Arábia Saudita mostra as garras
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- Luiz Eça
- 13/06/2017
Na retumbante visita de Trump a Riad, festejada por 50 chefes islâmicos, The Donald os conclamou para que se unissem à Arábia Saudita numa guerra ao Estado Islâmico, à al-Qaeda e ao Irã, seu patrocinador, segundo o presidente. Com essa os sauditas se sentiram fortalecidos para acertar as contas com o insubmisso Catar.
Desde a Primavera Árabe, em 2014, o Catar era uma pedra no sapato, quer dizer, na sandália, dos potentados do reino. Sob o governo do emir Tamin, o pequeno país vinha se descolando gradativamente do rebanho dos países do Conselho Comunitário do Golfo (CCG), controlado pela Arábia Saudita e integrado pelos Emirados Unidos, Bahrain, Kuwait e o às vezes recalcitrante Sultanato do Omã, além do rebelde Catar.
O pretexto estava pronto. Hackers misteriosos tinham entrado nos computadores de agência de notícias do Catar, informando que o emir Tamin havia criticado as políticas da Arábia Saudita e dos Emirados e, pior, elogiado o Irã.
Tamin logo desmentiu. Mas a imprensa saudita e a dos Emirados, ambas estatais, reafirmaram que tudo era verdade.
Aproveitando o clima adverso ao Catar que se criou nos demais países do CCG (Conselho de Coordenação do Golfo), os sauditas, aliados aos Emirados, ao Bahrein, ao Egito, ao Iêmen e às minúsculas ilhas Maldivas, romperam todas as relações com o Catar.
Os motivos seriam sérios. Tratar-se-ia de proteger a segurança nacional desses países contra as ameaças do terrorismo e do extremismo, presumivelmente financiados e animados pelo Catar, através de umas ditas ações e atitudes deste, tais como: o apoio financeiro à al Qaeda e ao EI nas guerras da Síria; o abrigo aos dirigentes do Hamas e da Irmandade Muçulmana e a aliança com esses grupos que Riad considera terroristas; o apoio aos houthis, também soi disant terroristas, na guerra do Iêmen; o apoio às atividades do Irã no estímulo a agitações xiitas na Arábia Saudita e no Bahrein, violando a soberania desses países; o patrocínio de uma imprensa (Al-Jazeera) que distorceria os fatos para jogar os árabes do CCG contra seus governantes.
Desta lista impressionante de acusações apenas duas têm algum sentido. O Catar realmente abriga e prestigia a Irmandade Muçulmana e o Hamas. Ele valoriza sua amizade com a Irmandade, movimento influente na maioria dos países islâmicos.
E daí?
A Irmandade nada tem de terrorista, conforme investigação liderada pelo embaixador do Reino Unido em Riad, sir John Jenkins (Newsmax – 7 de abril de 2017). Já o Hamas abandonou oficialmente o terrorismo em 2009, além de ser o governo legal da Faixa de Gaza, depois de uma eleição democrática.
A montagem da trama
A
Al-Jazeera, por sinal patrocinada pelo Estado catariano, é um orgulho nacional por ser respeitada no exterior, devido à sua retidão e qualidade profissionais.
De fato, o Catar tem enviado muito dinheiro e armas para o Al-Nusra, milícia aliada à Al-Qaeda na guerra da Síria. Os sauditas não podem reclamar, já que também financiam diversos grupos jihadistas, inclusive a própria al-Qaeda.
Quanto ao EI, não há provas de espécie alguma de que o Catar tenha esparzido benesses entre os bárbaros radicais.
Já o reino... Convém não esquecer o que o volúvel Trump declarou em 2014: “a Arábia Saudita já está pagando ao Estado Islâmico”.
O Catar tem relações normais com o Irã, contra o qual não há evidências de que conspire com os xiitas sauditas e bareinitas para desestabilizarem os governos das duas monarquias. Catar e Irã operam em conjunto o maior campo de gás do mundo. O governo Tamin também se aproximou de Moscou, injetando 2,1 bilhões de dólares na Russnet, para construção de um oleoduto que levará gás russo e catariano à Europa, passando pela Turquia.
Dizer que o Catar apoia os houthis (que, aliás, não são terroristas) é a chamada mentira deslavada já que até o presente rompimento de relações mil soldados do Catar participavam da coalizão, liderada por Riad, na luta contra os houthis.
As verdadeiras causas são outras. Afirmam certos analistas, o rei Salman estaria de olho nas imensas reservas de gás dos catarianos. Apossar-se delas seria uma solução para resolver a grande carência de gás da Arábia Saudita.
Pode ser, não é certo. O certo é que os reis do petróleo projetam impor sua hegemonia, não só nos países do Golfo Pérsico como também em todo o Oriente Médio (exceção de Israel, é claro).
Os EUA apoiam integralmente. Os sauditas são preciosos aliados. Na política internacional, Washington conta com eles e seu rebanho do CCG para estarem sempre prontos a atender à voz de comando norte-americana. E seguem sendo os maiores compradores de armamentos dos EUA para felicidade perene das indústrias do setor.
Daí a necessidade de enquadrar o Catar, forçá-lo a permanecer no rebanho, como uma ovelha fiel.
A trapalhada de Trump
O governo do emir Tamin anda saindo do script. Ele vem formatando uma política independente, voltada pragmaticamente aos interesses nacionais, um tanto contrários aos dos seus vizinhos do Golfo Pérsico.
Dá para ser considerado um estranho no ninho do CCG. É verdade que foi sempre aliado dos EUA, que tem no Catar sua maior base aérea no Oriente Médio, com 11 mil soldados, de onde, frequentemente, partem aviões para atacar o Estado Islâmico.
Junto com o governo de Riad, o Catar fornece armas e dinheiro aos rebeldes sírios, além de manter as já citadas forças militares lideradas pelo reino na invasão do Iêmen.
O chato é que o Catar insiste em preservar sua independência, mesmo quando não convém aos interesses da Arábia Saudita e dos seus parceiros do Golfo.
Como ter boas relações com o Irã se este é o principal inimigo dos sauditas, com eles travando uma guerra não muito fria para conquistar o apoio da maioria dos países do Oriente Médio. E mais, o Irã é xiita, versão do Islã que se contrapõe ao sunismo wahabita, religião oficial da Arábia Saudita e dos seus países vassalos.
Acontece que a Arábia Saudita, seus parceiros do Golfo e o Egito tem velhas e profundas queixas da Irmandade Muçulmana, do Hamas, do Irã e da Al-Jazeera.
A Irmandade Muçulmana é a única força política capaz de enfrentar a ditadura militar egípcia. Por isso mesmo foi perseguida como terrorista, tendo as forças de segurança prendido, matado, torturado ou condenado a penas draconianas milhares de membros da Irmandade. O Egito a quer liquidada em todos os países árabes, onde permanece, temendo que voltem a lutar pelo poder na terra dos faraós.
A Arábia Saudita e o Bahrein tem um velho feudo com a Irmandade, pelo papel na liderança da Primavera Árabe, a qual foi vista como uma demoníaca ameaça às monarquias-ditaduras do Golfo.
Quanto ao Hamas, a realeza do Golfo Pérsico vê com profunda apreensão suas ideias revolucionárias nos conflitos com Israel. Não excluem que seus súditos possam ser contaminados. Some-se o fato de que o Hamas se originou da odiada Irmandade Muçulmana (já se desligou dela).
A Al-Jazeera é uma bête noire, divulgando e criticando as violações dos direitos humanos praticadas por esses dignos senhores, donos das terras de petróleo da Península Arábica.
Já o Irã, é o próprio demônio. Obediente aos mandamentos da “heresia xiita”, ele faz mais do que se opor à doutrina sunita-wahabita dos sauditas e dos países do seu rebanho: estaria promovendo atordoantes manifestações através das minorias xiitas, pondo em risco a segurança da Arábia Saudita.
Mais graves, pois os sauditas-xiitas habitam importantes regiões petrolíferas e no Bahrein constituem a maioria da população, exatamente os mais pobres.
As reações do corte de relações com o Irã foram, desde a crítica condenatória da Turquia, até o apoio da Jordânia, do Senegal e da Mauritânia (todos dependentes do ouro de Riad), passando pelo apelo a negociações de paz de países europeus, latino-americanos, da Rússia e, surpreendentemente, Irã.
Para o bloco saudita, o que pesou mais foi um tuíte do presidente Trump: “É tão bom ver que a visita à Arábia Saudita, com o rei e 50 países, já está dando lucro. Dizem que será (agora) muito difícil financiar o extremismo e que todas as referências apontam para o Catar. Talvez isso seja o começo do fim do horror do terrorismo”.
A cobiça saudita
Essa condenação pública do Catar e a glorificação do gesto da Arábia Saudita, feitas pelo presidente da maior nação do mundo, animaram a realeza saudita a ir mais longe no processo de forçar a submissão do Catar: lançou um ultimato, dando 24 horas para esse país atender a 10 exigências, deixando em suspense o que poderia acontecer, em caso de recusa.
Essas 10 demandas são tão radicais que, sendo aceitas, acabariam virtualmente com a independência catariana. Os insaciáveis sauditas exigiam que o Catar:
– cortasse todas as ligações diplomáticas, econômicas, políticas e culturais com o Irã;
– expulsasse do país todos os membros da Irmandade Muçulmanas e do Hamas, congelando todos os seus ativos bancários;
– jurasse que nunca mais tomaria qualquer atitude que contrariasse de qualquer forma as políticas do Conselho de Coordenação do Golfo (CCG).
Mais exatamente, do governo de Riad, que o controla. Nunca em tempo algum o Catar deveria deixar de perfilhar as posições da Arábia Saudita, mesmo que lhe fossem claramente prejudiciais;
– pedisse publicamente perdão ao grupo de países do Golfo pelos injustos e desagradáveis problemas que tem causado aos dignos príncipes que governam esses países;
– fechasse para sempre a rede Al-Jazeera, com seus jornais, sites, emissoras de TV e de rádio;
– expulsasse imediatamente do Catar todos os elementos vistos como hostis à Arábia Saudita e aos países liderados por ela;
Caso o emir Tamin se recusasse a aceitar estas e outras medidas menos significativas, bem... Isso Riad deixou em aberto, por enquanto, embora muitos analistas vissem como provável ameaça de invasão militar.
É um ultimato que lembra aquele que Hitler fez a então Tchecoslováquia antes da Segunda Guerra Mundial. O governo tcheco cedeu. E deu no que deu.
Como no caso dos tchecos, parece mínima a chance do pequeno Catar contra seu poderoso vizinho e os exércitos combinados dos seus algozes.
Gol contra
Só que esse pequeno país tem muito gás, sendo um dos maiores produtores do mundo.
É também riquíssimo, seu PIB médio ocupa o primeiro lugar no ranking mundial. Nesse quesito deixa longe os Emirados, a Arábia Saudita e até os EUA.
Em caso de invasão, seu exército será um osso duro de roer. Há muito tempo, o emir Tamin vem adquirindo grandes quantidades das mais modernas armas norte-americanas.
Contará ainda com a ajuda da Turquia, cujo parlamento já aprovou o envio de tropas para integrar-se na defesa do Catar.
Por certo, os iranianos e russos, estes últimos com importantes empreendimentos em conjunto com o Catar, não ficarão inertes.
Por fim, localiza-se no país a maior base aérea estadunidense do Oriente Médio, operada por 11 mil soldados. Pelas declarações de altos oficiais dos EUA, seus militares não estão nem de longe batendo palmas para as intenções beligerantes do governo de Riad.
Acho que eles foram surpreendidos pelas inesperadas declarações pró-sauditas e anti-Catar do presidente Trump.
Aliás, é de se crer que ele agiu num arroubo de gratidão pela espampanante recepção tributada pelo rei Salman a ele e família. Sentimento mesclado pelo orgulho de sua viagem a Riad ter sido altamente remunerada pela decisão dos sauditas, os good guys, de fazer entrar na linha os catarianos (que, na lógica norte-americana, seriam bad guys).
E Trump produziu aquele, digamos, estúpido tuíte, sem pensar. Como parece que habitualmente faz.
Não se deu conta de que ao qualificar o Catar como financiador do terrorismo, aplaudindo as ameaças sauditas, os EUA estavam abrindo mão de um precioso e fiel aliado, que hospedava uma base aérea imprescindível para os bombardeios dos territórios do Estado Islâmico.
É de se imaginar que os generais, que dão as cartas da política externa dos EUA, convergiram sobre Trump de dedo em riste, chamando-o à realidade. Pelo jeito, Trump cedeu.
Desatar os nós
Depois de aplaudir as formidáveis ameaças dos sauditas e afins, depois de xingar o emir Tamin de terrorista, ele esqueceu a tradicional dicotomia good guys x bad guys e ofereceu-se generosamente para hospedar os litigantes nos EUA, onde ele sabiamente mediaria a questão.
Tamin recusou na lata o ultimato saudita. Jamais abandonaria sua política independente. Quanto à oferta de Trump, também agradeceu, mas... Também não.
De fato. Quem, de bom senso, aceitaria mediação de alguém comprometido com o adversário?
Ressentido, Trump voltou à sua retórica do “bem” (os sauditas) contra o “mal” (os catarianos).
Possivelmente vai mudar de opinião novamente. Esse tipo de vaivém costuma ser normal em The Donald.
A pergunta que não quer calar é: e agora? Os analistas internacionais duvidam que o rei Salman se atreva a invadir o Catar, ainda mais porque Trump mostrou agora não ser de confiança. E seus generais não vão deixá-lo fazer uma besteira.
A estas alturas, Salman deve estar arrependido de ter aceitado os conselhos que devem ter partido do seu vice-herdeiro, o influente bin-Salman. Já que não pode vencer pela força bruta, só lhe restaria vencer o Catar pela fome. Afinal, o país quase não produz alimentos, 80% dos que consome vem da Arábia Saudita. E ela já bloqueou a remessa que estava a caminho.
Mas não daria certo, o Irã e a Turquia se prestaram a suprir esta carência do Catar, alimentos e água dos dois países podem chegar 24 horas depois de solicitados. E o Catar ainda tem reservas para dois meses.
Salman deve estar arrancando os cabelos, pensando como sair desta fria que ele próprio armou.
Como se não bastasse, o Omã, bom amigo do Irã, e o Kuwait, que mantém relações normais com Teerã, assustados com a feroz prepotência de Riad, temem que a vez deles possa chegar.
Podem já estar preparando seu desembarque do CCG, que, sem eles e sem o Catar, se transformará numa organização anódina.
Com a Arábia Saudita de mãos amarradas, não será espanto se o Catar, de repente, assumir posições mais significativas na arena internacional.
Claro, indo de um extremo para outro, Trump acabará tendo de fazer concessões para reter o país do gás como amigo, ainda que, eventualmente, tenha de engolir posições que o desagradem.