Correio da Cidadania

Não se enganem: é só mais do mesmo

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A última coluna abordou os recentes problemas envolvendo torcedores (majoritariamente organizados) e policiais militares em espetáculos esportivos. Infelizmente, os acontecimentos mostraram que o tema está longe de sair da pauta dos noticiários futebolístico-policiais.

 

Na tarde do dia 22 de março, ao fim de Corinthians x Santos no Pacaembu, novamente a PM se enfrentou com uma torcida (a do peixe), por motivos que outra vez não ficaram esclarecidos. Enquanto isso, o governo começa a ensaiar entrar pra valer na questão e volta a atrair os olhares do público com (mais um) plano de combate à violência e outros males ludopédicos. Dentre eles causou rejeição imediata o cadastramento de torcedores, defendido pelo ministro Orlando Silva Jr., muito amigo dos cartolas, nem tanto do esporte.

 

O caso ocorrido na capital paulista (que, repito, é onde mais se aplica proibições de toda ordem e onde a violência mais grassa) é simbólico da nulidade de tal medida. A Federação Paulista já tinha se antecipado a essa genial idéia e promovido o cadastro de torcedores membros de organizadas. Serviria, vejam a inutilidade, para que seus membros pudessem ingressar no estádio com o fardamento da entidade à qual pertencessem. Como se roupas determinassem o grau de violência das pessoas. Mas não percamos tempo nesse ponto, que só serviu para criar a segregação da torcida dentro do estádio e não resolveu absolutamente nada. Isso porque em caso de criar algum incidente violento e ter sua carteirinha suspensa, o cidadão em questão poderia continuar freqüentando normalmente os campos, bastando abrir mão da roupa da torcida e entrar por todos os outros acessos do estádio, destinados ao torcedor dito comum. Parece tiração de sarro, mas são as autoridades do esporte "combatendo" a violência.

 

De toda forma, o tal cadastro da federação, que concedia uma carteirinha ao membro de torcida que se prestasse ao fichamento, reúne cerca de 22 mil nomes, uma boa base de pesquisa para identificar violentos que causassem eventuais distúrbios. Idéia muito propagandeada, matéria na Folha de S. Paulo dessa semana revelou que a lista só foi consultada 3, 4, no máximo 10 vezes. O tenente-coronel Hervando Velozo, que coordena o policiamento dos jogos, disse por sua vez que nunca consultou tal fonte.

 

Quer dizer, se fazem um cadastro e admitem que não o usam para nada, por que fazer outro, de abrangência nacional ainda por cima? O governo federal, e nenhum dos envolvidos nas discussões, não fez tal observação, o que mostra o desconhecimento que nossas autoridades possuem da realidade das arquibancadas. O projeto apresentado até tem seus pontos interessantes, mas o único que realmente se destaca é a criminalização do cambismo, prática realmente odiada pelos torcedores. Os outros podem ser abrangidos pelas leis existentes ou pelos próprios regulamentos de campeonatos, como no caso da manipulação de resultados. Se bem que o próprio cambismo pode ser enquadrado como crime contra a economia popular, previsto simplesmente no Código de Defesa do Consumidor.

 

De quebra, São Paulo escala para comandar tal processo um promotor que já se mostrou uma triste cópia do seu antecessor no palanque do combate à violência. O nome dele é Paulo Castilho. O nome dele era Fernando Capez. O segundo ganhou espaço ilimitado na mídia, alavancou sua carreira, fez fama na vida pública, se elegeu para cargos políticos e não resolveu nada. O primeiro parece ser mais do mesmo, pois já ficou amiguinho dos cartolas (os mesmos que criam climas bélicos antes dos grandes jogos, entre outras práticas bárbaras) e não se cansa de sugerir medidas claramente ultrapassadas e de eficácia desmentida pelos próprios fatos.

 

Falando em cartolas, como vamos mesmo erradicar a violência das praças esportivas se quem comandará o processo, e comanda os clubes, é a mesma gente que permitiu que as coisas chegassem a tais níveis? O presidente do Santos, Marcelo Teixeira, foi flagrado fazendo gestos, xingando e atirando objetos nos torcedores (dos lugares Vips, ou seja, nada de organizados) do Corinthians na partida citada. O do Corinthians, Andrés Sanchez, insuflou um clima de rixa desnecessária no São Paulo x Timão deste ano e vimos no que deu.

 

As relações entre as pessoas das altas esferas de poder metidas na discussão já são clara demonstração do jogo de cena que estamos presenciando. Políticos, promotores, policiais, delegados, cartolas são os grandes responsáveis pelo lamentável quadro da civilidade esportiva e são os mesmos escalados para promover a paz. Por isso que todas as medidas atingem e afetam somente o torcedor, inclusive aquele pacífico que nunca se envolveu em nada. Mexer na estrutura que é bom, nem pensar. Por isso foi limado do Estatuto do Torcedor, primeira lei assinada por Lula, o artigo que responsabilizava os dirigentes por ocorrências e ilicitudes envolvendo suas entidades. Malandro é o gato, que já nasce de bigode...

 

Na Inglaterra, exemplo repetido aos milhares, a violência foi combatida com medidas estruturais e estruturantes, isto é, que visavam primeiro mudar a realidade local, para depois exigir contrapartidas dos torcedores, pois concluíram que "o torcedor tratado como animal reage como animal", como contou o pesquisador Oliver Seitz, que estuda questões relacionadas ao futebol na Universidade de Liverpool.

 

O relatório Taylor, famosíssimo trabalho de um lorde inglês tido como ponto de partida da efetiva mudança de realidade britânica, vive sendo citado pelos nossos cartolas, quando vêm com a cantilena de que agora a brincadeira acabou. Pois deveriam saber que o mesmo lorde Taylor rifou a idéia de Margareth Thatcher (quem mais?) de implantar um cadastramento semelhante. Disse que a questão dos estádios precisava ser focada na segurança, não na violência. Belo conceito a ser aprendido por aqui, onde só se ataca superficialmente os problemas, de todos os segmentos na verdade, e não no fundo, na origem.

 

Além do mais, dentre tantos documentos que já permitem nossa identificação perante o Estado, por que mais um, que só viria a burocratizar a simples e inocente (sim, acreditem) ida ao estádio? Não pensaram eles que isso certamente diminuirá o público dos jogos, pois nem todos aceitarão passar por isso, ainda mais quando se tratar daquele sobrinho de oito anos que nunca foi ao jogo? Ou de turistas que queiram conhecer o Maracanã? "Mas aí é só ter o bom senso de deixar entrar", disse Lula. Quer dizer, a norma já começaria acompanhada do jeitinho brasileiro, que desta vez estaria até previsto em lei, uma grande inovação, reconheçamos.

 

Enfim, estamos diante de nova cortina de fumaça, que visa somente eximir de culpa e tirar do foco das críticas os mesmos incompetentes de sempre, que na falta de satisfações a oferecer à sociedade aparecem com ‘novas’ idéias de erradicação da violência. Pois enquanto dizem isso, se coadunam com os mesmos que chamam de marginais, concedendo ingressos e demais privilégios a quem dizem enfrentar.

 

A discussão continua, mas já aviso, sem medo de errar, que por enquanto nada mudará.

 

Gabriel Brito é jornalista.

 

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