Correio da Cidadania

Três dias sem escrever

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Foram três dias. Três dias sem escrever. Diziam os antigos que um escritor deve produzir ao menos uma linha por dia. Foram três dias sem escrever uma linha, sem arriscar uma palavra, uma vírgula sequer. Três dias com suas três noites. A morte do texto. O escritor paralisado. Perplexo diante de sua própria inatividade.

 

Foram três dias sem pensar, sem ler, sem escrever. Três dias de exílio. De jejum forçado. De desmaio. De coma profundo. De olhar perdido em direção nenhuma. Vontade apenas de fazer algo bem burocrático, bem automático, bem carimbático, bem sorumbático.

 

Foram três dias. Nem longos nem curtos. A morte não tem medida, não usa relógio. O escritor morto pensa em tudo aquilo que nunca poderia ter acontecido e jamais acontecerá. O escritor morto, respirando o mínimo possível. Nem dormindo nem trabalhando. Foram três dias que valeram por três mil. Ou por três segundos.

 

Foram três dias debaixo da terra. As idéias morreram. As palavras definharam. Não há conexão. Não há linha. Não há jeito. Não há forma. Não há como. Não há nada. Morte indolor. Morte sem anúncio. Morri. Três dias.

 

Foram três dias perdidos. Três dias no fundo do mar. Três dias no deserto. Três dias sepultado. Três dias crucificado. Três dias arruinado. Três dias falido. Três dias esmagado por todos os pesos.

 

Foram três dias. O motivo não vem ao caso. Três dias de azar. Três dias vagando pela terra, como os lêmures, querendo vingar-me do mundo. Três dias sem inspiração, se é que existe inspiração. Três dias sem projetos, se é que projetos fazem algum sentido.

 

Depois de três dias, um passarinho começou a cantar.

 

Dizem que um é pouco, dois é bom, três já é demais. No terceiro dia, ressuscitei dentre os mortos. Nunca mais serei o mesmo. Não se vive a morte impunemente. Não se morre à toa. Morrer durante três dias é tempo além da conta. Não morrerei de novo.

 

O escritor voltou a escrever. Escravo da escrita, escrevo outra vez. Nem melhor nem pior do que antes. Três dias estéreis trazem progressos insignificantes. O importante não é importante.

 

De repente... estava vivo. Três dias foram o suficiente. É desagradável morrer. É imprescindível renascer. Não desejo a morte a ninguém. Mas a todos desejo que, mortos um dia, ao terceiro dia venham contar o que aconteceu.

 

 

Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor. Website: http://www.perisse.com.br/

 

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Comentários   

0 #4 joaquim laurindo de soua neto 20-03-2009 12:52
Utilizo sempre seus textos - e de outros - que o Sr. utiliza para minhas aulas e indico sempre aos colegas - principalmente de filosofia e língua portuguesamuito bom, eu não queria dizer, mas digo: o sr. é GENIAL !
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0 #3 Ressuscitado ao Terceiro DiaSilvio de Tarso 19-11-2008 17:06
Perisse é um grande provocador, de cuja provocação precisamos todos os dias. Três de jejum (morte) nos mata (seus leitores) também. Ao ressuscitar, ressuscitamos juntos e compreendemos melhor o que é Ressuscitar.
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0 #2 Morrer?Justino Cosme, 01-11-2008 23:57
É professor, ainda bem que vc não morreu. Certametne, me deixaria órfão de seus maravilhosos textos.
Embora vc não tenha morrido, nunca havia imaginado essa possibilidade: morrer três dias somente.
Mas, vendo por outro angulo, acredito que eu já tenha nascido é morto. Ao contrário de ti, seria um privilégio viver pelos menos tres dias da minha vida escrevendo coisas boas que nem vc. Somente tres dias, apesar de que: um é pouco, dois é bom, três é demais.

Valeu mestre. Salve a "Arca das Palavras"
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0 #1 ainda bemlu 23-10-2008 14:19
Ainda bem que não morreste para sempre, pois o que seria de nós, sem suas preciosas palavras.
Agoraé só VIVER!
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