Comentários sobre ações afirmativas
Otaviano Helene
Está no Congresso Nacional um projeto de lei que
institui a obrigatoriedade de cotas (50% das vagas) em instituições
federais de ensino superior para estudantes egressos de escolas
públicas, parte delas destinada a estudantes negros e índios na
proporção existente em cada unidade da Federação. Esse projeto merece
alguns comentários.
Ações afirmativas têm sido adotadas por diversos países, em vários
setores (educação, emprego etc.) e dirigidas a diferentes grupos
(origem nacional, gênero, etnia, religião etc.). No Brasil, elas têm
aparecido apenas na forma de cotas para estudantes em instituições de
ensino público superior. Ações afirmativas têm, mundo afora, críticos
e defensores. Os principais argumentos dos defensores estão
relacionados à redução das barreiras que propiciam desigualdades.
Argumentos contra ações afirmativas podem incluir o favorecimento de
subgrupos já favorecidos (como negros ricos, nos EUA), interferência
na identidade cultural (como a incorporação dos maoris da Nova
Zelândia à cultura européia), inutilidade (privilegia alguns na mesma
proporção que reduz a chance de outros, deixando o todo inalterado)
etc. Independentemente das críticas e apoios que as ações afirmativas
têm recebido, vamos analisar o que pode acontecer, na prática, no caso
brasileiro.
Um primeiro aspecto dos programas de cota no Brasil é quanto à
insuficiência. Cerca de 1,6 milhão de jovens completam, a cada ano, o
ensino médio em instituições públicas. As vagas em instituições
federais de ensino superior em todo o país são da ordem de 100 mil.
Metade destas vagas, as destinadas às cotas, corresponde apenas a
cerca de 3% dos potenciais beneficiados. A situação em São Paulo é
ainda pior: cerca de 450 mil conclusões por ano em escolas públicas
para um total de vagas federais inferior a 2.000, metade delas
correspondendo a 0,2% dos concluintes! Esses são os potenciais
beneficiados: 3% na média nacional e 0,2% em São Paulo.
Vale observar que o descaso com a educação pública superior em São
Paulo chega a tal nível que mesmo que as cerca de 20 mil vagas em
instituições federais e estaduais fossem disponibilizadas para cotas,
apenas 4% dos concluintes de escolas públicas seriam atendidos.
Um segundo aspecto é quanto ao possível perfil dos estudantes
beneficiados pelas cotas. Apesar da falência do ensino fundamental
público, há algumas poucas exceções. Uma dessas é formada pelo
conjunto de escolas federais (Cefets, colégios de aplicação, escolas
militares), de onde vem cerca de 1% dos concluintes do ensino médio.
Um segundo grupo, também com cerca de 1% dos concluintes, é formado
pelas poucas escolas estaduais de boa qualidade, sendo a quase
totalidade delas escolas técnicas ou colégios de aplicação. Como as
federais, essas escolas estaduais oferecem melhores condições de
trabalho para seus docentes e de aprendizado para seus estudantes do
que aquelas oferecidas pelas demais escolas das redes públicas, sendo
que muitas selecionam seus estudantes por meio de um vestibular. Ou
seja, são escolas diferenciadas e que trabalham com estudantes também
diferenciados. O desempenho dos egressos dessas escolas nos
vestibulares e nos Enems é bastante elevado. São nessas escolas que
encontraremos a maioria dos beneficiados pelo sistema de cotas, e não
entre os pobres que freqüentam as demais escolas estaduais e
municipais, onde estão 98% dos concluintes do ensino médio público.
Outro aspecto, ainda, diz respeito às condições em que as ações
afirmativas são adotadas. Nos diversos países, elas ocorreram (e
ocorrem) juntamente com a retirada das barreiras que as motivaram. Por
exemplo, na Índia, ações que beneficiam as castas desfavorecidas pelas
tradições religiosas são feitas por um estado laico e que não
reconhece a classificação em castas; seria absurdo, e mesmo
esquizofrênico, um estado religioso adotar tais ações afirmativas. Nos
EUA, as ações afirmativas foram implementadas juntamente com a
retirada das barreiras raciais legais. Entretanto, no Brasil, ações
afirmativas são adotadas enquanto as condições que as motivaram são
mantidas: uma grande maioria das escolas estaduais e municipais de
ensino fundamental e médio de péssima qualidade.
É importante observar que uma possível resposta para a observação
acima seria o Findeb, o fundo para a educação básica nos moldes do
Fundef, ora em tramitação no legislativo. Entretanto, o Findeb não
alterará a realidade da educação brasileira. Esse programa apenas
redistribuirá os recursos públicos, sabidamente insuficientes, não
alterando seu total. Caso venha a haver alguma melhora no
financiamento da educação básica ou média por conta de um aumento de
recursos para esses níveis de ensino, haverá uma piora em algum outro
nível educacional, uma vez que a totalidade dos recursos públicos
destinados à educação permanecerá inalterada. Como no caso do Fundef,
troca-se o cobertor do mendigo, que cobria a cabeça ou os pés, por
outro que cobre tudo, mas é mais ralo: melhora a aparência, mas o
mendigo continuará morrendo de frio.
Ao se manter a baixa qualidade do sistema público de educação básica,
o sistema de cotas poderá ter ainda um efeito perverso. Os estudantes
não aproveitados serão considerados não mais vítimas de um sistema
falido, mas, sim, os responsáveis pela interrupção dos próprios
estudos, pois chances tiveram: a velha prática de responsabilizar a
vítima.
Otaviano Helene é professor do
instituto de Física da USP, ex-presidente da Adusp, Associação de
Docentes da USP, e ex-presidente do INEP - Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira -
otaviano@if.usp.br.
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