Correio da Cidadania

A aproximação Trump-Putin e a paz

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Com o fim da Guerra Fria, em 1991, a OTAN perdeu sua função original. Fora criada em 1949, para dar segurança aos países europeus diante do expansionismo soviético. Como a União Soviética fora dissolvida, com seu desmembramento em muitas nações, nenhuma delas comunista, desaparecia a razão de ser da OTAN.

 

Ainda mais porque a Rússia, a maior dessas nações, proibira o Partido Comunista local e iniciava uma transição para um regime de economia de mercado. Não era nem de longe uma ameaça para os países europeus que formavam a OTAN, sob o guarda-chuva protetor dos EUA. Os russos é que estavam assustados diante do poderio da OTAN.

 

Por isso mesmo, nas negociações da reunificação da Alemanha, o então presidente Gorbachev disse ao secretário de Estado dos EUA, James Baker: “você diz que a OTAN não é dirigida contra nós, que é apenas uma estrutura de segurança que está se adaptando às novas realidades.... Portanto, nós nos propomos a entrar na OTAN”. Baker deu uma risada e classificou a proposta do russo como “um sonho”. Se a Rússia entrasse na OTAN, a OTAN iria proteger a Europa do que?

 

Embora não mais ameaçassem ninguém, os russos jamais aceitariam a hegemonia norte-americana na Europa, da qual a OTAN era um instrumento. Era a visão da diplomacia estadunidense. Moscou seria sempre um estranho no ninho da OTAN, naquele tempo boazinha, mas futuramente uma “trouble-maker” (criadora de casos) indesejável.

 

Em 2002, o “tratamento de choque” do presidente Boris Iéltsin para acelerar a passagem da Rússia para um regime capitalista-democrático estava em marcha, privatizando em massa as empresas estatais em benefício de alguns grupos econômicos e levando a economia do país a um colapso.

 

Nem querendo os russos tinham como ameaçar a Europa. E eles não queriam, o governo Iéltsin era um aliado fraternal dos EUA. Foi possível, então, criar um Conselho OTAN-Rússia para tratar de assuntos de segurança e projetos de cooperação entre as duas entidades, envolvendo “consultas para construção de consensos, decisões e ações conjuntas”.

 

Expandiram-se assim acordos e ações conjuntas em diversos temas como guerra ao terrorismo, colaboração no Afeganistão, cooperação industrial e militar, entre muitas áreas.

 

Essa lua de mel durou até a ascensão ao poder de Vladmir Putin. Como primeiro-ministro e presidente da Rússia, Putin impôs duras medidas econômicas e políticas que recuperaram a economia russa. Sua visão da Rússia como um país forte, ator de destaque na política internacional, o fez chocar-se com os interesses dos EUA.

 

A partir de 2009, com a expulsão de dois diplomatas russos acusados de espionagem, as relações entre Moscou e os EUA foram se endurecendo gradativamente. Hoje elas estão no seu pior nível desde o início da Guerra Fria, havendo um profundo conflito de interesses entre as duas nações na Ucrânia e na Guerra da Síria.

 

Os EUA participaram ativamente da revolução que derrubou o regime pró-Rússia da Ucrânia, ação considerada por George Friedman, presidente do respeitado think-tank Stratfor, como “o mais clamoroso golpe da história”. Os russos reagiram, estimulando a secessão do leste ucraniano (de maioria russa) e anexando a Criméia, fato referendado pela população local, majoritariamente russa.

 

Foi o que bastou para os EUA anunciarem que o governo do voraz Putin precisava ser detido. Caso contrário, ele iria se expandir, de olho na Ucrânia, nos países Bálticos, Polônia, Romênia e outros países ex-coadjuvantes do establishment soviético.

 

Os membros europeus da OTAN foram mobilizados para, ao lado dos EUA, enviarem tropas para reforçar as fronteiras dos países “do bem” com a Rússia. Jogos de guerra foram realizados com de grandes contingentes militares. Putin reagiu fazendo o mesmo, o que pôs mais lenha na fogueira.

 

Um número cada vez maior de soldados dos dois lados está se confrontando, muito próximos entre si. São 300 mil só da OTAN. Cada vez maiores são as chances de uma decisão inadvertida provocar um choque militar, que poderá detonar um conflito guerreiro de proporções mundiais. Na Guerra da Síria, uma situação análoga se repete.

 

A Rússia apoia o regime Assad, bombardeando os rebeldes, cujos grupos moderados são apoiados pelos EUA, com armas, munições e treinamento.

 

Os EUA protestam contra esses ataques e Moscou se justifica, afirmando que seu objetivo é destruir os terroristas. Como eles combatem misturados aos moderados, não há como evitar que as bombas caiam também sobre os aliados de Tio Sam.

 

Nos EUA, fala-se muito em se criar uma no-fly zone, onde só civis poderiam permanecer. A ideia é combatida por alguns chefes militares norte-americanos de peso, sob alegação de que fatalmente provocaria um choque entre aviões russos e estadunidenses, criando uma situação de resultados imprevisíveis.

 

Mas a pressão pela no-fly zone continua forte. O aquecimento desta nova Guerra Fria, tanto no quadro conflituoso do leste europeu quanto na Guerra da Síria, pode ser evitado caso Trump faça as pazes com a Rússia. Durante a campanha eleitoral, ele falou várias vezes que pretendia melhorar as relações com os russos.

 

Expressou de forma clara que achava indesejável a hostilidade atual de Washington em relação à Rússia, inclusive por se tratar de um país com grandes recursos militares nucleares.

 

A possível aproximação com a Rússia está assustando alguns países da OTAN, que se veem abandonados pelo novo governo dos EUA nas garras do feroz Putin.

 

De fato, durante a campanha eleitoral Trump fez ameaças até que concretas: “ei, aliados da OTAN, se nós não formos reembolsados pelos tremendos custos de proteger vocês, eu lhes direi ‘parabéns’ e vocês terão de se defender por conta própria”. É de se crer que Trump não cogita a hipótese, que seria o fim da OTAN.

 

O que ele pretende é amedrontar os amigos europeus para que tratem de aumentar suas contribuições financeiras ao organismo. Não quer que os EUA tenham de continuar arcando com 70% das receitas da entidade.

 

Reduzir as despesas no exterior é necessário para os EUA disporem de recursos para financiar os ambiciosos planos econômicos de Trump.

 

Parece que a tática está dando certo. O general Stoltemberg, comandante das forças da OTAN, apressou-se a ligar para o novo presidente e garantir que os países europeus irão cumprir suas cotas, participando de uma forma mais justa nas despesas da Defesa.

 

Uma aproximação entre Trump e Putin será incompatível com o status atual de agressividade entre a Rússia e a OTAN. A desmobilização das forças da OTAN e da Rússia, que atualmente se encaram nas fronteiras do leste, seria fatal. Um acordo EUA-Rússia para por fim à guerra da Síria e unir os dois países na guerra contra o Estado Islâmico também pinta como consequência da aproximação. Ela parece se esboçar como provável.

 

Putin e Trump mantiveram uma longa conversa telefônica no dia 14 de novembro. Segundo informações de autoridades de Washington e Moscou, os dois estadistas concordaram na necessidade de resolver as hoje “extremamente insatisfatórias” relações russo-americanas. E combinaram uma reunião pessoal para, em conjunto, discutirem a normalização dos laços entre as duas potências.

 

De acordo com o Kremlin, ambos acertaram a realização de um diálogo “na base da igualdade, respeito mútuo e não-intervenção nos assuntos domésticos de cada país”. Mas não se pense que a paz entre as duas grandes potências seja favas contadas.

 

Desde que há alguns anos Putin começou a por areia na engrenagem da política internacional norte-americana, ele passou a ser demonizado pelos órgãos de comunicação dos EUA e os políticos dos dois partidos. Como essa máquina costuma funcionar bem, o público, segundo pesquisas de meses atrás, teria sido atingido eficazmente.

 

Talvez não seja bem assim. Apesar de a propaganda de Hillary ter batido até cansar na suposta interferência russa nas eleições em favor de Trump, apresentando Putin como a aranha mestra dessa sinistra teia, a verdade é que o republicano venceu, o que deixa dúvidas sobre a imagem do presidente da Rússia nos EUA.

 

No entanto, as manifestações dos companheiros de partido de Trump quanto à Rússia e seu chefe são invariavelmente negativas. Somos levados a acreditar que representam a opinião republicana, quando na verdade partem de alguns mesmos políticos, líderes do war party (facção pró-guerras). Esse pessoal já está gritando que Trump não pode baixar a guarda diante de Putin.

 

Por outro lado, há dúvidas sobre a real posição da maioria silenciosa do Partido Republicano. Reagiriam mal caso Trump levasse adiante sua confraternização com Putin, fazendo concessões para conseguir a paz na Síria e a pacificação entre Rússia e OTAN?

 

Preocupam as quatro primeiras escolhas do novo presidente. Os homens nomeados para estrategista-mor, procurador-chefe e diretor da CIA são o que há de mais retrógado nos EUA, claramente vinculados ao racismo, xenofobia, perseguição aos imigrantes e à manutenção da Guerra Fria. O quarto, o general Flynn, é uma figura misteriosa, cujas posições em política externa são muitas vezes contraditórias.

 

Some-se a isso a postura da maioria dos altos oficiais, que parecem pensar que a União Soviética ainda existe, já que alguns dos mais importantes, em reunião, classificaram a Rússia como o inimigo número 1 dos EUA, com quem Tio Sam tem mais chances de travar guerra. Contra a pressão de todos estes grupos antiamizade com Moscou pesa a vontade de Trump, seu voluntarismo evidente quando prega ideias que provocam vômitos no establishment atual.

 

Ela parece ser mesmo favorável à normalização das relações com Moscou. Marcou essa postura ao visitar Henry Kissinger e proclamar: “eu tenho tremendo respeito por Kissinger e gostarei muito se ele partilhar seus pensamentos comigo”.

 

Ora, Kissinger, ex-secretário de Estado de Nixon, é reconhecidamente um notório pragmático, cuja atuação não costumava ser pautada por princípios, mas pelo que considerava interesses de Tio Sam.

 

Coerente, ele foi a extremos: apoiou decididamente o golpe militar argentino e as violências do governo ditatorial, mas, em compensação, também foi o principal responsável no Gabinete Nixon pelo fim da Guerra do Vietnã.

 

Para o governo Trump, entrar num acordo com Putin na Síria e na Ucrânia parece essencial, assim como encerrar o ciclo de intervenções militares no exterior.

 

Além de serem objetivos bem vistos pelo povo, trarão uma grande redução nos imensos gastos militares que causam. As guerras do Iraque, do Afeganistão, da Síria e do Iêmen sangraram e continuam sangrando os orçamentos dos EUA, quer por sua participação direta, quer fornecendo armamentos, munições e treinamento.

 

Somente a Guerra do Iraque custou mais de 2 trilhões de dólares. E a Guerra do Afeganistão custa atualmente (com o exército reduzido a 10 mil homens) 4 milhões de dólares por hora (números de estudo do Instituto Watson, da Universidade Brown).

 

Para realizar seu programas de proteção e incremento às empresas norte-americanas e ganho de 25 milhões de empregos, Trump vai precisar de muito dinheiro, não pode continuar esbanjando em ações militares inúteis. Ainda mais porque haverá uma grande diminuição de receitas com a prometida redução de impostos de todos os cidadãos.

 

Se lembrarmos que o déficit nacional dos EUA corresponde a 104.17 % do seu PIB, ou $19,2 trilhões de dólares, dá para avaliar o quanto a paz nas guerras regionais é necessária para o Tesouro ter bala para financiar os planos de Trump.

 

E paz sem Rússia não passará de uma miragem.

 

 

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Luiz Eça é jornalista.

Website: Olhar o mundo.

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