Correio da Cidadania

Reflexões sobre a pandemia (3)

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O ato de escrever me serve para organizar algumas ideias que serão desfeitas no momento seguinte. As questões que me chamam atenção neste momento são a atuação pirata dos EUA e a resiliência de Bolsonaro.

Globalmente, começamos a assistir uma nova forma de pirataria no terceiro milênio com a corrida estadunidense em busca de insumos como máscaras e respiradores para dar conta de sua situação como novo epicentro da pandemia COVID-19. Tendo a China como principal fornecedora, os EUA chegam ao ponto de interceptar cargas direcionadas a outros países, Brasil inclusive, bem como triplicar propostas para comprar insumos que estavam reservados a outros países.

Essa situação gera uma preocupação evidente de que não haverá insumos para prevenção e tratamento da pandemia para todos, sem falar na economia política que a COVID-19 promove, que tende a se concentrar na relação entre EUA e China, em prejuízo de outros países. Neste sentido, os EUA se transformam em piratas, predadores que, de certa forma, são reféns da China, sendo que esta é a que melhor lida com as consequências da crise.

Com isso, não estou nem me somando aos argumentos toscos de conspiração chinesa para propagação do vírus que toma a forma de narrativas disseminadas pelo bolsonarismo, muito menos endeusando a China como correta, apenas analiso os movimentos em curso. Na minha opinião, não se trata de estratégia chinesa deliberada, mas de uma contingência que foi aproveitada a contento. Nada diferente se poderia esperar do país que vem concentrando a atividade industrial, vista como produtiva, do mundo.

Quando passamos ao Brasil, ainda no início dos casos da pandemia, desde sexta novos números de pesquisas sinalizam que o governo mantém resiliência no que diz respeito à popularidade. É preciso separar o desejo (“Fora Bolsonaro”) do que temos refletido em pesquisas. Uma hipótese é que estamos ainda no início de um processo em que a curva da morte tende a se acentuar, mas o discurso de “preocupação com a economia” de Bolsonaro aponta para classes populares que “tem fome e pressa” e precisam “pagar as contas”, o que mantém o apoio ao presidente em algo entre 26% (XP) e 33% (Datafolha). É um número alto, em especial pelo conflito aberto com o Ministro da Saúde, que aparece com uma popularidade bem mais alta (76%).

Entre os processos cogitados de impeachment, nenhum anda porque Rodrigo Maia, tido como razoável por boa parte dos analistas, basicamente não quer, o que me leva a acreditar que Maia está à altura de Bolsonaro, cai como uma luva. O sistema não está permeável à ruptura e caso Bolsonaro saia por conta de um número grande de mortes isso terá um efeito terrível na potência de uma oposição que até então só consegue mitigar efeitos da crise econômica, como na necessária proposta de “Renda Básica Emergencial”, que é mais uma renda mínima, costurada entre a esquerda e segmentos liberais que se mostram mais esclarecidos quanto ao papel do Estado depois que o leite neoliberal derramou.

Com o impeachment sem qualquer possibilidade e uma renúncia improvável – tema que veio à tona com notas e artigos, como o de Maria Cristina Fernandes, do Valor, que inaugurou a série umas duas semanas atrás — o que temos é uma atuação da oposição limitada e sem configurar uma alternativa de poder. A meu ver, tampouco se enxerga em nenhum grupo político organizado.

Em resumo: temos de lidar com a hipótese de que ninguém quer assumir o governo brasileiro neste momento em que a pandemia COVID-19 pode provocar um desastre humanitário. Isso leva a crer que Bolsonaro fabrica sua própria oposição, o que explica em parte sua postura de bobo da corte que se sustenta em uma atuação limitada de um ministro da Saúde que sempre atuou contra a saúde pública no parlamento, e hoje é idolatrado por vestir um colete do SUS.

Por fim, é importante ter em mente que a estrutura social não é nada sem o cotidiano, essa teia de relações que os atores sociais traçam a cada novo dia, reproduzindo a estrutura, através da rotina, mas também inovando ao procurar fazer diferente, sendo que a rotina acaba sendo mais perceptível do que a inovação.

Parece mais efetivo buscar relações mais próximas e em pequenos grupos, mesmo que virtualmente neste momento, fortalecendo e articulando através de pontes, do que tentar mudar a estrutura como se passássemos por uma ruptura, que se reordenará por cima para tentar se impor mais à frente. Resta saber se nos encontraremos rendidos ou em movimento.

Marcelo Castañeda é cientista social e professor da UFRJ
Twitter: @celocastaneda

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