59 mísseis contra a paz
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- Luiz Eça
- 14/04/2017
Mesmo depois do secretário da Defesa, Rex Tillerson, ter declarado que afastar Assad não era mais prioridade dos EUA, deixando o futuro do líder sírio por conta do povo, oficiais estadunidenses continuavam defendendo a queda do presidente.
Como se a fala de Tillerson não tivesse acontecido, Tio Sam voltara a fornecer armamentos aos rebeldes, segundo representantes dos inimigos do regime sírio.
Tudo indica que a surpreendente virada norte-americana, com aceitação de Assad, teria sido mal recebida por generais e políticos de peso nos EUA, forçando Trump a dar o dito por não dito.
Foi quando, em 3 de abril, a cidade de Kham Sheikhoun sofreu um ataque aéreo com gás, que causou a terrível morte de 80 pessoas aproximadamente, inclusive crianças, além de muitos feridos.
A denúncia de que o autor dessa atrocidade fora o governo Assad foi encampada de imediato pela mídia internacional e pelos líderes do Ocidente.
Por que Assad faria isso?
Não se deu importância ao fato de as informações terem partido de grupos rebeldes, que controlavam Kham Sheikhoun, e do Observatório dos Direitos Humanos – ONG com sede em Londres – cujo diretor, Rami Abdulrahman, é um notório inimigo do regime sírio.
Trump foi o mais exaltado na demonização de Assad, clamando que os EUA voltavam a lhe negar o direito de governar seu país. Explicou que mudara sua posição anterior depois de ver as trágicas fotos de crianças vitimadas pelo gás.
Na verdade, isso aconteceu antes, o que se prova pelo retorno do fornecimento de armas aos rebeldes pela CIA e as declarações anti-Assad de oficiais, quando ainda ecoava a fala de Tillerson, atribuindo o futuro do presidente sírio à vontade do seu povo.
A Rússia contestou a acusação ocidental, alegando que o gás se originara de um vazamento, durante ataque de aviões sírios contra um armazém usado por terroristas para fabricar e estocar gases venenosos. Uma seleção de experts, ligados a instituições pró-Ocidente, desmentiu os russos.
Enquanto a mídia espalhava pelo mundo a narração de mais essa brutalidade de Assad, no Conselho de Segurança da ONU, os EUA, Reino Unido e França apresentavam proposta de resolução e pediam uma rigorosa investigação, que, aliás, nada teria de imparcial. Buscava exclusivamente evidências das culpas da aviação síria, tais como horários das decolagens e aterrissagens dos aviões da base donde partira o ataque, relação dos pilotos, planos de voos, testemunhos de pessoal da base e das redondezas etc.
A versão russa fora totalmente ignorada. Estranho, pois seria fácil provar sua verossimilhança ou falsidade: bastava investigar o depósito onde os sírios afirmavam que os gases venenosos estavam sendo fabricados e estocados.
Por mais arrasador que tenha sido o bombardeio, os possíveis vestígios levariam muito tempo para desaparecerem.
Como era óbvio, os russos e chineses vetaram a resolução ocidental. No dia seguinte, em reunião conjunta com a ONU, o diretor da Organização Pela Proibição das Armas Químicas anunciou que sua entidade vinha reunindo e analisando informações de todas as fontes disponíveis e estaria preparada para enviar uma equipe para investigar o ataque o mais cedo possível.
Não deu tempo, os EUA optaram pela sentença antes da investigação dos fatos. Na madrugada do dia 7 de abril, 59 mísseis Tomahawk foram disparados contra a base aérea de Shayrat, donde teria partido o suposto ataque a gás.
Os danos materiais causados foram pesados, morreram seis pessoas, segundo os EUA, nove civis e quatro militares, segundo a Síria.
Trump imediatamente trombeteou: que isso sirva de aviso, nova delinquência do regime Assad será duramente punida.
Nikki Haley, a fogosa embaixadora dos EUA na ONU, doutrinou que como a ONU vinha “consistentemente” falhando em agir contra Assad, os países poderiam atuar unilateralmente sem a autorização da entidade global.
Tillerson foi mais longe: ele confirmou afirmações de oficiais de que os EUA estavam considerando a ideia de remover Assad do poder.
Os congressistas do war party (partido da guerra) aplaudiram ruidosamente. A belicosa Hillary Clinton juntou-se a eles, porém, queria mais, que todas as 26 bases aéreas sírias fossem bombardeadas.
No entanto, muitos congressistas protestaram, a maioria sob o fundamento de que sendo o ataque dos mísseis um “ato de guerra”, precisaria ser previamente aprovado pelo legislativo. Vários outros também condenaram a falta de investigação.
Por sua vez, Philip Giraldi, ex-membro da CIA e diretor do Conselho Pelo Interesse Nacional informou, no The Libertarian, de 7 de março, que militares e pessoas intimamente familiarizadas com a Inteligência dos EUA endossavam a versão de que foi o vazamento de gases venenosos armazenados em depósito bombardeados pelos sírios que causou a tragédia.
As fontes de inteligência de Giraldi declararam-se estarrecidas com as acusações falsas da imprensa e do governo norte-americano.
Como se esperava, as condenações da Síria, Irã e Rússia foram veementes: o ataque estadunidense seria uma violação da soberania síria e, portanto, das leis internacionais.
Não deixa de ser verdade, mas não foi a primeira vez, nem será a última, que os EUA incidiram nesse delito. Vide a invasão e ocupação do Iraque.
Giraldi pode não estar correto
Há uma objeção que soa melhor: depois da tomar Aleppo, as forças do regime de Damasco estavam ganhando todas e se aproximavam de uma vitória final. Talvez por isso, o governo de Washington, pela voz de Tillerson, desistira de exigir a queda de Assad, embora houvesse alguns sinais de que essa posição poderia mudar.
Por que arriscar esse quadro altamente favorável com um ataque que indignaria o mundo e forçaria os EUA a uma retaliação? A ideia de que Assad pretendia humilhar os EUA, mostrando que podia fazer o que quisesse, é inconsistente. Afinal, o líder sírio nunca demonstrou ter um QI inferior ao normal...
Peter Ford, ex-embaixador do Reino Unido na Síria (2003-2006), concorda no Middle East Eye, de 7 de abril: “Assad não é louco e saberia que quando Donald Trump estende um ramo de oliveira para ele, qualquer uso de armas químicas seria contraproducente”.
Robert Parry, em Consortium News, sugere um lance estilo Wag the Dog. Nesse filme, um presidente norte-americano vê sua reeleição ameaçada por ter assediado uma jovem nos jardins da Casa Branca. Para que o público esqueça o escândalo, um produtor de cinema (vivido por Dustin Hoffman) inventa uma guerra contra a Albânia. Enganado pela farsa, o patriótico povo esquece as diabruras presidenciais e passa a vibrar com a falsa guerra. E reelege o presidente.
Como às vezes a vida imita o Cinema, em 1998 o presidente Bill Clinton talvez tenha se inspirado no filme: para desviar a atenção do povo, chocado com suas aventuras sexuais com a garota Lewinski, lançou 75 mísseis contra uma fábrica de artigos farmacêuticos no Sudão, depois de acusá-la de produzir bombas químicas.
Agora, em 2017, Trump vê-se em maus lençóis com o escândalo da suposta espionagem dos hackers russos dos computadores da campanha presidencial de Hillary Clinton. O ataque a gás em Khan Sheikhoun teria caído do céu. Assumindo o papel de justiceiro, The Donald ordena o lançamento de 59 mísseis contra base aérea síria. Em seguida, apresenta-se no papel de machão, ameaçando Assad com os raios de Zeus.
O povo esquece os russos e, tomado de ardor patriótico, aclama seu presidente, que mostrou como os EUA são fogo. E Trump ganha alguns pontos nas pesquisas. Pode ser exagero, mas fato é que, planejado ou não, o enredo parece plausível.
Como Trump, os rebeldes sírios também saíram ganhando no episódio. Graças à grande mídia, Assad ficou marcado como um bad guy, capaz de usar as mais sinistras armas contra indefesos civis. Aqueles que querem depô-lo, numa lógica dos westerns de Hollywood, são necessariamente good guys, merecedores do apoio de todos.
Triste é ver a ONU mais uma vez desmoralizada. Ela sempre teve como proposta fundamental usar o multilateralismo para resolver conflitos entre nações. Tem de ser assim, sinal verde para que Estados ajam militarmente de forma unilateral pode levar o caos à ordem internacional. Mais uma vez os EUA violaram essa regra. E, infelizmente, a ONU não tem como aplicar sanções à nação mais poderosa do globo.
Putin também perde
A reação russa, reforçar as defesas das instalações militares na Síria, é muito pouco. Cancelar o acordo com os norte-americanos para evitar choques entre os aviões dos dois países é uma atitude irresponsável, que se espera revogada em breve.
O mais grave é que os mísseis detonaram por muito tempo os esforços para que EUA e Rússia chegassem a um convívio, se não amigável, pelo menos civilizado. Que daria uma chance à paz na Síria.
As repetidas acusações do trio Trump-Tillerson-Nikki Haley de cumplicidade russa ou mesmo coparticipação no suposto ataque a gás pioraram ainda mais as imagens da Rússia e de Putin nos EUA e países de sua órbita.
Se ação de Trump foi aplaudida pela população, de outro lado enfureceu o povo russo. A hostilidade entre as duas nações pode degenerar em algo muito pior nos fronts da Ucrânia, Síria e dos países da OTAN. O primeiro-ministro Medvedev escreveu na mídia social que o ataque dos EUA chegou a um passo da confrontação militar com a Rússia.
Alguns dias atrás, um repórter perguntou ao influente senador republicano, John McCain: “a situação tensa entre Rússia e EUA não poderia levar a uma guerra?” McCain respondeu: “nós venceremos uma guerra com a Rússia porque somos mais fortes”.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.