Correio da Cidadania

Mais um ataque aos professores

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O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.


Leonardo Boff

Parte importante da crise que vivemos em nossa sociedade está relacionada à falta de sensibilidade em relação ao sofrimento das outras pessoas. É muito forte uma cultura individualista que nos leva à preocupação somente com nossos próprios interesses. O individualismo tem nos feito perder algo fundamental, sem o que não podemos construir qualquer vida coletiva minimamente saudável. Trata-se do cuidado em relação ao outro.

Mas não me refiro aqui a favores ou a ações de caridade. Porque apesar de ações bem intencionadas poderem ajudar pessoas, só o que é considerado e organizado como um direito pode dar a garantia de respeito e dignidade, tanto individuais quanto coletivas. Por isso, favores e caridades não podem substituir ou cumprir o papel dos direitos. O que é um direito existe independentemente de haver gente com vontade, com interesse e com condições de fazer caridade ou favores.
    
Dentre os direitos existentes há aqueles criados para acolher grupos de pessoas que se encontram em situação fragilizada. Há quem diga (e eu concordo) que uma boa forma de avaliar a cultura de uma sociedade, é olhar para como ela trata seus doentes e seus idosos. Ou em outras palavras: quais são os pactos e estruturas sociais existentes para que as pessoas que envelheceram ou adoeceram possam viver com dignidade?

Não custa ressaltar que o adoecimento e o envelhecimento são processos que independem de nossas decisões e de nossos esforços. Não faz sentido dizer que alguém mereceu envelhecer. E também não é razoável admitir que as pessoas quiseram ou mereceram ficar doentes. Em relação ao envelhecimento, cabe lembrar que, em função do desdobramento dos processos vitais de nossos corpos, com o passar dos anos vamos adquirindo maiores chances de adoecermos, ainda mais quando não se vive sob condições saudáveis e sem os cuidados de saúde necessários.
    
Essas questões, aparentemente triviais, estão no cerne dos processos de rearranjo que estão sendo propostos nos últimos anos e estão nas agendas de muitos de nossos governantes para o próximo período. Quando ouvirmos falar de reformas ou de austeridade seria interessante que nos perguntássemos: como ficarão os direitos dos trabalhadores e da população?
    
Foi criado ao longo da história brasileira, com muita luta, um pacto social para acolher as pessoas doentes e idosas e para garantir dignidade a todos, inclusive para os que foram (e são) penalizados pela falta de oportunidades e de condições razoáveis de vida em uma sociedade profundamente desigual. Esse pacto tem um nome e uma estrutura, inclusive formalizadas constitucionalmente: Seguridade Social.  

A Seguridade Social foi uma conquista importante do povo brasileiro e sob ela se encontram três dimensões fundamentais da vida social: a Saúde, a Previdência e a Assistência Social. Podemos conferir no artigo 194 e nos seguintes da Constituição Federal do Brasil as referências de organização da Seguridade Social:

“Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

O momento histórico que vivemos nos impõe o desafio de resistir às tentativas de acabar com a Seguridade Social. Não são poucas as ameaças e ataques: à saúde dos trabalhadores e da população; à aposentadoria pública; à justiça social, através de medidas que agravam a desigualdade, aumentando o contingente de pessoas excluídas de condições básicas de vida.
    
Em Vinhedo, no interior de São Paulo, foi tomada uma medida pelo poder público municipal que reforça a cultura de descaso e ataque à saúde dos trabalhadores. A partir da atribuição de aulas ocorrida no final de 2018, ficará ainda mais frágil a situação de professores que se encontram com problemas de saúde que os forçaram à readaptação.

Os processos de readaptação docente são (ou deveriam ser) formas de manter professores vinculados a atividades educacionais compatíveis com suas condições de saúde. Os professores readaptados não deixam de ser professores, portanto.
    
Mas no sentido contrário a uma cultura de respeito e cuidado à saúde do trabalhador, o governo municipal de Vinhedo através da Secretaria de Educação decidiu que, a partir de 2019, “os professores readaptados ou em processo de readaptação farão jus somente à jornada básica semanal de trabalho”.
        
Não é a primeira vez em Vinhedo que é tomada uma medida com o objetivo de penalizar servidores públicos doentes e desincentivar que trabalhadores do serviço público municipal tratem seus problemas de saúde. Durante pouco menos de um ano, entre 2017 e 2018, vigorou na cidade o chamado “Decreto da Maldade que punia com a retirada do auxílio alimentação qualquer servidor que se afastasse mais de cinco dias para tratamento de saúde ou que apresentasse mais que dois atestados médicos em um mesmo mês.

Uma das consequências dessa medida decretada pelo prefeito Jaime Cruz (PSDB) em 2017 foi a retirada de auxílio-alimentação de professoras que faziam tratamento contra câncer, dentre outros problemas que podem ser melhor entendidos aqui (link para reportagem sobre o Decreto da Maldade).
    
Agora a medida contra professores readaptados reedita a mesma lógica de punição de trabalhadores que adoecem e desincentivo aos cuidados com a saúde. As perdas salariais para professores readaptados são significativas, podendo chegar em alguns casos a mais de 1/3 do salário.

Professores que vinham organizando suas vidas nos últimos anos contando com um determinado rendimento mensal, inclusive para arcarem com os custos que seus problemas de saúde acarretam, terão em função da medida que reorganizar suas vidas sob condições ainda mais difíceis.
    
A medida discrimina e prejudica trabalhadores. Por isso, a entendemos como duplamente problemática: além de atentar contra referências básicas de seguridade social (conforme expusemos acima), fere o artigo 5o da Constituição Federal segundo o qual:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)”
    
Desconsiderar a condição de igualdade de professores readaptados em relação aos demais professores reforça um estigma de que seriam “professores de segunda ordem”. Isso é muito triste e revoltante. É difícil pensarmos que uma medida como essa tenha sido concebida ou ratificada por uma Secretaria de Educação.
    
O que levou à concepção tacanha da norma do governo de Vinhedo? Por que passar a penalizar professores readaptados nesse momento? Foram levadas em conta outras referências para definição de jornada de readaptados, como a que vigora atualmente no estado de São Paulo? Segundo a medida do Estado “tratando-se de docente, o servidor poderá, por ocasião da publicação de sua Súmula de Readaptação, optar:

I – pela carga horária que cumpria no momento da readaptação; ou

II - pela média aritmética simples das cargas horárias referentes aos últimos 60 (sessenta) meses imediatamente anteriores ao mês da readaptação”
(Resolução SE 9, de 31/01/2018).

E não obstante todos os problemas já apontados, é importante destacar também que tal medida, além de penalizar professores readaptados, aumenta a insegurança de todos os professores da rede municipal de ensino. O que impedirá que o processo de desrespeito e desvalorização através da redução compulsória da jornada de trabalho, imposto primeiro a colegas em situação mais fragilizada, não se estenda em um segundo momento para todos os professores de ensino fundamental II (PEB-II) da rede?
    
Vivemos um momento de grande indignação e tensão social. É preciso reforçar os laços de solidariedade entre todas e todos os trabalhadores para reverter as medidas que visam retirar nossos direitos. Lutarmos para que o professor e para que qualquer servidor público seja respeitado e valorizado é condição necessária para garantirmos educação, seguridade e segurança para toda a sociedade.

Potiguara Lima é professor de educação básica e cipeiro eleito pelos trabalhadores, gestão 2018-2019.

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