Correio da Cidadania

“A esperança e a ética na abordagem da Economia Moderna”

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O Encontro anual do Centro Alceu de Amoroso Lima (Petrópolis-RJ) refletiu neste mês de outubro de 2007 sobre a esperança, com várias abordagens teológicas e pastorais, que no fundo procuram nos situar  no quadro de perplexidades em que vivemos.  Para mim, que não sou teólogo nem pastor, coube-me o tema “Economia na Perspectiva de Esperança”.  Aceitei-o, para compartilhá-lo informalmente com pequeno grupo; e agora, para resumi-lo neste artigo, movido fundamentalmente pelo espírito do evento. Pois há divórcio tão profundo entre racionalidade da economia moderna e a ética da esperança bíblica, que o tema termina se tornando relevante pelo estranhamento e antinomias que contém.

 

O estranhamento, a que estou me referindo, tem nomes e endereços teóricos bem estabelecidos – os chamados fundadores da economia política moderna e seu principal crítico: Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx. Estes, por diferentes enfoques, tematizaram o agir dos agentes econômicos, movidos pelo interesse individual, no contexto de uma ética utilitária fechada: do lado dos consumidores, procura-se satisfazer desejos e atender a preferências; e do lado dos empreendedores, busca-se à maximização do lucro. Uma “mão invisível” conduziria esses demandantes e ofertantes a uma dada situação de equilíbrio, cujo paradigma teórico os neoclássicos, já no séc. XX, foi inspirado na mecânica newtoniana.

 

A produção de mercadorias (segundo a “Crítica da Economia Política’ de Marx), sua lógica e a da sociedade daí derivadas – o capitalismo - são um mundo auto-suficiente, externo a qualquer consideração ética a respeito da vida, da natureza, da justiça e da esperança, segundo a “ciência dos fundadores”. Valores éticos não comportam consideração dentro dessa ciência da produção e reprodução de mercadorias, mas em outras disciplinas – a Ética, a Política, o Direito e a Religião, tratados como disciplinas menores da “superestrutura ideológica da sociedade”.

 

 É bem verdade que o socialismo utópico do séc. XIX, assim como o movimento anarquista, fez críticas à economia liberal e formulações alternativas profundamente éticas. Mas a crítica “científica” marxista do séc. XIX à economia capitalista e o próprio socialismo real que irá inspirar no séc. XX mantêm intactos o edifício teórico da economia, no que diz respeito ao agir econômico, muito próximo aos princípios clássicos e neoclássicos.

 

A esperança no sentido bíblico não entra neste edifício teórico. À maneira de Dante, seria como inscrever-se algo assim: “aqueles que entrarem neste recinto ponham toda esperança de lado”.

 

Quem introduziu a categoria “expectativas” na economia moderna foi Lord Keynes na sua “Teoria Geral”, uma brilhante teorização sobre o agir econômico a partir daquilo que os agentes esperam que vá acontecer no futuro.  Mas essas expectativas estão moldadas na ética utilitária da maximização competitiva de ganhos nos diferentes mercados (“commodities”, títulos financeiros e dinheiro etc.) e nada têm a ver com a preocupação de esperança bíblica.

 

Para trazer a esperança à economia real é inevitável que tenhamos que procurá-la nos fundamentos bíblicos. Daí retorna-se à economia moderna, com outra perspectiva e questionamentos, que a “ciência dos mercados” não pode resolver enquanto tal.

 

A meu ver, a melhor porta da entrada para entender a “economia na perspectiva da esperança” é o Gênesis no seu conhecidíssimo capítulo 1º. A metáfora dos seis dias da criação do mundo, onde nos primeiros dias são criados os vários componentes do mundo físico (luz, firmamento, mares, constelações, água, a relva etc.), para em seguida aparecerem os animais, em ordem de complexidade - répteis, peixes, feras etc. -, e, finalmente, no sexto e último dia, o homem e a mulher serem criados à imagem e semelhança de Deus.  A estes foi ordenado crescer e multiplicar, dominando toda criação, mas com uma mensagem implícita – que se o fizesse como seres criados à imagem e semelhança do Criador.

 

Observe-se que todos os seres criados até o 5º dia se reproduzem naturalmente – com os dons da natureza que lhes são transmitidos biologicamente.  Mas somente à criatura humana é conferida a tarefa de produzir e reproduzir os próprios meios de subsistência, o “habitat”, a locomoção etc. Porque somente e este ser é conferida capacidade de agir (e por extensão de trabalhar), a consciência de si, do mundo e a liberdade para agir.

 

Traduzindo a ordem primitiva do Gênesis em linguagem moderna, a economia humana tem o sentido de atender às necessidades básicas de reprodução da espécie humana, como seres dotados de capacidade e liberdade de agir. Não são apenas as necessidades biológicas que demandam uma “economia na perspectiva de esperança”. Fora este o Projeto do Gênesis, ficaria o ser humano reduzido às criaturas geradas no 5º dia (répteis,peixes e feras). O diferencial aqui é a capacidade de agir e a liberdade de ser agente, como ser assim criado. 

 

Essas idéias, de inspiração bíblica, estão hoje presentes na economia, apesar da enorme resistência dos “fundamentalistas”. As “necessidades humanas básicas”, no conceito acima enunciado, são princípio ultra-relevante na teoria do Estado do bem estar. Por sua vez, a tese do desenvolvimento (econômico) como liberdade já foi objeto até de um Prêmio Nobel de Economia (Amartya Sem). Por último, as novas influências da ecologia, da sustentabilidade ambiental e dos direitos sociais  na cultura contemporânea afetarão certamente a economia política do século 21, com evidentes apelos a uma perspectiva bíblica da esperança.

 

Mas não nos iludamos, a economia clássica e neoclássica, a chamada ciência da escassez, já anunciada no Apocalipse (6,5), continua hegemônica no sistema de valores da nossa sociedade, com todas as suas conseqüências apocalípticas.  Haveremos de mudar esses valores por caminhos “extra-econômicos” para, a partir da mudança cultural, criar as bases de um pós-capitalismo.

 

Finalmente, precisamos ter clareza de que os temas “extra-econômicos” supracitados já foram inseridos nas agendas das mudanças dos séculos 20 e 21. Eles podem abrir perspectivas de uma nova economia política, se forem capazes de demolir por dentro o edifício teórico-ideológico, erigido pelos teólogos fundadores da “ciência da mercadoria”. Isto evidentemente não significa abolir os mercados, que são instituições historicamente muito anteriores ao capitalismo; mas emprestar-lhes um novo significado, para atender a necessidades humanas básicas, que de fato nos permitam transitar do estado de necessidade para o estado de liberdade.

 

Guilherme C. Delgado, economista do IPEA, é membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

 

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