Correio da Cidadania

México: o caminho de Marichuy e a democracia impossível (1)

0
0
0
s2sdefault


Em 14 de outubro de 2017 começou em Chiapas a caravana de Maria de Jesús Patricio Martinez, conhecida como Marichuy, nomeada porta-voz do Conselho Indígena de Governo (CIG), integrado à plenária que o Congresso Nacional Indígena (CNI) realiza todo final de maio nas instalações do CIDECI, instituto da Universidad de la Tierra de San Cristobal de las Casas.

O Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN) havia deixado claro que não iria intervir diretamente – como na ocasião da Outra Campanha entre 2006 e 2007 – nos trabalhos preparatórios para a possível candidatura indígena às eleições presidenciais de 2018. Mas na largada da campanha nacional em busca de inscrever a voz dos povos originários na disputa pela presidência da República, os zapatistas rapidamente aderiram à causa.

Foi feita a Caravana Pela Vida Humana e o percurso recorrido pelos cinco caracóis foi levando uma maré inusitada de gente que não parou de crescer a partir do seu início, em Guadalupe-Tepeyac, território do Caracol da Realidade, zona de selva fronteiriça, onde ocorreu em agosto de 1994 a Convenção Nacional Democrática que representou um massivo encontro do EZLN e as comunidades indígenas rebeldes com uma sociedade mexicana muito ampla e plural, surpreendida e entusiasta.

Bases de apoio zapatistas, membros das organizações do CNI, aderentes à Sexta Internacional, redes de apoio do CIG e meios de comunicação independentes, recebem e saludam Marichuy e as conselheiras e conselheiros que a acompanham. E a medida que vai avançando a caravana é evidente que também vão somando-se habitantes de muitas comunidades, famílias e pessoas, não necessariamente zapatistas.

No Caracol de Morelia, da zona tzotz-choj, logo no caracol de La Garrucha na selva tzeltal e no caracol de Roberto Barrios já no norte de Chiapas, incluindo Palenque – governado pelo mau governo – as multidões se aglomeram em torno da caravana, em especial nos caminhos que levam a pequenas comunidades. O mais significativo, sem dúvida, é que predominam as mulheres – que chegam carregadas de flores e com roupas típicas. Festas multitudinárias animadas pela música se transformam em encontros de reflexão, onde as vozes são sempre recebidas por comandantes do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena (CCRI) e mulheres das Juntas de Bom Governo.

As vozes que se sucedem nas diferentes tribunas montadas em coletivo vão compondo um concerto estrondoso sobre agravos e opressões de caráter histórico que a luta e a organização das mulheres e homens zapatistas mandaram à memória, ainda que não tenham esquecido. A exploração, a violência, o racismo e o desprezo não apenas são denunciados como também explicados com experiências vividas que caracterizam um sistema capitalista excludente.

O saque das terras e do território, os espólios, a destruição da natureza no campo e na cidade, as reformas estruturais impostas pelo poder, a criminalidade e as desaparições forçadas, os migrantes que passam do sonho ao sequestro, o tráfico de pessoas, o roubo, o racismo, o machismo, tudo isso é levado em conta quando as zapatistas realizam diante da caravana pela vida digna encabeçada pela porta-voz um verdadeiro diagnóstico da situação, da tormenta que não se cansam de anunciar com todos seus perigos e ameaças. Mas igualmente insistem que diante da modernização da exploração capitalista faz falta inventar, renovar também a defesa pela vida e de comunidades de todos os de baixo que, de novo, com a Outra Campanha, são convocados à luta. Inclusive, em La Garrucha, onde pensam no avanço da formulação de um novo plano nacional de lutas. E são muitos os rascunhos que vão sendo esboçados.

Com um discurso claro e sua presença sempre tranquila e fraternal, Marichuy não apenas se olha no espelho em que constroem as zapatistas, como também contribui a bordar a trama da resistência em seus fios mais profundos e multicoloridos. Explicando os motivos da busca de numerosos conselheiros provenientes de diferentes lugares do país, de pequenos povoados, bairros, tribos originárias, dos lugares mais diversos, mas que compreendam no final das contas que o inimigo não é outro senão o sistema capitalista mundial e seus gestores.

No Caracol de Oventik, em Altos de Chiapas, foi concluído em 19 de outubro passado o início destas caravanas de campanha de coleta de assinaturas requeridas para que Marichuy apareça no bilhete eleitoral como efetivamente candidata à presidência independente. Com a intensa e multitudinária mobilização zapatista foi construído nos cinco caracóis uma base fundamental para a campanha da porta-voz, que será um dos seus traços decisivos: a presença das mulheres, que ainda anuncia ao mesmo tempo o extraordinário Primeiro Encontro Internacional, Político, Artístico, Esportivo e Cultural das Mulheres que Lutam, que em três de março reuniu no Caracol de Morelia cerca de 10 mil participantes provenientes de todo o mundo, em um evento organizado exclusivamente por mulheres zapatistas.

Todavia regressou Marichuy a Chiapas, em 7 e 8 de novembro, na costa com os atingidos por terremotos e em San Cristóbal de Las Casas e logo em Ejido de Tila, com dois anos de autonomia, lugares onde se insiste na necessária auto-organização dos povos e em que se entrou no tempo das mulheres.



A mobilização nacional encabeçada pelo CIG e uma mulher indígena, nahua, assume por si só um caráter naturalmente anticapitalista, e em particular se revela como um desafio também para o machismo e o patriarcado, assim como para a sociedade racista, cujas roupagens de simulação se desgarram sem cessar. A caravana já não para, sempre volta incansável, ainda que em uma corrida contra o tempo, por mais que pareçam prevalecer os ritmos que o Instituto Nacional Eleitoral (INE) impõe para as diferentes fases do processo eleitoral, com o 19 de fevereiro de 2018 como a data final de conclusão da busca de assinaturas para as candidaturas independentes à presidência.

Em realidade, os povos originários organizados no CNI reafirmam seus próprios tempos e seguem seus ritmos, decididos em coletivo. Em janeiro de 2017 concluíram seu Quinto Congresso Nacional com a decisão de criar a CIG e nomear uma mulher indígena como porta-voz e candidata presidencial independente, sobrepesando as consultas realizadas nos povoados, comunidades, tribos e nações agrupadas em sua organização, as que chamaram desde que lançada a iniciativa em outubro do ano passado.

Em fins de maio de 2018 ocorreu a Assembleia Constitutiva do Conselho Indígena de Governo que iniciou com a presença de 496 delegados, 296 convidados, 56 vereadores de 54 povoados e comunidades de 32 estados (com a presença de 58 línguas originárias) e convidados de três países: Apache de Dakota, povos maias mam e q’anjob’al da Guatemala e do Chile. Nomeia-se Maria de Jesús Patricio Martinez sob a proposta da CCRI e se planeja realizar uma campanha pela vida, pela organização dos povos e pela construção do poder dos de baixo.

Em sua declaração final, o CNI e o EZLN [*1] insistem em que “nenhuma reivindicação de nossos povos, nenhuma determinação e exercício de autonomia, nenhuma esperança feita realidade respondeu aos tempos e formas eleitorais que os poderosos chamam de democracia” e reafirmam sua decisão de passar à ofensiva “em um grave momento de violência, medo e raiva, por conta da agudização da guerra capitalista contra todos e todas no território nacional”. Criam, assim, um Congresso Indígena de governo para o México, de caráter coletivo, que “aposte na vida dos de baixo com uma perspectiva anticapitalista, que seja laico e que responda aos sete princípios do ‘mandar obedecendo’ como nossa garantia moral”. E pontuam: “não buscamos administrar o poder, queremos desmontá-lo por baixo, e somos capazes disso com nossa rebeldia e resistência”.

Em fim, um chamado para a sociedade estar alerta, com o convite à organização dos oprimidos, explorados, excluídos, aos tantos diferentes, a todos aqueles que de baixo resistem, forjam olhares críticos sobre as condições e realidades adversas e procuram lutar pela vida e em defesa do que o capitalismo ameaça de morte. O CNI e o EZLN convidaram todas e todos a unir esforços na busca por alcançar a candidatura indígena à presidência e enfrentar o poder e suas oligarquias para que desta forma se possa “fazê-los perder a festa que fazem baseada na nossa morte e construir uma nova festa baseada na dignidade, na organização e na construção de um novo país e um novo mundo”.

Em agosto passado, quando anunciaram a criação da associação civil, também  chegara a hora do florescimento dos povos indígenas integrado por personalidades, intelectuais, artistas e acadêmicos; homens e mulheres; trabalhadores e trabalhadoras, o que era requisito legal indispensável para a promoção do registro da porta-voz do CIG-CNI [*2].

Arma-se rapidamente um comitê de campanha sob a condução de Marichuy que começa a seguir os tortuosos procedimentos legais e a acompanhar a coleta de assinaturas do apoio cidadão, que sem meias voltas articula boa parte da atividade de mobilização, igualmente sustentada pelas redes da Sexta Internacional – composta por numerosos coletivos de todo tipo e até mesmo organizações como o Sindicato Mexicano de Eletricistas. Vão se unindo na medida que a caravana e a campanha avançam pelo país.

Em poucos dias, uma boa quantidade de voluntárias e voluntários se registram como auxiliares de Marichuy, ainda que demore em concretizar sua desigual atividade pela carência de telefones adequados, por problemas de compreensão do aplicativo do INE e por suas efetivas dificuldades e falhas de funcionamento que supostamente vão se resolvendo. Não faltam debates e diferenças sobre o sentido da iniciativa entre os partidários do CNI e o EZLN, o que também trava ou atrasa em certa medida e por um tempo o recolhimento de assinaturas.

Em alguns dos eventos da caravana, ninguém se lembra de solicitar apoios. Praticamente até começo de janeiro o discurso da porta-voz começava a insistir mais na importância de conseguir as assinaturas para registrar sua candidatura independente. Não será até as últimas semanas que as ruas e praças, que toda sorte de lugares públicos de boa parte das cidades do país consigam manter mesas de assinaturas permanentes que permitam um adesão significativa. Já quase no final do período legal estabelecido, consegue-se uma organização sistemática com voluntários que sustentam de forma regular a mobilização, tratando de convencer uma cidadania cética mas cada vez mais disposta.

O CIG não deixa de integrar-se, de somar com novos conselheiros de comunidades e povoados que vão concordando em reforçar a mobilização. Corre, então, um processo de encontro, consulta, compartilhamento, organização e resistência que – quaisquer sejam seus resultados – sem dúvida reafirma, fortalece e projeta em nível global o Congresso Nacional Indígena, considerado com razão pelo EZLN como  “a iniciativa mais sólida desde que saímos à luz pública [*3]”.


As voltas que dá a Caravana Pela Vida encabeçada por Marichuy não são como as da Marcha da Cor da Terra ou a Outra Campanha, planejadas exclusivamente pela Comissão Sexta do EZLN como uma larga travessia do território nacional. São trajetos que vão se armando segundo os convites de pequenas cidades, comunidades e coletivos, pelo que resultam em extremos segmentados e cansativos. De Chiapas à Cidade do México; de volta a Chiapas; para Querétaro, San Luis de Potosí, Oaxaca, Veracruz, Puebla, Morelos, Hidalgo; de novo na Cidade do México, em Colima, Jalisco, Aguascalientes, Quitana Roo, Yucatán, Campeche, Sonora, Sinaloa, Michoacán, e assim por diante, de maneira que em uma sorte de improvisação cotidiana Marichuy acaba percorrendo quase todo o país.

A bússola na jornada, no entanto, segue um sentido ditado acima de tudo pelo interesse do encontro com as comunidades e povos nativos. Os destinos que favorecem a recuperação maciça de assinaturas que apoiam a candidatura de Marichuy não são propostos. Em vez disso é um passeio, sempre reconectando rebeldias, estimulando a organização, atando nós nas redes da resistência, não apenas olhando no espelho de dores e queixas.

Notas
 
[1] “Llegó la hora (chegou a hora)”
 http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2017/05/28/llego-la-hora-cni-ezln

[2] CNI-EZLN, “Llegó la hora del florecimiento de los pueblos: un paso más” http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2017/08/07/llego-la-hora-del-florecimiento-de-los-pueblos-un-paso-mas/

[3] “Una historia para tratar de entender”, cit.

Arturo Anguiano é pesquisador e professor na Universidad Autónoma Metropolitana, no México, além de autor de obras que tratam questões sociais e políticas.
Artigo publicado no site Viento Sur, e pela correspondência de imprensa da revista L’Encontré na América Latina.
Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.

0
0
0
s2sdefault