaço onde o Estado não “possa” penetrar, mas espaços onde ele não quer penetrar. A dicotomia entre “nós” e “eles” se amplia e oportunidades de inclusão são jogadas fora, enquanto se estabelecem reinos de terror em torno ao crime organizado.

 

Roberto Rocco é arquiteto-urbanista e doutorando pela Universidade Técnica de Delft, Holanda.

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