Correio da Cidadania - Educação

Educação superior: desconstruindo mitos

Lighia B. Horodynski-Matsushigue e Otaviano Helene

 

Tarso Genro, ministro da Educação, deve apresentar sua proposta de reforma do ensino superior ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 29 de julho. Tanto para analisar essa proposta como para entender os reais problemas do ensino superior em nosso país, é necessário desconstruir alguns mitos criados nos últimos anos. Expomos, aqui, alguns argumentos, muitos deles baseados em dados oficiais retirados de sites do Inep e da Unesco, que podem ajudar no esclarecimento da opinião pública.


Mito 1 – A universidade pública é mais cara do que a privada.
Estudos da USP e da Universidade de Brasília chegaram a conclusões semelhantes: incluídos os alunos de pós-graduação, excluído o pagamento de docentes e funcionários aposentados e subtraída parte das despesas com hospital, museus e pesquisa, o investimento por aluno é da mesma ordem ou até mais baixo do que as anuidades das instituições privadas, apesar dos cursos oferecidos na USP serem, em média, de qualidade muito superior àqueles oferecidos por instituições privadas. A título de exemplo, o custo anual de um estudante de graduação na USP, a valores de 2005, é, aproximadamente, R$ 5 mil na Faculdade de Direito, entre R$ 3 e R$ 7 mil em Letras e Ciências Humanas, entre R$ 6 e R$ 7 mil em Economia e Administração, R$ 12 mil em Engenharia e R$ 20 a 25 mil em Medicina.

Mito 2 – Os estudantes da universidade pública pertencem aos estamentos mais ricos da população.
Segundo dados colhidos pelo Inep por ocasião do Provão 2003, em cada carreira a proporção de estudantes com renda familiar global abaixo de R$ 4,8 mil por mês é maior nas instituições públicas do que nas privadas. A maior diferença é constatada para Medicina, onde essa proporção fica em 61,4% nas públicas e apenas 45% nas privadas. Nos cursos de Pedagogia e Matemática, mais de 97% dos estudantes vem de lares com rendas abaixo desse limite, tanto nas públicas, quanto nas privadas, havendo, mesmo, 44,5% (nas públicas) e 39,3% (nas privadas) de famílias situadas abaixo, ou no limite, de R$ 720 na sua renda mensal global. Mesmo dados da USP (Fuvest 2003) revelam que 3% dos matriculados no 1º ano vêm de famílias com renda abaixo de R$ 500; 20% estão entre R$ 0,5 e 1,5 mil e o maior grupo (25,3% para a área de Humanas; 27,3% para a de Exatas e 27,8% para a de Biológicas) dispõe de R$ 1,5 a 3 mil na família. Apenas 8,3% dos estudantes (humanas) e 5,7% (exatas e biológicas) declaram renda familiar acima de R$ 10 mil. Além disso, na USP, menos de 1% se diz filho de gente que vive de rendas, menos de 2% filho de grande ou médio empresário; 9% são filhos de funcionários públicos de algum tipo e 28% tem como pais funcionários de empresa privada ou estatal. Entre 35% (exatas e biológicas) e 41% pretendem sustentar-se com ajuda da família e trabalhando.

Mito 3 – A universidade pública é para brancos.
Na verdade, a discriminação, que possivelmente está mais associada à renda familiar, se diferencia por curso e é maior nas instituições privadas (Inep- Provão 2003). Assim, em Medicina, 74,1% nas públicas e uma proporção mais alta nas privadas (85,8%) se declararam brancos. Por outro lado, em Pedagogia e Matemática, respectivamente, 50,9% e 52,3% (públicas), contra 73,6% e 73,1% (privadas) disseram o mesmo, sendo o restante predominantemente auto-declarado pardo/mulato.

Mito 4 – Egressos da Escola Pública estão nas instituições privadas.
A mesma fonte (Inep) mostra que, analisando as mesmas carreiras e considerando os formados 2003, a proporção de alunos egressos de escolas privadas é maior nas instituições privadas, embora novamente a discriminação ocorra em função da carreira escolhida. Assim, em Medicina, fizeram todo ensino médio em escola particular 73,7% dos concluintes de instituições públicas, contra 75,3% das instituições privadas. A razão se reduz para, respectivamente, 42,1% e 53,6% em Administração e para apenas 15,8% e 16,7% em Pedagogia, tomando o Brasil como um todo.

Mito 5 – A Educação Superior é predominantemente privada nas nações mais desenvolvidas.
Ledo engano! As nações desenvolvidas têm clara noção do valor estratégico da Educação Superior. Em número de matrículas, o Ensino Superior de graduação era, na virada do século, ainda totalmente público na Alemanha e em várias outras nações européias; 94% público na Itália e 89% na França. Nos Estados Unidos, contra expectativas infundadas, a proporção de estudantes de graduação atendidos pelas instituições públicas é da ordem de 70%. Atualmente, a média brasileira é de bem menos de 1/3 no atendimento público, nos deixando abaixo de todos os países latino-americanos, até mesmo do campeão anterior, o Chile (32,1%). Assim, no México ainda se conservam 67% e na Argentina 85% de matrículas no setor público, segundo dados da Unesco.

Mito 6 – O ensino superior público no Brasil é muito caro.
O jornal francês Le Monde, em sua edição de 16/09/04, lamentava a situação do ensino superior na França e dava, como uma das razões, o fato daquele país investir apenas US$ 7 mil de verba pública por ano em cada estudante, frente a mais de US$ 8 mil do Reino Unido, da Suécia etc, sem falar dos US$ 20 mil nos Estados Unidos. Estes valores são mais do dobro da média brasileira, que não chega a US$ 3 mil por estudante/ano de financiamento público.

Mito 7 – As instituições privadas contribuem para o desenvolvimento do país.
Além de oferecerem basicamente cursos de menor custo, tipo giz e cuspe, que independem de instalações custosas de laboratórios e outras infra-estruturas, as instituições privadas comprovadamente se instalam em regiões de maior poder aquisitivo da população e não naquelas necessitadas de desenvolvimento. Ademais, é dado sobejamente conhecido que, apesar de serem, em princípio, obrigadas a desenvolver pesquisas, as universidades privadas no Brasil, mesmo a maioria das instituições confessionais instaladas há muitas décadas, pouco o fazem e, quando há produção de conhecimento, esta ocorre basicamente na área de Humanas, a qual requer menores investimentos financeiros. Não é, pois, desprovido de fundamento o fato de mais de 90% da pesquisa original no Brasil ser produzida pelas universidades públicas. Finalmente, as instituições privadas não oferecem os cursos que o país necessita, mas sim aqueles que têm demanda de mercado.

Mito 8 – É imperioso satisfazer as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) sobre participação dos jovens de 18 a 24 anos no Ensino Superior.
O PNE traz outras metas, sobre as quais não há comentário, sendo, possivelmente, das mais importantes o reforço na Educação Infantil; em particular, a enorme necessidade de vagas nas creches, que teriam que ser aproximadamente quintuplicadas. Além disso, havia dispositivos importantes na versão aprovada pelo Congresso e que possibilitariam o atendimento das metas: um aumento da fração do PIB destinada para a Educação, tornando-a mais próxima daquela investida em países mais desenvolvidos, ou seja, destinar à Educação, de todos os níveis, 7% do PIB, o que quase duplicaria as verbas atuais. Tais dispositivos foram vetados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.

Mito 9 – A qualidade da Educação oferecida pelas grandes instituições privadas aproxima-se daquela das públicas.
Boa parte das universidades privadas que consta do ranking das 20 maiores, em número de alunos, oferece ensino de qualidade absolutamente inadequada, conforme mostra, em particular, o exame da OAB. Tal situação é tão mais preocupante quando se considera que parcela ponderável dos professores que atuam no Ensino Básico tem se graduado em tais instituições. Pós-graduandos e pós-graduados das instituições públicas que trabalham, ou já trabalharam, em funções docentes nessas universidades, em São Paulo, no Rio e em outros Estados, relatam que, mesmo com todo empenho, são incapazes de garantir boa formação aos estudantes, frente às reais condições de trabalho que encontram nas instituições privadas.

Mito 10 – Há vagas ociosas nas instituições privadas.
Muitas das vagas nas instituições privadas foram criadas recentemente como reserva estratégica de mercado. Não existem nem professores, nem salas de aula à espera de alunos. Não há, portanto, ociosidade, expressão amplamente usada para justificar o Prouni. O número excessivo de vagas em instituições privadas faz com que parte delas não seja oferecida e parte das oferecidas não seja preenchida.

Mito 11 – Com o Prouni, os estudantes carentes vão concluir com sucesso sua graduação numa instituição privada.
A relação concluinte/ingressante é consideravelmente pior nas privadas do que nas públicas. Parte dessa diferença está associada a dificuldades financeiras. Ora, as instituições públicas, além de gratuitas, têm programas, ainda que insuficientes, de gratuidade ativa, como refeições subsidiadas, moradia estudantil, bibliotecas bem estabelecidas e atendimento na área de saúde. Tais programas inexistem nas privadas; como o estudante fará para se manter devidamente envolvido com o curso?

À Guisa de Conclusão
A expansão de vagas no setor público é necessária e urgente. Essa expansão deve ocorrer paralelamente ao aumento do número de docentes e funcionários técnico-administrativos e vir acompanhada de ampliação da infra-estrutura, como bibliotecas, laboratórios e outros equipamentos. O custo do ensino público não é maior do que o do setor privado, embora a qualidade dos cursos seja melhor e o atendimento aos estudantes mais adequado. Além disso, o setor privado não oferece os cursos que o país precisa nem estes estão instaladas em regiões nas quais o retorno econômico, social e cultural seria maior. Por fim, a qualidade do ensino privado é, na média, inferior à do ensino público, não havendo também contribuições significativas à pesquisa nacional. Como conseqüência, o retorno à sociedade prestado pelo ensino superior privado é pífio, sem contribuições relevantes para o desenvolvimento das várias áreas de conhecimento e, muitas vezes, nem sequer permitindo o crescimento profissional e pessoal do próprio estudante.


Lighia B. Horodynski-Matsushigue é diretora da Associação dos Docentes da USP (Adusp) e professora do Instituto de Física da USP; Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente e vice-presidente da Adusp e presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), nos primeiros seis meses do governo Lula, deixando o cargo por renúncia.
 

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