A Polícia Federal e "os intocáveis"
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- Frei Betto
- 01/06/2007
Desde que me entendo por gente ouço dizer, sem poder discordar, que vivemos no país da impunidade. A polícia e a Justiça punem apenas os pobres passageiros atulhados nos porões deste imenso navio cargueiro chamado Brasil, que flutua nos mares do Sul. No convés, os camarotes vivem infestados de larápios, corruptos, estelionatários, sonegadores, contrabandistas, contratadores de trabalho escravo e toda sorte de bandidos, imunes e impunes.
Essa elite deletéria tem o poder de influir,
não apenas na elaboração das leis, mas sobretudo
na sua aplicação, pois indica juízes e promove
togados, nomeia delegados e promotores, presenteia políticos e
banca férias de magistrados em hotéis de luxo, o que
lhes permite trafegar e traficar no mundo do crime com a mesma
desfaçatez com que freqüentam os salões da
República, os gabinetes de parlamentares e as festas em que o
poder desfila e espelha seu incomensurável ego.
Diante
de tanta impunidade, Chico Buarque chegou a propor “chamem o
ladrão, chamem o ladrão!”. No governo Lula,
felizmente, as ingerências políticas foram afastadas da
Polícia Federal. Como nunca se havia visto antes, as grades de
sua carceragem se abriram para ex-governadores, juízes, donos
de grandes empresas, gente graúda. Graças à
imparcialidade do Ministério Público e ao sigilo das
investigações, tubarões têm caído
na rede. Pena que as nossas leis sejam tão frouxas e o
Judiciário cheio de dedos para puni-los.
Agora, diante
da Operação Navalha, que corta a jugular de um dos
esquemas para sugar os bilionários recursos do PAC (quantos
outros não permanecem ativos?), há uma grita geral de
que a Polícia Federal estaria “exagerando”. Sobretudo ao
vazar informações para a mídia. Ora, na hora de
estourar a boca de fumo é chute na porta, mãos para o
alto, barraco revirado, e se o preso perguntar pelo mandado do juiz é
bem capaz de levar umas bolachas... Mas em se tratando de bacanas,
corre-se o processo sob segredo de Justiça. Claro, isso
facilita o embate entre o Judiciário, refém da elite, e
a Polícia Federal – que infelizmente não tem tanta
autonomia quanto o Banco Central.
O “exagero” não
está na Polícia Federal, senhores políticos!
Está nos fatos que levam uma publicação como o
Financial
Times
a dizer que o Brasil é o país do “rouba, mas faz”,
sem que o Congresso reaja à acusação. O
“exagero” reside nas CPIs abortadas sem punir ninguém; nos
inquéritos paralisados que reforçam a impunidade; no
volume de dinheiro público destinado a bolsos privados; no
absurdo de micros, pequenos e médios empresários
ficarem à míngua diante da porta do BNDES, obrigados a
suportar elevadas taxas de juros dos bancos privados, enquanto os
grandes empresários se fartam com dinheiro público
barato. O “exagero” é constatar que, frente a tanta
denúncia de corrupção neste país nos
últimos anos, nenhum corrupto se encontra cumprindo pena atrás
das grades.
O “exagero” não é a Polícia
Federal investigar e capturar, é aderir à perversa
ideologia de que os meus amigos corruptos são menos corruptos
que os meus inimigos... Por que rejeitar o jatinho do empresário
amigo? Que mal faz um mimo? Recusar um presente não é
uma ofensa?
É tanto ladrão graúdo
preso e muitos ameaçados que o melhor é prender e calar
a polícia... Isso lembra a história de Eliot Ness, o
famoso agente usamericano que enfrentou a máfia, retratado na
série “Os Intocáveis”. Sabe por que a série
foi tirada do ar pela cadeia televisiva ABC? Primeiro, a comunidade
ítalo-americana protestou. Sentia-se encarada como mafiosa. A
viúva de Al Capone processou a emissora por uso indevido da
imagem do marido e exigiu reparação de US$ 1 milhão.
O FBI também se irritou, era ele que reprimia a máfia,
e os méritos ficavam com Eliot.
Tudo
se complicou em 1961, quando o líder sindical “Though Tony”
Anastasia, ressentido com a denúncia do caráter mafioso
de sua entidade, promoveu manifestação diante da ABC em
Nova York e mobilizou os estivadores para manter “intocadas” as
cargas de cigarros Chesterfield Kings, patrocinadora do programa.
Afetada pelo boicote, a empresa Ligett-Meyers, produtora do cigarro,
retirou o patrocínio e, meses depois, o programa saiu do
ar.
E no Brasil, quem são “os intocáveis”,
os policiais federais ou os bandidos de colarinho branco e rabo
preso?
Frei Betto é escritor, autor de “Treze
contos diabólicos e um angélico” (Planeta), entre
outros livros.
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