Correio da Cidadania

‘Geraldinos’: triste retrato da falência do futebol brasileiro

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Mais novo, eu jogava futebol com um amigo (inconscientemente meio metido a sociólogo) que dizia: “o futebol reflete o mundo”. Quando um outro cara jogava sem vontade, preocupando-se em não suar a camisa, esse amigo brigava com ele, sempre fazendo alguma relação com a vida do sujeito fora de campo e sua atitude. E, por mais perverso que fosse, havia relação. Curiosamente, ele se formou jornalista anos mais tarde e, assim como os autores do documentário Geraldinos e incontáveis torcedores brasileiros, elaborou melhor a teoria a partir da prática cotidiana do torcer, cada vez mais mutilada pela ordem.

 

Digo isto pois o documentário Geraldinos, de Pedro Asbeg e Renato Martins, desenvolve tal teoria, já presente entre torcedores de modo geral, e ainda oferece um triste retrato do que é a hegemonia total do capital financeiro, dos tecnocratas e marqueteiros sobre o futebol. Em como se reflete na frustração pela falta de acesso da maioria. E não pense que isso é só sobre o futebol; o que acontece no futebol reflete em toda a sociedade. Ou melhor, tem escancarado os absurdos que acontecem em todo nível social.

 

Geraldinos mostra exatamente o quanto esse “novo futebol”, apresentado e saudado pelos grandes meios de comunicação enrolados até o pescoço com o mercado financeiro, reflete um modelo de sociedade mais frio e cruel para a maioria, mais limpo e organizado para poucos. “O Geraldino não é bem-vindo no novo Maracanã, o lugar dele é no subúrbio pagando pay-per-view”, critica Marcelo Freixo, atual candidato a prefeito do Rio de Janeiro, entrevistado para o documentário. “Hoje o futebol é business, é negócio, não sei de quem ele é, mas sei que não é meu”, concorda outro entrevistado.

 

A tristeza dos antigos geraldinos que hoje não têm mais lugar no Maracanã é de emocionar. As histórias são de fazer o espectador derramar lágrimas de fato. Como quando é mostrada a destruição da geral, também de fato, com muito barulho de britadeira. Mostra-se a destruição do espaço físico com a mesma clareza da destruição da alma do Maracanã. Uma tristeza compartilhada entre todos os Geraldinos e Arquibaldos do Brasil que veem processo semelhante em toda cidade, clube e estádio.

 

Assistir ao jogo em uma televisão, trancado dentro de casa ou de um bar, é uma tortura imensa para essas almas livres. E o sucesso do documentário está na transmissão de tal sentimento. O momento do gol é a única coisa que resgata a humanidade de um geraldino trancafiado. Não importa onde esteja, nessa fração de segundo o mundo é uma grande geral. E o bairro inteiro nota sua existência.

 

Além de imagens históricas do Maracanã (que descanse em paz, apesar da necrofilia vigente), das torcidas entrando no estádio, fazendo sua festa ou não, é impressionante como são apresentados os geraldinos no início do documentário com suas mandingas, manias, formas de torcer e de ver o futebol em contraposição com sua tristeza frente aos novos tempos. “Mas e daí que a visão era ruim?”, rebate um geraldino, torcedor do Fluminense – “lá eu podia pular, me mexer, correr na hora do gol, xingar o jogador adversário que ele iria escutar ou mesmo sentar no cantinho lá atrás caso não quisesse ver o jogo”. Era isso. A geral e a velha arquibancada, ou melhor, o Geraldino e o Arquibaldo eram os grandes símbolos da democracia que marcou os estádios brasileiros mesmo em tempos de autoritarismo político declarado. Democracia essa que hoje vemos esvair-se sob todos os pontos de vista.

 

Uma “democracia” que não tolera a diversidade. Vemos nossa sociedade caminhar para alguma espécie de sistema de castas onde cada indivíduo, a partir de sua condição, tem um papel pré-determinado e um produto pronto para o consumo.

 

Os estádios que outrora incluíam todas as classes e perfis sociais, hoje são espaços cada vez mais seletos, com preços cada vez mais caros, dez vezes mais camarotes e 100% a menos de gerais e arquibancadas – afinal, mesmo havendo setores ainda chamados de arquibancadas, já não são a mesma coisa. Um perfil social específico é benvindo nessas novas arquibancadas. Provavelmente, esse mesmo perfil não consiga acessar outros setores das mesmas arenas, destinado a consumidores com mais poder de compra. E vai construindo-se a pirâmide de cima pra baixo. Aos de baixo restam os “incríveis” atendimentos e serviços prestados pelas empresas de televisão a cabo. E se, por acaso, tiver a oportunidade de abraçar novamente seu clube de coração, terá de andar na linha.

 

Como dito no filme, há uma lógica fria, tecnocrática e cruel que se expressa na modernização do Maracanã. Uma lógica que tira do estádio e dos espaços públicos em geral a diversidade da qual é composto o povo brasileiro. Que retira o espaço de liberdade e convívio e troca pelo espaço de consumo. Que transforma o maior patrimônio do futebol brasileiro, seu povo, em objeto a ser descartado. Como que dizendo: “que torçam, mas longe daqui”. Em outras palavras: “o fim da geral é a derrota de uma concepção de estádio e o fim de um projeto de cidade”, como vaticina Freixo.

 

Assista ao trailer do filme.


Ficha técnica


Geraldinos

Gênero: Documentário

Direção: Pedro Asbeg, Renato Martins

Produção: Pedro Asbeg, Renato Martins

Fotografia: Lula Carvalho, Manuel Águas, Pablo Baião, Pedro Asbeg, Pedro Von Kruger, Renato Martins, Tiago Peregrino

Montador: Gabriel Medeiros

Trilha Sonora: André Sachs, Marcelo Yuka

Duração: 73 min.

Ano: 2015

País: Brasil

Cor: Colorido

Estreia: 28/04/2016 (Brasil)

Distribuidora: Distribuição Própria

Estúdio: Canal Brasil / RioFilme

 

Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

 

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