Correio da Cidadania

A pátria em chuteiras, patriotas ou nacionalistas

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A copa e o nacionalismo

O Brasil voltou a se vestir de verde e amarelo, somos quase 200 milhões na corrente pra frente. O técnico da seleção nacional, Tite, faz propaganda do Banco Itaú, Paulinho, meio campo, vende a operadora Vivo e um site de aposta, o “falecido” Dunga vende isso, Neymar vende aquilo. Todos ganham dinheiro e beijam o escudo nacional. Que circo é esse?

Nelson Rodrigues, um conhecido intelectual brasileiro, já chegou a escrever um livro sobre essa mística que salta durante o certame mundial: o seu “A pátria em chuteiras”. Durante boa parte da vida ele se utilizou da crônica esportiva e do futebol buscando realizar uma ligação cultural com o povo brasileiro, através dos aspectos centrais de sua formação histórica e de sua consciência como povo e nação. Também adentrou no debate esportivo com elementos sociológicos, filosóficos e mesmo antropológicos, buscando, de maneira inovadora, fazer a análise psicanalítica do nosso país. Era um cara da extrema-direita, mas inteligente, e mesmo que o seu reacionarismo fosse opaco, raivoso, como todo reacionário é, não deixou de ser interessante nesse aspecto da sua escrita. Sabe quando alguém diz, não gosto dele, mas tenho que ler?

Ao descrever a seleção brasileira de 1958, antes de ela embarcar para o México, onde seria campeã, Nelson afirmava que os críticos esportivos nacionais não colocavam qualquer fé naquela seleção. E a fé como elemento religioso é um elemento importante no nosso dia a dia assim como a superstição o é no futebol, um país de negros e mestiços, e profundamente dependente. Estes sentimentos dissolvidos estão na nossa frente, quando um jogador entra com o pé direito no gramado, faz o sinal da cruz, aponta para o céu na feitura de um gol etc...

Envolto por toda esta compreensão, Nelson Rodrigues, de maneira inteligente, atirou contra estes analistas que antecipavam o fracasso, afirmando que os brasileiros sofriam de um fantástico "complexo de vira-lata", um problema crônico de inferioridade diante dos europeus e demais nações ricas e dominantes no planeta. Para ele seríamos pobres, feios, desdentados, fedidos, doentes, uma mistura de raças que nos tornava dependentes e inferiores e, portanto, profundamente perdedores. Essa sua ideia sobre os brasileiros deixou Darcy Ribeiro muito indignado, na medida em que trabalhava intelectualmente em outra direção, na construção do que conceitualmente caracterizou como um povo novo e profundamente mais forte e criativo.

Pois, trago tais elementos agora, revendo o debate, às vésperas da Copa do Mundo da Rússia, para aproximá-los de dois conceitos confusos para certos leitores e mesmo alguns intelectuais, acerca das diferenças entre patriotismo e nacionalismo, que ficam próximos, mas são diferentes e com profundas ambiguidades de intensidade, algo que atinge a flor da pele, nas disputas envolvendo o futebol mundial.
 
Para o senso comum, patriota ou nacionalista é a mesma coisa, o que na prática não se configura como verdade. Pois o primeiro indica e absorve o local onde eu nasci, já o segundo é uma opção política, uma ideia, uma ideologia acerca do que vou fazer com meu país, o que eu quero e defendo para o meu lugar. Assim, posso ser nascido no Rio de Janeiro, amar o país de coração – ser patriota, portanto - mas defender a venda do Maracanã para o Eike Batista, ou o pré-sal para os Estados Unidos e assim por diante. Nesse caso, o contrário seria ser nacionalista: amar o Rio, amar o país e não querer ver nossas belezas nas mãos de empresários inescrupulosos ou outros países.

Dentro desse debate quero apresentar um autor chileno muito conhecido do esporte fora do Brasil, Eduardo Santa Cruz Achurra, mas que aqui no Brasil é pouco lido.

 
Eduardo Santa Cruz Achurra

No texto “Futebol e nacionalismo de mercado no Chile atual” do livro Futbologías, organizado por Pablo Alabarces, Eduardo faz o caminho tradicional da sociologia do esporte ao analisar o futebol. Entende o futebol como um espetáculo construído historicamente e dominado pelos centros hegemônicos, Europa e países centrais, imperialistas. Entende que o esporte, e em especial, o futebol, possui um ritual demarcado por termos simbólicos que acabam por redundar em um campo esportivo de identidades regionais e mesmo nacionais, algo que vai institucionalizando-se enquanto fenômeno de massas.  

Ele mostra que o processo de organização do futebol segue a razão, indo da base ao topo da pirâmide (clubes, associações, federações, confederações e FIFA), e vê o futebol como mercadoria, como luta pelo poder, com ligações intestinais com o Estado e as instituições transversais, como escola, educação, saúde, religião. Pela sua visualidade, pela aparência, o futebol ganha poder e assim configura popularidade como mercadoria. Eduardo repassa a história do futebol chileno, que é muito parecido com o futebol de toda América Latina, saindo do amadorismo para o profissionalismo ao final de 1930.
 

Porém, o autor chileno cai em uma armadilha política bastante conhecida por nós no Brasil e que foi criada pela intelectualidade paulista, leia-se USP, e creio que a melhor referência nesta área é Renato Ortiz. A mesma conversa que dominou o Brasil e os cursos de pós-graduação acerca da modernidade, da pós-modernidade, do atraso e do conservadorismo. Eduardo, assim como muitos autores ligados ao debate do futebol, ao encarar o nacionalismo e o patriotismo, se afoga neste gueto teórico, sem considerar que a América Latina é um espaço dependente e subdesenvolvido.  

Ele fala da internacionalização da cultura, retrata o desenvolvimento desigual da educação, a expansão dos mercados, a destruição do meio ambiente, o esquecimento do passado, a pobreza massiva, a exclusão dos indígenas, mas afirma que estes temas deveriam ganhar uma nova cobertura do discurso, ou seja, da ideologia, e deveriam ser tratados no campo da modernidade. Já o futebol seria outra coisa.

Diz que os fragmentos, a heterogeneidade social e cultural se redescobrem em uma nova "chilenidade", aberta e explicitada no consumo de símbolos pátrios, expressa na camiseta nacional, nas bandeiras, na vibração de um gol, no beijo dado pelo jogador no escudo nacional, favorecendo o campo de uma identidade nacional. Para ele isso pode falsificar o tempo presente, mas não a história, que é marcada pelo desenvolvimento e progresso possível, ocultando as causas de seu aprisionamento ao desenvolvimento não conquistado.

Eduardo aponta que o evento interativo é a base da modernidade tecnológica atual. O mercado teria conseguido plantar a ideia da “integração possível” em todos os campos, na arte, na política e também no futebol. É como se dissesse, “fazemos parte, estamos aqui, na medida do possível”. Mas, ao contrário do que pensa Eduardo acreditamos que a falsificação da verdade, o evento massivo, e citamos aqui a Copa do Mundo, induz a uma falsificação da consciência e uma alienação na universalização do formato do espetáculo.

Eduardo entende que a identidade nacional é uma utopia plantada pelo Estado nacional e que encontra nestas manifestações esportivas a possibilidade de sua sustentação. Sua pronta prática efetiva está na compra de camisetas do selecionado nacional chileno, de jogadores como Zamorano ou Salas, que fazem de seus portadores cada vez mais dignos chilenos. Dito de outra forma, o espetáculo colocaria os desiguais, ricos e pobres, em condições de competir no mercado mundial e ainda assim salvar o orgulho nacional. Para ele esta é a realidade do mercado mundial, da mídia esportiva que transformou os clubes em empresas e o futebol em mercadoria valorosa expressa pela FIFA, Copa América, Libertadores da América e UEFA.  

Santa Cruz aponta que o centro de todo processo de desenvolvimento do futebol mundial e chileno tem como base, hoje, a televisão e sua capacidade de incluir e falsificar tal ideia. A modernidade televisiva é praticada a céu aberto, apresentada em plena avenida do Chile, em pessoas com camisas de clubes e jogadores europeus. Expressando a força da mídia, Eduardo sustenta que 44,21% da renda atual do futebol chileno é proveniente dos contratos televisivos com a Fox, Sky e outras, significando uma gigantesca operação comercial que beneficia empresas esportivas e indivíduos em diferentes níveis. Isto dito de maneira mais clara significa manter dirigentes esportivos e a federação chilena, assim como suas ramificações externas, no poder.

Participar do sistema esportivo em suas várias etapas determina a capacidade de arrecadar fundos fabulosos que mantêm o futebol – clubes, dirigentes e atletas - além de conservar o discurso da pátria presente no grito de “chi, chi, chi, le, le, le, chile”. Uma espécie de patriotismo sempre vivo e uma alta autoestima, mesmo que ao final o campeão seja a Alemanha, a França ou a Inglaterra, pois no outro dia a história é esquecida e se renova na forma de utopia.

Até este momento, Eduardo vai bem, mas fica preso ao campo da contemplação. Assim transforma-se apenas em um bom observador para o qual nada passa despercebido, floreando seu discurso com aspectos da modernidade e pós-modernidade como a USP gosta, e dividindo suas publicações com autores similares, assim como fazendo conferências no campo da educação física e esporte. Finalmente, o chileno esquece a tese de Ludwig Feuerbach, que retratava a necessidade de mudar a história e não somente interpretá-la.

Neste aspecto, o autor chileno esquece ou não quer tocar na ferida, de que o esporte e, em especial o futebol, na América Latina, configura-se como um grande campo de exportação de “pés de obra” principalmente para a Europa. A exportação de mercadorias primárias, como pau Brasil, café, carne, minérios encontra no futebol seu similar, ou seja, vendemos a preço de banana brilhantes jogadores que, ao chegarem ao mercado principal, são revendidos por preços extraordinários para outros mercados e que pelo seu brilhantismo, magia e capacidade, alimentam a mídia na venda de outras mercadorias, inflando assim o que Ludovico Silva retratava no conceito de mais-valia ideológica.

Ao mesmo tempo em que nossos dirigentes de clubes e federações da América Latina curvam-se aos dirigentes externos em troca de favores políticos, de festas em palácios e obviamente no lucro de suas famílias e status de dirigentes, embora ao fazerem isso deixem o esporte e o futebol latino-americano eternamente na senzala, na dependência, na miséria, apenas a admirar a Liga dos Campeões da Europa.  

A Copa do Mundo é uma festa para o planeta. Mesmo países com pouca tradição no futebol tornam-se “cúmplices” desta grande paixão. O futebol é diferente do atletismo, voleibol, basquete, esportes de inverno e outros, e o é pelo seu apelo popular, pela capacidade de associar-se com a mídia, produzir e vender mercadorias o tempo todo, fazer negócios fabulosos, criar laços afetuosos entre países e gerações, pois afinal de contas todos já jogamos futebol e sofremos por ele. Com o passar dos anos o futebol ganha em projeção internacional, assim como em lucro, empreendimentos e negócios. Mesmo países empobrecidos e dependentes como os de toda a América do Sul adoram o futebol, e também misturam patriotismo com mercado, esquecendo que o “nacionalismo” é outra coisa.

No caso do futebol, talvez, sinais de nacionalismo seriam os de proteger seus craques e mantê-los nos seus países, para alegria do povo e não das empresas que os usam como escravos.

Nilso Ouriques é professor de Educação Física. Retirado do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC.

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