Correio da Cidadania

O Brasil, o aborto, as mulheres

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Qual é o primeiro direito fundamental de uma pessoa? O direito à vida? À liberdade? À propriedade? Segundo John Locke, nenhum deles. O primeiro direito humano fundamental é o direito de cada indivíduo sobre sua própria pessoa: seu corpo, sua mente, seus nervos e músculos. Muito já se falou sobre os direitos humanos, mas muito mais ainda pode ser falado. Após mais de três séculos de experiência histórica, hoje em dia parece que a acusação de que os direitos humanos são direitos burgueses, conservadores e anti-sociais precisa ser matizada. Hoje em dia, é fundamental lembrar que no contexto de desigualdade social e privatização das relações no mundo globalizado, a defesa dos direitos humanos como direitos públicos é também uma defesa da justiça social.

 

Esse é um bom mote para falar do documentário O Aborto dos Outros, que estréia comercialmente no próximo dia 05/09. Ganhador de merecida menção honrosa do júri do festival É Tudo Verdade de 2008, o filme recoloca na pauta do dia a discussão sobre o aborto no Brasil; mas não apenas recomeça uma velha e espinhosa discussão, antes, ela é proposta em outros termos, isto é, em termos que nem sempre aparecem de maneira clara ao grande público.

 

Em primeiro lugar, é lamentável termos de comemorar que só recentemente nossos hospitais públicos começaram, com o Programa de Aborto Legal, a respeitar uma lei que data de 1940: o aborto é direito das mulheres em caso de estupro e risco de vida da gestante, além de judicialmente ser concedido em certos casos de má formação do feto. Todavia, a maioria dos abortos brasileiros ainda acontece na clandestinidade, nas casas ou em clínicas particulares, fazendo com que o aborto no Brasil exista de fato não só para os casos previstos em lei: são mais de 1 milhão de abortos por ano, para quem pode ou não pagar por bom atendimento médico. Contudo, para quem não pode pagar, as conseqüências de um aborto clandestino geralmente são trágicas.

 

Em segundo lugar, o filme desnaturaliza a idéia da maternidade, inserindo a discussão no contexto social da mulher brasileira. Nunca é demais lembrar que a maternidade não é simples fato natural, mas conseqüência de relações sociais: ninguém engravida simplesmente por ter nascido mulher. Ora, o filme deixa claro que a violência não se dá somente na forma de violência física (portanto, supostamente natural), mas também na forma de privação dos direitos civis: seja pela má-vontade, preconceito ou até mesmo ignorância dos funcionários da burocracia, seja pela condição de pobreza da maior parte da população, seja pelo machismo dominante. Ou por tudo isso junto.

 

Uma cena é reveladora: ao serem atendidas pela psicóloga num hospital público, mãe e filha vítima de estupro relatam que o escrivão da delegacia que registrou a queixa não lhes informou dos direitos civis (ou seja, garantidos em lei) da filha, mas, ao contrário, disse que "é difícil", que "não sei não", que "isso é complicado", "melhor desistir"... Ou coisa assim. Onde, então, mora a violência – só no bairro pobre onde vivem as duas? Quem é o violentador – só o estuprador?

 

Voltemos a Locke. A afirmação dos direitos fundamentais do indivíduo implica também um dever: a afirmação dos meus direitos como pessoa imediatamente exige dos outros que reconheçam minha condição humana fundamental, independentemente de crença ou pertença social, política ou religiosa. Lembrando disso, talvez o maior mérito do filme seja deixar as próprias mulheres falarem. Pois, no Brasil, o debate sobre o aborto é demasiadamente pautado pelos pontos de vista da religião, do Estado, ou da sociedade (por mais abstrato que isso seja); raramente a perspectiva das próprias mulheres é considerada, freqüentemente lhes é tolhida a possibilidade de expressar o que sentem, pensam, desejam; outros falam por elas, em vez delas.

 

Só revertendo nossa situação será possível garantir às mulheres aquilo que lhes pertence de direito, seja ele civil ou natural: o direito de serem ouvidas, tratadas e consideradas como pessoas que são, sujeitas de suas próprias vidas.

 

Cordiais saudações.

 

***

Nota 1: Mais informações sobre o filme, aborto, legislação, direitos humanos etc. no sítio virtual: [www.oabortodosoutros.com.br].

 

Cassiano Terra Rodrigues leciona filosofia na PUC-SP, apóia a descriminalização do aborto e sonha com o dia em que nenhum aborto mais será necessário.

 

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Comentários   

0 #2 AbortoDenise 22-09-2008 14:17
É muito facil cada um defender seu ponto de vista, resultado de convicções ou interesses pessoais, mas advogar a morte, mesmo q seja a morte de um embrião da vida humana, é no minimo temerario, pois quem o faz deveria sempre pensar na possibilidade dessa vida abortada sobreviver e daí o q se faria? Sera q a morte é solução para quem? Para quem lucra (financeiramente) com ela? Ninguem nunca desejou ser abortado, portanto não deseje aos outros o q não se quer para sí...
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0 #1 O Brasil, as mulheres e a saúde...Inês Prata 04-09-2008 11:36
Muita boa sua argumentação. Eu sou contra a legalização do aborto e continuarei sendo, porque entendo que ela é muito mais do que está dito, muito mais que o um direito que é omitido. É um direito muito anterior que está sendo negado: O direito da muher a um serviço de saúde capaz de lhe garantir métodos anti-concepcionais, e até mesmo um pré-natal decente.
Não axo que a mulher morra só por causa de aborto e sim por um desrespeito anterior. TEmos uma taxa de mortalidade materna vergonhosa... Colocar o SUS para realizar aborto quando ele não realiza o parto, não permite uma atenção de qualidade ao pré-natal nem a saúde reprodutiva é ir pelo caminho mais curto. Ao invés de lutar por um direito a luta é remediar sua falta...
Com relação à mulher, o que ela sente, acredito mais numa pesquisa que deixa claro que a decisão do aborto é muito mais do parceiro, no caso das mulheres adultas; e dos pais, no caso das jovens, do que da própria mulher que aborta. E aí vem outro direito mais anterior ainda: a falta de respeito às mulheres em geral. Principalmente às pobres.
Por isso, defendo que, ao invés de legalizar, se deveria era apenar a mulher que pratica o aborto com uma obrigatoriedade de frequência a um serviço de atenção psicológica por um período mínimo de um ano. E a quem recusar-lhe o socorro com uma pensa forte e executada, sem subterfígios...
Há! não vai ter quem preste esta atenção psicológica?... Então o problema volta a estaca sero:´E PRECISO LUTAR POR UMA ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DAS PESSOAS..
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