Correio da Cidadania

Retrospectiva 2015

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Escrever sobre a retrospectiva econômica de um ano de crises nos campos econômico, social e principalmente político desafia-nos desde logo a buscar o sentido das coisas e das relações sociais, precisamente quando essas parecem perder todo o sentido. Isto porque, sem essa perquirição, a análise das crises vira um descrever infindável de fenômenos de uma certa “fracassomania” nacional, ao gosto de uma orquestração conservadora, que a opera com propósitos ocultos, para atingir determinados objetivos de dominação. Precisamos elencar os fatos significativos do ano sob análise, para interpretá-los, mais além da empiria positivista econômica.

 

Os fatos econômicos mais significativos de 2015 refletem a incerteza dura que se apossou do ambiente econômico e se materializam em um movimento grave de retrocesso da produção e do emprego, afetando praticamente todo o sistema econômico. Em termos quantitativos, geram um decréscimo do Produto Interno Bruto no entorno de 3% e uma queda acentuada no nível de emprego formal, com demissões líquidas acima de 1 milhão de trabalhadores formais (fonte CAGED), com maior destaque para as atividades da “Construção Civil”.

 

À recessão econômica associam-se também, ainda que com certa autonomia, dois outros fenômenos que a agravam:

 

a) uma forte retração na arrecadação tributária e previdenciária da União (ao redor de 4 pontos percentuais negativos, em termos reais, no primeiro semestre), parcialmente gerada pela própria política econômica do “ajuste fiscal”;

 

b) uma igualmente forte retração de comércio externo, principalmente das importações, mas também com queda nas exportações totais, que continuam a depender majoritariamente das “commodities” em queda. Os saldos de comércio de 2015 serão maiores que em 2014, não pelo efeito de expansão da demanda interna, que se contraiu, mas pela abrupta queda das importações (menos 27% com relação a 2014).

 

Por outro lado, há outra faceta da economia em situação crítica, pouco comentada pela análise econômica convencional, qual seja, a luta pela apropriação do excedente econômico atual e futuro e das formas de riqueza que levam a essa apropriação.

 

Neste ano de 2015, não obstante todas as operações de contenção no Orçamento Fiscal e da Seguridade Social, houve duas notórias exceções: o crescimento sem precedente da despesa financeira da União, que o Banco Central divulgou em setembro como sendo de 8,9% do PIB (510,6 bilhões de reais), ao que se deve acrescer 0,45% do PIB (25,7 bilhões de reais) de “déficit” primário, totalizando um déficit nominal (primário + financeiro) de 9,34% (536 bilhões de reais) do Produto Interno Bruto.

 

Observe o leitor que de 2014 a 2015 o déficit nominal pula de menos de 5 pontos percentuais do PIB para mais de 9, impelido pela despesa financeira, que praticamente dobra de 4,5% para 9 pontos percentuais do PIB, verdadeira caixa preta, que não desperta a menor curiosidade midiática para dissecá-la. Aí entram juros, subsídios, equalizações de juros, presentes de correção cambial, denominados “swaps” (custaram 124 bilhões em 2015), repactuações de dívidas com seus custos implícitos remetidos ao Tesouro etc.

 

Mas isto está fora da discussão do “ajuste fiscal” e também fora do controle e conhecimento públicos, não obstante incremente a dívida pública interna em 2015 em valor equivalente a mais de metade de toda a receita tributária da União.

 

Outro setor fortemente protegido da crise econômica em 2015 é a chamada economia do agronegócio, acrescida de uma irmã siamesa – a economia da mineração. Congresso e Executivo trabalharam de forma convergente para protegê-las da desvalorização das “commodities” agrícolas e minerais, cacifando renda e riqueza fundiária, mesmo quando o mercado lhes é adverso. No caso dos minerais, temos o exemplo da pauta congressual perseguindo terras indígenas (PEC 215/2000) e elaborando um Código de Mineração à imagem e semelhança dos interesses do grande capital, para citar dois exemplos mais notórios.

 

E no caso das commodities agrícolas, a prodigalidade dos recursos e dos subsídios do Plano de Safra 2015-2016, não obstante restrições gerais. Observe o leitor que o custo financeiro dessa política significa subsídios, “equalização” e “repactuações”, de evidentes consequências sobre a despesa financeira e a dívida pública. Mas como isto é debate de apropriação do excedente e das formas de riqueza privada às expensas da dívida pública, passa como se fora algo “natural”.

 

Finalmente, se a economia não cresce, e os detentores da riqueza financeira apresentam no formato de “despesa financeira pública”, no final do ano, uma fatura de 9% do PIB, essa fatura é imediatamente convertida em mais dívida pública, a comprometer os futuros exercícios fiscais.

 

O PMDB (no Documento “Uma Ponte para o Futuro”) nos lembra que essa fatura, que não precisaria ser conferida, deveria ser paga com os recursos que o constituinte de 1988 reservou para órfãos, viúvas, doentes e educandos (seguridade social e educação básica), quando propõe a desvinculação constitucional das verbas da educação e da saúde e a desconstitucionalização do piso dos benefícios de seguridade social pago pelo INSS.

 

Em síntese, a batalha da apropriação econômica, verdadeira luta de classe por dentro das normas de política econômica e da apropriação dos fundos públicos, como muito bem a caracterizou o sociólogo Francisco de Oliveira, existe claramente configurada, muito mais na crise econômica, quando a avidez da elite financeira vai aos limites da insensatez absoluta.

 

Essa verdadeira corrupção sistêmica escapa ao controle público, protegida por uma legalidade absurda – a despesa financeira arbitrada na relação promíscua do Banco Central e da Secretaria do Tesouro, que está imune à apreciação legislativa, caracterizada como “serviço da dívida” (art. 166, parágrafo 2, item II, b). Também opera o pacto do silêncio midiático sobre a natureza dessa despesa, suas determinações e destinações e, principalmente, as consequências distributivas que afetam poucas famílias – entre 10 a 20 mil, às expensas do conjunto da sociedade.

Guilherme Costa Delgado é doutor em economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

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