Correio da Cidadania

EXCLUSIVO: Com estudo de impacto ambiental fake, estrada de ferro que corta Amazônia vai a julgamento no STF

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Introdução

A Ferrogrão, estrada de ferro que corta a Amazônia do Mato Grosso ao Pará e visa escoar produção agropecuária, terá Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada nesta quarta, 31 de maio. Com Estudo de Impacto Ambiental repleto de fragilidades e mesmo mentiras, obra atingiria dezenas de terras indígenas e exige desafetação do Parque Nacional do Jamanxim. Orçamento da megaobra já está em R$ 28 bilhões e deverá tornar irreversíveis os danos socioambientais causados pela BR-163, a Rodovia Cuiabá-Santarém.

No final do texto, confira produção do Correio da Cidadania a respeito dos impactos e interesses econômicos em torno da obra.

Leia o texto de Telma Monteiro, que analisou o Estudo de Impacto Ambiental – Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) do projeto:


Divulgação Governo Federal


Neste dia 31 maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar a (ADI) Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6553, que tratará de confirmar ou não a legitimidade constitucional da Ferrogrão ou Estrada de Ferro (EF) 170. A ação foi apresentada pelo PSOL, em 2021 e se fundamenta na Constituição Federal. A Lei nº 13.452/2017 decorrente de Medida Provisória (MP) do governo Dilma Rousseff seria inconstitucional, pois não poderia desafetar parte do Parque Nacional do Jamanxim (PARNA Jamanxim), de restrição integral, para passagem da ferrovia.

Três ministros do governo federal, o do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Geraldo Alckmin, da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro e o da Infraestrutura, Renan Filho, entendem que a Ferrogrão seria indispensável para escoar para o Arco Norte, as commodities agrícolas de Mato Grosso.

O que é a Ferrogrão ou EF-170 (1)

O trajeto previsto para a Ferrogrão é de 1.188 km e segue paralelo - separado em alguns trechos por apenas 40 metros - com a polêmica BR-163, ou rodovia Cuiabá–Santarém, que foi construída durante os anos 1970. A Ferrogrão deverá atravessar um mosaico de Unidades de Conservação e Terras Indígenas e pode agravar e tornar ainda mais irreversíveis os impactos promovidos pela rodovia BR-163. Além de impactos ambientais e sociais, a EF-170 vai interceptar 17 municípios, dos quais 12 estão no estado do Mato Grosso e os outros cinco no estado do Pará.

O projeto da ferrovia data de 2012, lançado pelo governo federal – primeiro governo Dilma – e faz parte do Programa de Investimento em Logística (PIL) para complementar a integração logística do norte do Mato Grosso. Já em 2012, o lobby do agronegócio se intensificou no sentido de pressionar o governo para que a ferrovia pudesse ser rapidamente aprovada. Em 2014, o Ministério da Infraestrutura publicou um edital para a elaboração dos Estudos de Viabilidade da ferrovia, e a Estação da Luz Participações – EDLP, apoiada pelas tradings ADM, Amaggi, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus, se propôs a fazer o relatório de viabilidade técnica, entregue em 2016.

Inicialmente, a Ferrogrão seria licitada por um período de 69 anos. Mas no governo de Jair Bolsonaro a regra mudaria para um regime de concessão em que os investidores ou empresas poderão obter uma autorização simplificada, conforme a Medida Provisória – MP 1.065/21, um novo marco legal do transporte ferroviário, que dá permissão à construção de novas ferrovias por meio de uma autorização simplificada, sem necessidade de licitação. O custo atualizado da construção da Ferrogrão já está perto dos R$ 28 bilhões. A ideia do governo federal é um retrocesso histórico comparável com a época da ditadura militar, que tinha o objetivo de “ocupar” o vazio demográfico na Amazônia.

O lema “Integrar para não Entregar” está muito presente no projeto da Ferrogrão. É esse o objetivo: escoar a produção de grãos do Mato Grosso e interligar com o escoamento da produção no Arco Norte, outra estratégia de integração com rodovias, ferrovia, portos, estações de transbordo para unir Amazonas, Pará, Amapá e Maranhão. Mais uma vez, a Amazônia, tão explorada desde o descobrimento e ocupada no período da ditadura militar, torna-se fundamental para os planos de destruição impulsionados pelo governo federal e seus aliados do agronegócio predatório. Sim, porque não há plano B, o de não criar impactos na maior floresta do mundo e nas terras indígenas.

A grande lacuna nos estudos ambientais: uma análise genocida

Impossível iniciar uma análise dos estudos ambientais da Ferrogrão ou EF-170 sem mostrar, dentre suas inúmeras falhas, a que interpreto como uma das mais criminosas do EIA/RIMA. Consta no capítulo Meio Socioeconômico - 5.3.5.4 Comunidades Tradicionais, atualizado em 2020, que foi encontrada apenas uma comunidade tradicional no traçado de 1.188 km entre Sinop, no estado de Mato Grosso, e o porto de Miritituba no estado do Pará, às margens do rio Tapajós. Houve uma tentativa deliberada de ignorar, nesse estudo, todos os povos indígenas e comunidades tradicionais. É um genocídio documental.

Página 274: “Das cinco consultas realizadas, três instituições se manifestaram. Ao analisá-las, infere-se que não há possiblidade de confirmar a existência de comunidade tradicional na Área de Estudo”.

“(...) o esforço realizado resultou na identificação de uma comunidade que potencialmente se encaixe na categoria em questão”.

“A Comunidade Aruri, no município de Trairão/PA, foi apontada por moradores da zona rural como tipicamente de pescadores, categoria confirmada pela liderança comunitária. O presidente da Colônia de Pescadores Z-74 apontou tal comunidade como tradicional, pela centralidade da pesca artesanal nas dinâmicas econômica e cultural dos moradores”.

Esse é um capítulo muito sensível e que o EIA trata com desrespeito absoluto. Ao mencionar que não há possibilidade de confirmação de existência de comunidades tradicionais na área de estudo da Ferrogrão, o documento demonstra uma inconsistência que o desqualifica e teria o poder de anular qualquer pretensão do licenciamento desse empreendimento pelo órgão ambiental. Sem contar, como agravante, a falta de respeito para com os 48 povos indígenas, ignorados ao longo da faixa de 1.188 km, conforme mencionado no corpo da Representação do MPF ao MP do TCU, no âmbito do Inquérito Civil N. 1.23.008.000678/2017-19. (2)

Por si só, essa afirmação desqualifica o estudo imenso que é o EIA da EF-170. A invisibilidade imposta às comunidades tradicionais na Área de Estudo deixa patente o desrespeito aos povos da Amazônia. O texto expõe um “esforço” na identificação de uma comunidade tradicional, a Comunidade Aruri, de pescadores, no município de Trairão, no Pará, considerada não “oficial”, pois “não foi localizado processo formal de reconhecimento da condição de comunidade tradicional ou de elaboração de Protocolo de Consulta (conforme a OIT 169) aplicável a processos de licenciamento ambiental”.

No entanto, para os moradores essa comunidade é típica de pescadores artesanais, na zona rural e confirmada pela liderança da comunidade. O EIA desconsidera essa identidade. Reproduzo abaixo parte desse trecho deplorável dos estudos ambientais, que por si só invalidaria todo o resto.

“De acordo com a liderança comunitária entrevistada, representante da Associação de Moradores, a comunidade Aruri surgiu em função das atividades de garimpo, aproximadamente na década de 1980, no contexto de ocupação do município de Trairão. Está localizada a uma distância estimada de 345 metros do traçado previsto para o empreendimento, às margens da rodovia BR-163 e do rio Aruri, como ilustra a Figura 868 e a Figura 869. Possui aproximadamente 40 (quarenta) famílias, cujo abastecimento de água é feito por poço ou cacimba. A destinação do esgotamento sanitário é fossa, vala ou o próprio rio, e o lixo ali produzido é queimado ou enterrado, prática comum em localidades rurais, especialmente pela inexistência de serviço regular de coleta de resíduos sólidos. A Figura 870 retrata o padrão residencial das casas instaladas às margens da rodovia BR-163, enquanto a Figura 871 traz ponto de venda de pescado e restaurante”.

“(...) a extração de cassiterita muito intensa na região”.

“Os moradores praticam a pesca nos rios Jamanxim e Aruri, nos locais permitidos pela legislação do Parque Nacional do Jamanxim”.

O acesso à pesca de subsistência para os pescadores da comunidade Aruri é permitido apenas em obediência à legislação do Parque Nacional do Jamanxim.

Passivos ambientais

Em 2017 a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) realizou uma Audiência Pública (nº14/2017) para apresentar a Ferrogrão (EF 170) e deixou de mencionar os passivos ambientais ao longo do traçado da ferrovia. Não consideraram a importância desses passivos e sua magnitude, assim, evita-se que sua verdadeira dimensão pusesse em risco o projeto, complicando a obtenção das licenças e a consequente dimensão dos custos implicados (3).

No projeto da ferrovia de 1.188 km, que atravessa a Amazônia de sul a norte, foram desconsiderados os passivos ambientais e o potencial de riscos inerentes à sua construção. Haja vista a existência dos processos de degradação provocados pelo uso predatório do solo, o desmatamento associado para expansão da agropecuária e ocupação fundiária. Deixou-se de mencionar os impactos já criados nas Áreas de Preservação Permanente (APPs) pela mineração e garimpo, ignorando que um obra como essa tem o potencial de amplificar a destruição da região. E, acrescente-se, ainda, as agressões à fauna e o desaparecimento das espécies e alterações na paisagem que impactarão o bioma amazônico e o cerrado.

A já ocupada região, fragilizada e deteriorada com o uso intensivo da agropecuária, poderá sofrer ainda mais perdas do ecossistema, impactos que ainda não foram estudados no contexto do processo de licenciamento ambiental (4). Construir a ferrovia EF-170 levará ao aumento da exploração agropecuária ao longo do traçado, de sul para norte, que corta a Amazônia, dividindo-a em duas porções e desconectando-as definitivamente: a leste, região que abriga a bacia do rio Xingu; a oeste, que abriga a sub-bacia do Jamanxim.

Não resta dúvidas de que toda a intervenção nessa macrorregião, já tão fragilizada pelas ocupações predatórias, resultado da ocupação provocada pela BR 163 (construída nos anos 1970), poderá criar um novo processo facilitador das atividades de mineração e garimpo, e consequente aumento do desmatamento. A fase de instalação da Ferrogrão já pressupõe impactos negativos na ordem de mais de 90%, segundo os dados do EIA/RIMA.

Em tempos em que se preveem o agravamento e aceleração das mudanças climáticas, essas perturbações ambientais em uma localização tão complexa e interligada pela biodiversidade do mosaico de unidades de conservação poderá significar interferência no estoque de carbono e acelerar a extinção de espécies.

A malha complexa de cursos d’água, superficiais e subterrâneos, sofrerão contaminação, fator que determinará ondas de destruição dinâmicas que afetarão povos indígenas, ribeirinhos, culturas e o esforço empreendido pelo Brasil e pela comunidade internacional para reduzir e pôr fim ao aumento do desmatamento da Amazônia. Some-se a isso a deterioração do solo, que colocará em risco as unidades de conservação e os serviços ambientais.

Continua na Parte 2.

Notas:

1) Texto introdutório extraído de: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/615444-projeto-da-ferrograo-revela-novo-ciclo-de-exploracao-da-amazonia-entrevista-especial-com-telma-monteiro 

2) https://drive.google.com/file/d/1ApZKBZ1yYdvNpKCm335xqTMNBJ3vOwzn/view 

3) MEIO SOCIOAMBIENTAL – Comunidades tradicionais – p.276

4) VOLUME I – ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL (EIA)

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 Atualização: O STF adiou o julgamento da ação e a Açao aguarda nova data para julgamento.

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Telma Monteiro

Ativista sócio-ambiental, pesquisadora e educadora

Telma Monteiro
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