Correio da Cidadania

Para ter fé, basta aceitar as próprias dúvidas

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Ao André Itaparica, mestre da fé e amigo de fé, em seu aniversário.

Há, verdadeiramente, duas coisas diferentes: saber e crer que se sabe. A ciência consiste em saber; em crer que se sabe está a ignorância.
Hipócrates?

É possível duvidar de tudo e qualquer coisa? De qualquer maneira? Ora, não. Duvidar de tudo é o mesmo que não duvidar de nada, quer dizer, se dúvidas imaginárias são possíveis, nem sempre são legítimas. Vamos ficar com um exemplo famoso na filosofia contemporânea. Se alguém diz, “Eu tenho dúvidas de que esta mão é minha”, então sobre quais outras certezas se apoia para duvidar disso? Por acaso a pessoa duvida de seus olhos? Duvida se enxerga apenas uma mão e não duas? O exemplo sugere que uma dúvida só pode surgir no contexto de outras certezas, assunções previamente acreditadas como fora de dúvida. Se desejamos investigar certa questão para descobrir a verdade acerca dela, então é porque aceitamos sem duvidar certos critérios de investigação, questionamento, hipóteses etc. Ora, se pomos algo à prova é porque já pressupomos outros algos como provados, isto é, se digo “duvido de x”, é porque já disse para mim mesmo “sei y”, o que é como dizer “estou disposto a crer em y para poder duvidar de x”.

Além disso, se não houver uma dúvida real, nascida da experiência viva do mundo, por que eu deveria duvidar de x, y ou z? É inútil tentar criar dúvidas imaginárias sobre o que de fato não questionamos — não estamos dispostos a duvidar de tudo. Se é fácil dizer que conseguimos fingir as dúvidas, é muito mais complicado dizer que conseguimos fingir nossas certezas.

Essas são perguntas suscitadas por Dúvida (EUA, 2008), filme roteirizado e dirigido por John Patrick Shanley, baseado em peça de sua própria autoria. A história é simples. Em 1964 — um ano depois do assassinato do presidente John F. Kennedy, nos EUA — o padre Flynn (Philip Seymour Hoffman) tenta modernizar os costumes pedagógicos da escola da paróquia, até então dirigida pela Irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep) sob uma rígida disciplina de vigília constante e de medo.

Neste ano, a escola acaba de receber seu primeiro estudante negro, Donald Miller (Joseph Foster). Quando a inocente Irmã James (Amy Adams) partilha com a Irmã Aloysius uma suspeita de que o Padre Flynn dá muita atenção pessoal ao garoto negro, a madre diretora da escola decide engajar-se pessoalmente em provar que o padre abusou do garoto, com o objetivo de expulsá-lo da paróquia. Ela chega a tentar envolver a mãe de Donald, a senhora Miller (Viola Davis), nessa sua inquisição pessoal e confronta o padre levantando seu passado, insubmisso à hierarquia da Igreja.

À primeira vista, parece que veremos mais uma denúncia da pedofilia clerical. Mas não é tão simples. O filme não quer fazer críticas à instituição da Igreja. O tema principal parece ser mesmo a dúvida e, mais, o filme lança um repto a todos os seus espectadores quanto à licitude das nossas certezas e nossos critérios de saber.

Desde o começo, somos instados a questionar o que tomamos por líquido e certo. O primeiro sermão do Pe. Flynn inverte o senso-comum. Não somos, diz ele, uma comunidade unida apenas pelas crenças e certezas partilhadas, unidos apenas pela mesma fé, mas também nossas dúvidas constituem elos comunitários, que podem ser tão fortes quanto o que conscientemente julgamos saber. Com a diferença de que normalmente não pensamos nisso. E, por fim, o Pe. Flynn nos insta: duvidem.


[https://youtu.be/xOaBjpXXnaE]

Estranha mensagem vinda de um Padre! Ele não deveria nos instar a crer? Trata-se, no filme, justamente de questionar crença e dúvida num contexto histórico de instabilidade e transformação do certo em duvidoso. Dentre muitos outros fatores, a luta pelos direitos civis nos EUA e o Concílio Vaticano II de 1961 balançaram crenças e valores tradicionais, instaurando dúvidas de toda natureza na ordem mundana da segunda metade do século 20.

Com esse pano de fundo, a atitude das personagens quanto às próprias dúvidas e certezas ganha destaque. A jovem Ir. James, toda bondade e compaixão, é a personificação da genuína fé, uma atitude sincera e aberta diante da vida, sem deixar de lado seus princípios. Ela não duvida por duvidar, ao contrário, ela tem convicção de sua fé. Já a Irmã Aloysius é a personificação de um autoritarismo dogmático e intimidador. Ela instila a desconfiança nas pessoas — “estejam alertas, não importa de que” — e autoriza-se a duvidar de tudo e todos, mesmo sem evidências tangíveis, pois com isso mantém uma férrea disciplina na escola e no convento. Sua mera presença é amedrontadora.

Em todos os momentos em que tem de se declarar, a ir. Aloysius reafirma sua postura e sempre jura pela sua própria experiência e seu alegado conhecimento da alma humana. Três de suas falas revelam sua psicologia. Duas delas indicam sua teimosia em confiar apenas em critérios epistêmicos subjetivos e individuais: “Eu tenho minha certeza.” e “Eu conheço as pessoas.”. Mas, justamente por isso, ela também afirma: “Eu tenho dúvidas” (em quais momentos não direi, para não estragar o filme).

Firme diante das acusações, Pe. Flynn não deixa de ser ambíguo e parece mesmo andar no fio da navalha entre a culpa óbvia e a inocência possível, contrastando com a tenacidade da Irmã Aloysius. Ele gosta de guardar florzinhas coloridas entre as páginas da Bíblia, prefere suas unhas um pouco mais longas e perfeitamente limpas, gosta de bastante açúcar. Seriam essas preferências indícios de homossexualidade? Não há como saber. Pela conversa entre Ir. Aloysius e a mãe do garoto sabemos que Donald demonstrou tendências homossexuais e que foi espancado pelo pai por isso.

Talvez esse seja o elo entre o garoto e o padre. Mas podemos afirmar existir ali uma ligação sexual e não de reconhecimento mútuo e compaixão? O menino está sozinho, é o único aluno negro em uma escola toda branca. É ilícito querer ampará-lo? O filme inteligentemente não dá resposta definitiva e deixa ao espectador a tarefa de fazer a própria cabeça — como a Ir. Aloysius.

Nem sequer as semiconfissões de certas personagens indicam algo mais concreto. Tudo o que o espectador vem a saber é também tudo e apenas o que a Ir. Aloysius vem a saber, isto é, o relatado pela Ir. James. Se não há uma confirmação ótica do que pode ter havido entre o padre e o garoto, também nos sentimos tentados a ver pistas nos olhares, nos gestos, na linguagem corporal... Mas inconclusivamente. Nesse sentido, o filme é surpreendentemente sutil e sincero com a plateia, e só uma única mentira é contada, para ser revelada no final e que obviamente não revelarei aqui.

Assim, é aos poucos que Dúvida vai amarrando os nós da linguagem, de maneira muito sóbria, criando um distanciamento que faz o espectador ver como se estivesse no lugar das diferentes perspectivas. Contudo, ninguém é levado a se identificar com alguma personagem em particular. Ao contrário, somos convidados a questioná-las todas e, com isso, a questionar a nós mesmos: até onde podemos confiar nas nossas impressões? Qual é o limite da certeza e da dúvida? Podemos acreditar fielmente que sabemos o que acontece em nossas vidas? Se realmente pudéssemos impor a justiça que sonhamos ao mundo, seríamos capazes de dizer sem sombra de dúvida: “temos certeza do que estamos fazendo”? Ao levantar e não responder a essas perguntas, Dúvida apresenta uma grande meditação contemporânea sobre a legitimidade de nossas escolhas e nossos critérios epistêmicos, ampliando a reflexão sobre as consequências das nossas ações no mundo.

Aqui, cabe recuperar a reflexão sobre a fé feita na Idade Média pelo maior doutor da Igreja Católica de Roma: S. Tomás de Aquino. Ora, o sermão inicial parece nos dizer que não apenas o medo não deve ser temido — como relembra a jovem professora Ir. James — mas sobretudo não devemos temer as dúvidas quanto às nossas próprias certezas. É justamente isso o que S. Tomás pregava no século XII: a fé é crer mesmo sem evidências concretas, dando por vontade própria assentimento a outrem. Por isso, a fé depende, em primeiro lugar, de uma determinação pessoal da vontade, e, segundo, é um conhecimento inacabado, cuja perfeição não depende dela mesma. Ao encaminhar a questão dessa maneira, S. Tomás lega à filosofia ocidental uma discussão que liga intrinsecamente ética e conhecimento.

Para o Doctor Universalis, a imperfeição é “da razão da fé”, quer dizer, faz parte de sua lógica ser imperfeita. Se a fé, por um lado, é um conhecimento mais perfeito do que a mera opinião, pois dá adesão firme ao que se crê mesmo que seja desconhecido, ela é por isso mesmo imperfeita relativamente à ciência, pois essa adesão do crente ao objeto de sua fé não é fruto de conhecimento intelectual, mas apenas do querer. Claro, a imperfeição está no sujeito, e não no objeto: “o crente não vê o que crê”. Por isso, para ter fé, é preciso ter disposição para aceitar uma verdade que, embora possa ser racionalmente estabelecida em algum momento posterior, não é conhecida de antemão.

Se o sujeito não quer abandonar seu próprio crivo, reconhecendo que não pode tudo saber, tudo ver e tudo demonstrar, não há genuína fé, apenas dogmatismo, individualismo, relativismo. E não apenas em questões de fé, mas também em questões de raciocínio, há pressupostos assumidos e não provados: “Também entre muitas verdades demonstradas, introduz-se, às vezes, algo falso que não se demonstra, mas que se aceita por razão provável ou sofística, tido como demonstração. Por isto, foi conveniente apresentar aos homens por via de fé uma certeza fixa e uma verdade pura das coisas divinas” [Suma contra gentios I, 4]. Não se trata de abandonar a razão, apenas de reconhecer seus fundamentos irracionais, seus limites e seu justo âmbito de validade.

Além disso, sem a caritas, sem o amor universal que define a essência do próprio Deus, nenhuma fé e nenhuma razão podem atingir a perfeição. Se a vontade de amar faltar, não há como ter vontade de crer, pois o reto movimento da vontade vem do amor (como também já dizia S. Agostinho). A fé sem o amor é como a fortaleza ou a temperança sem a prudência. E assim também a esperança, imperfeita sem o amor, porque baseada não nos méritos já possuídos, mas nos méritos que a pessoa intenciona ganhar no futuro. Ora, essa não é esperança de bem-aventurança vinda de Deus, mas tão-só expectativa de ter os próprios desejos particulares contemplados.

Expectativa egoica, diríamos hoje, daquelas que se frustradas causam ressentimento. Tomás cita Hebreus 11, 1: “a fé é a substância das coisas que se devem esperar, o argumento das coisas que não se veem”. Não cita nesse contexto, mas nem precisaria, a famosa passagem de Coríntios 1, 13: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor”.

Ora, essa é exatamente a dúvida que Dúvida nos apresenta: de onde tiro os critérios que validam minhas conclusões? Pois, se há evidências e certezas verdadeiras, também há as falsas. Como posso distingui-las se não concedo duvidar de mim mesmo? O que isso tudo tem a ver com fé, esperança e amor?

É a Ir. James quem diretamente acusa a Ir. Aloysius de desvincular as virtudes teologais, como se dissesse: “Você quer crer no mistério, não está disposta a ter fé no que a esperança e o amor ditam.” Ora, a Ir. James na verdade acusa a Ir. Aloysius de assumir uma atitude completamente anticatólica. Crédula no que já se conforma ao que ela tem certeza de saber, descrente da possibilidade da dúvida e do mistério encarnado no mundo, Ir. Aloysius só crê em si mesma. Não por acaso, depois dessa contundente conversa vem o não menos contundente segundo sermão do Pe. Flynn no filme, numa sequência cuja notoriedade recente na Internet não é fortuita: o sermão sobre a fofoca, isto é, o espalhar aos ventos a descrença quanto aos outros, recusar aos outros o benefício da dúvida por falta de amor ao próximo e apego às próprias certezas individuais.

Mas seria o critério de evidência individual suficiente? Se não há partilha pública de evidências, como posso ter certeza de que não estou errado? Se erro um cálculo, e meu único critério para corrigir o erro for exclusivamente individual e privado, como saber se errei ou não? O que S. Tomás diria é que, nesse caso, eu não teria como saber, pois para isso precisaria recorrer a outras pessoas. O apego da Ir. Aloysius às próprias certezas jamais permitiria que ela assim procedesse.

Ora, não surpreende, assim, que S. Tomás identifique a raiz de todos os pecados na vontade, e que o pior dos pecados morais por ele destacado seja exatamente a infidelitatis, ou seja, literalmente, a falta de fé, a descrença quanto ao que não é certeza individual. Nos termos de S. Tomás, descrer é recusar o benefício da dúvida, pois se a fé é crer sem ver, quem descrê não aceita dar assentimento a outrem sem ver. Por isso, ele afirma: a descrença nasce da soberba, que induz a pessoa a não submeter seu intelecto às regras da fé e à sadia compreensão dos padres da Igreja. Da vangloria nascem as presunções de novidades. O ponto central, portanto, está na determinação da própria vontade, aquilo que, séculos mais tarde, o Iluminismo, pela voz de Kant, caracterizou como autonomia da razão prática, ou seja, da vontade. Aí encontramos um dos pecados da Ir. Aloysius: ela pensa ser autônoma, mas é apenas crédula e vaidosa.

A verdade da fé, para S. Tomás, só pode ser uma verdade pública, inspirada pelo amor, e, por isso, coletivamente referendada, baseada não em evidências internas, mas na revelação, referendada universalmente por evidências alheias a nós — a verdade é a mesma em toda parte, não é racional supor que só eu a conheça. E aqui vemos outro pecado da Ir. Aloysius: indisposta a aceitar a dúvida quanto a si mesma, ela se coloca num lugar que não lhe pertence de direito, o de juiza suprema e incontestável. Seu autoritarismo é atroz: ela recusa curvar sua razão individual e por todos os meios até o fim busca firmar-se como autoridade máxima quanto aos critérios de crença e dúvida que todos devem assumir.

Em vez de aceitar a impossibilidade de ver e saber tudo, ela teima em não aceitar o mistério e quer impor sua certeza, seus critérios, suas maneiras a todos os outros. Ela jamais se questiona como chegou a ter as certezas que tem, jamais se pergunta sobre os pressupostos de suas conclusões. Ou seja, ela evita toda autorreflexão, impossibilitando, com isso, sua própria autonomia. Ao fim e ao cabo, ela vê-se presa da armadilha que ela mesma armou contra o Pe. Flynn.

Segundo S. Tomás, a verdade da fé é bem diferente disso. A genuína fé revela uma verdade possível de ser reconhecida por todos que se dispuserem a aceitá-la com amor. Se Deus é amor (1 Jo 4, 8), o Quarto Evangelho também nos diz que Deus é o logos materializado no mundo (Jo 1, 1). Logos, palavra grega que significa linguagem, pensamento, e é traduzida em latim ora como ratio, razão, ora como verbum, palavra. O amor é indiscernível de sua linguagem, de sua intenção, de sua realização. O diálogo entre o Pe. Flynn e a Ir. James no jardim da escola depende da fé nessa verdade, depende dessa disposição para crer no que ultrapassa nossa humana cognição.

DICA DE LEITURA: Além do já indicado, apoiei-me nas seguintes questões da Suma Teológica de S. Tomás: da primeira seção da segunda parte [Ia IIae], a quaestio LXV:  De connexione virtutum: Sobre a conexão das virtudes, articulus IV; a quaestio LXVII: De durationem virtutum post hanc vitam: Sobre a duração das virtudes depois desta vida, articulus III; da segunda seção da segunda parte [IIa IIae], a quaestio X: De infidelitate in communi: Da descrença em geral.

Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia, amante do cinema, e faz votos que em 2019 aceitemos melhor nossas limitações, questionemos mais nossas certezas e vivamos bem nossas próprias dúvidas.

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