Correio da Cidadania

A extrema-direita no poder no Brasil. E agora?

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A América Latina está a assimilar a vitória de Jair Bolsonaro, um político quase desconhecido de extrema-direita, nas eleições presidenciais brasileiras, assim como sua contraparte, o retrocesso do Partido dos Trabalhadores (PT) e outros grupos.

Urge abordar semelhante “lição” sem repetir nem a robusta informação circulante desses dias nem as análises simplistas. Além do mais, tal abordagem deve ser feita por um olhar latino-americano, buscando compreender as implicâncias para as esquerdas nos demais países. Tarefa urgente, pois hoje muitos creem confirmada a impossibilidade de qualquer alternativa de esquerda e que o retorno das direitas é inevitável.

É importante adiantar que rejeitamos essa postura, e vemos mais na crise a semeadura de uma nova esquerda latino-americana que não repita os erros progressistas e se converta, mais uma vez, em opção de mudança. Em outras palavras, apostar nas esquerdas que evitem a chegada de outros Bolsonaros nos países vizinhos, para o que cabe um diagnóstico rigoroso sobre o que houve no Brasil. Permanecer na superfície é insuficiente e só se evitará o contágio caso se construam propostas de mudança profundas, viáveis e democráticas.

Direita sem dissimulação e progressismo que dissimula

Bolsonaro e seus apoios expressam uma ultradireita que em nada dissimula ou esconde. Tem uma prédica homofóbica, ataca indígenas e negros, ironiza com o fuzilamento a militantes de esquerda, defende a tortura e a ditadura. Mas não está sozinho, seu racismo e autoritarismo são respaldados por amplos setores brasileiros e os contrapesos da cidadania e da política foram insuficientes em detê-lo. Isso revela uma sociedade brasileira muito mais conservadora do que o pensado, em contraste com a passada bandeira do PT, que celebrava o apoio do “povo” e a viragem à esquerda.

Aqui já aparecem várias lições. Uma das velhas propostas do PT era democratizar a sociedade brasileira, inclusive melhorar a institucionalidade política. Porém, uma vez no governo o desempenho foi muito limitado, pois agravou a dispersão partidária; usou-se de subornos entre legisladores (recordemos o primeiro governo Lula com o mensalão); persistiu-se no verticalismo partidário; e paulatinamente se debilitou a participação cidadã. Esses e outros fatores talvez expliquem as limitações de um “triunfalismo facilista” ante uma sociedade brasileira que não era tão esquerdista como parecia.

É evidente que uma renovação das esquerdas deve aprender com essa dinâmica e não pode renunciar a democratizar tanto a sociedade como suas próprias estruturas. Deixar de fazê-lo facilita o surgimento de oportunistas. As estruturas políticas de esquerda devem, de uma vez por todas, ser dignas representações de suas bases e não meros trampolins, dos quais ascendem figuras individuais, com claros traços caudilhistas.

Aqui, sem dúvida, opera o “medo de perder a próxima eleição”. Na Argentina, o sucessor designado do kirchnerismo perdeu a eleição para o novo conservadorismo de Mauricio Macri justamente por fazer algo parecido ao que agora ocorreu com o PT: rejeitar os chamados de mudança, se fechar e se imobilizar sobre um núcleo duro. Esse mesmo temor é evidente hoje no governo do MAS na Bolívia e parece chegar à Frente Ampla no Uruguai.

Desenvolvimento nada novo, e sim senil

O caso brasileiro confirma a grande importância das estratégias de desenvolvimento, fator chave ao diferenciar progressismo de esquerda. O caminho seguido pelo governo Lula, o “neodesenvolvimentismo”, repousou outra vez nas exportações primárias e captação de investimento estrangeiro, afastando-se de muitos reclames da esquerda. Este fato, assim como os apontados acima, expressam que progressismo e esquerda são duas correntes políticas diferentes.

Com efeito, o Brasil se tornou o maior extrativista mineral e agropecuário do continente. Isso só é possível aceitando uma inserção subordinada no comércio global, e uma ação limitada do Estado, justamente o contrário das aspirações da esquerda.

As limitações dessas estratégias se disfarçaram com os vultosos excedentes da fase de altos preços das matérias primas. Ainda que muito se propagandeasse da assistência social, o grosso da bonança se centrou em outras áreas, tais como o consumismo popular; subsídios e assistências empresariais (como ocorreu com os Planos Agrícolas e Pecuários); apoio a algumas grandes corporações (as chamadas campeãs nacionais).

Isso explica que o “neodesenvolvimentismo” fosse apoiado tanto por trabalhadores, que desfrutavam de créditos acessíveis, como pela elite empresarial, que conseguia dinheiro estatal para se internacionalizar. Lula era aplaudido, por razões distintas, tanto em bairros pobres como no Fórum Econômico de Davos.

Isso começou a se esboroar com a queda de preços das matérias primas, revelando que os subsídios mensais são importantes, mas não tiram de fato as pessoas da pobreza . Persistia a concentração de riqueza e parte do financiamento a corporações se perdeu em redes de corrupção. Não se transformaram as essências das estratégias de desenvolvimento. Aprofundou-se a dependência a matérias primas, com a China sendo a nova referência, fazendo com que o Brasil tivesse a pior balança comercial física do continente. Produziu-se desindustrialização e fragilidade econômica e financeira. Esse “novo desenvolvimentismo” progressista é tão velho como nossas próprias colônias, pois foi lá neste passado remoto que se iniciou o extrativismo.

Não se quis entender que tais estratégias obrigavam o uso de certos instrumentos econômicos e políticos nada neutros, e bem contrários à boa parte da essência da esquerda. Para completar, os progressismos nos países vizinhos seguem o mesmo caminho. Alimentaram-se crises políticas não conseguem resolver pela esquerda, ao passo que voltam velhas receitas, como o endividamento, os controles sobre a mobilização cidadã, ou flexibilização de normas ambientais e laborais para atrair investidores. Como resultado, geraram-se condições para uma restauração conservadora, deixando servidos na mesa um Estado e regras que a tornarão ainda mais fácil.

Ruralidades conservadoras

O desenvolvimentismo senil requer o velho autoritarismo, e por isso diferentes setores, como o ruralismo ultraconservador, festejam o discurso de Bolsonaro contra os indígenas, os camponeses e os sem terra. Bolsonaro conta entre seus apoios com a bancada ruralista, um setor que já havia chegado ao anterior governo, quando Dilma colocou uma de suas líderes no gabinete (Kátia Abreu). Esse exemplo deve alertar a esquerda, pois diferentes atores conservadores e ultraconservadores aproveitam-se dos progressismos para se associarem a tais governos.

Além do mais, os progressismos não garantiram uma real reforma agrária ou uma transformação da essência do desenvolvimento agropecuário. Recordemos que sob o primeiro governo de Lula se difundiu a soja transgênica no Brasil; um similar processo de sojização ocorreu no Uruguai, iniciado com José Mujica no MGAP – Ministério da Pecuária, Agricultura e Pesca. Os progressismos não conseguiram explorar alternativas para o mundo rural, insistindo com o simplismo dos monocultivos de exportação, sustentação de empresários do campo e, quando há dinheiro, distribuição de assistência financeira a pequenos e médios produtores. 

As esquerdas, em compensação, devem inovar em uma nova ruralidade, abordando a sério tanto a posse como os usos da terra, o papel dos provedores de alimentos não só para o comércio global, mas sobretudo o próprio país.

Pobreza e justiça

O PT aproveitou diferentes circunstâncias e conseguiu reduzir a pobreza junto a outras melhoras (como incrementos no salário mínimo, formalização do emprego, saúde etc.), o que deve ser aplaudido. Mas, muito desse esforço repousou no assistencialismo e reforçou a mercantilização da sociedade e da natureza. A bancarização e o crédito explodiram (o crédito privado subiu de 22% do PIB em 2001 para 60% em 2017). O consumismo se confundiu com melhoras na qualidade de vida.

O progressismo esqueceu da meta da esquerda de desmercantilizar a vida como reação contra o neoliberalismo do século passado. A ideia de justiça se reduziu a enfatizar alguns instrumentos de redistribuição econômica, enquanto os direitos cidadãos seguiam frágeis. A esquerda latino-americana não pode se fazer de distraída ante o fato de que o Brasil está na liderança no número de assassinatos de defensores da terra no mundo (57 mortes em 2017 segundo a Global Witness) e a violência urbana não retrocedeu. As esquerdas não deveriam se enredar em reducionismos e a justiça social é muito mais que a redistribuição, assim como a qualidade de vida é muito mais que crescimento econômico.

Há futuros possíveis

O PT, assim como outras expressões progressistas latino-americanas, não só ignorou advertências sobre este “neodesenvolvimentismo” primarizado, mas ativamente combateu os debates e ensaios de alternativas de desenvolvimento. Diferentes atores, tanto nacionais como estrangeiros, aplaudiam de forma complacente, sem escutar vozes de alarme, com o pretexto perverso de não “fazer o jogo da direita”.

Apesar de tudo, no Brasil e no resto do continente há múltiplas resistências e alternativas que se constroem cotidianamente. Elas oferecem inspirações para uma recuperação da esquerda, desde a crítica ao desenvolvimentismo, os ensaios para abandonar a dependência extrativista ou a salvaguarda dos direitos civis e cidadãos. Ali estão os insumos para uma nova esquerda, comprometida com os horizontes emancipatórios.

A renovação das esquerdas deve assumir a crítica e a autocrítica, custe o que custar, para aprender e desaprender certas experiências recentes. Mantêm-se atuais famosos desafios e se somam novas urgências. A esquerda latino-americana deve avançar em alternativas de desenvolvimento, deve ser ambientalista a respeito da natureza, e feminista para enfrentar o patriarcado, persistir no compromisso socialista como superação da iniquidade social, decolonial para superar o racismo e a exclusão. Tudo isso sempre exige mais democracia.

Eduardo Gudynas é pesquisador do Centro Latino-Americano de Ecologia Social no Uruguai; Alberto Acosta foi presidente da Assembleia Constituinte do Equador y candidato à presidência pela Unidade Plurinacional das Esquerdas.

Traduzido por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.

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