Brasil: em memória de Alencar Furtado diante do autoritarismo
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- Virgílio Arraes
- 05/03/2024
Na última semana de junho de 1977, Alencar Furtado, líder da bancada do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), pronunciou discurso televisionado e radiodifundido com críticas incisivas à ditadura militar.
Embora incapaz de argumentar contrariamente ao teor proferido, o Planalto reagiria, ao cassar o mandato do deputado três dias depois por decreto do general Ernesto Geisel https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1970-1979/decreto-36485-30-junho-1977-548237-publicacaooriginal-63238-pe.html
Seria Alencar o derradeiro de uma relação iniciada em abril de 1964, ao estar ela amparada no artigo décimo do primeiro ato institucional. No dia dez daquele mesmo mês, a ditadura havia publicado cem nomes, ao constar, entre outros, João Goulart, Leonel Brizola, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek, Rubens Paiva, Plínio de Arruda Sampaio, Darci Ribeiro e Miguel Arraes de Alencar – um primo homônimo, tenente-coronel, comporia no dia seguinte o rol de oficiais transferidos de modo compulsório para a reserva, malgrado ter integrado ele a força expedicionária brasileira e o batalhão de Suez - http://querepublicaeessa.an.gov.br/images/MilitaresCassados/BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_EEE_80002860_d0001de0014.pdf
Eleito pelo Paraná, Alencar Furtado era de Araripe, Ceará, o único município a ter cassados na primeira e na última publicação relativa à questão. Os dois primos – Miguel Arraes e Alencar Furtado – sustentariam em alto patamar uma tradição do sul cearense, região conectada com o progressismo desde o alvorecer do século dezenove, ao contribuir para dois importantes movimentos nacionais: a Revolução Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador de 1824. Naquela, o Crato, próximo politicamente de Recife, proclamaria a república; sua duração não chegaria a duas semanas completas, mas bastaria para firmar uma liderança: a de Bárbara de Alencar, considerada a primeira presa política do país – em dezembro de 2014, seu nome seria gravado no livro Heróis da Pátria.
Em julho de 1977, a cassação de Alencar Furtado no expressar dos partidários do autoritarismo teria sido devido ao radicalismo do conteúdo, em momento de suposta distensão, originada não de genuíno desejo do governo de dialogar rumo à abertura, mas em decorrência do crescente volume de problemas políticos e econômicos. No entanto, basta lembrar que em abril o regime castrense havia cerrado as portas do Congresso por meio mês com o propósito de modificar várias leis.
Mesmo imersa a América do Sul em governos opressores, haja vista o próprio Cone Sul, a colaboração entre os dirigentes não seria suficiente para sustentar o arco tirânico por muito tempo a datar do final da década de 70, de sorte que cada um iria desmoronar por si.
Recorde-se que em janeiro de 1977 Jimmy Carter havia assumido a Casa Branca com a proposta de valorizar na política exterior direitos humanos em função do imenso desgaste da Guerra do Vietnã e do constante apoio do país a ditaduras anticomunistas ao redor do planeta.
Acresça-se à formação pessoal do mandatário a chamada influência moral, visão de mundo popular entre denominações cristãs norte-americanas como a metodista. Com a vitória de Ronald Reagan ao cabo de 1980, a Casa Branca iria deslocar-se mais ainda ao conservadorismo. O trecho do pronunciamento de Alencar Furtado avaliado como provocativo ao Planalto ao aludir à tortura havia sido:
“Sempre defendemos os direitos humanos. Hoje, menos que ontem, ainda se denunciam prisões arbitrárias, prisões injustas e desaparecimento de cidadãos. O programa do MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana, para que não haja lares em prantos, filhos órfãos de pais vivos — quem sabe? — mortos, talvez. Órfãos do talvez e do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvam com maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e do talvez”.
Com a cassação, o conteúdo circularia e se afamaria mais com o passar do tempo. Alencar Furtado retornaria ao Congresso em 1983 para exercer o terceiro mandato. Faleceria em janeiro de 2021 aos 95 anos na capital federal.
Na manifestação de 25 de fevereiro, em São Paulo, Jair Bolsonaro, paladino da ditadura militar, ou seja, antípoda de Alencar Furtado, invocou expressão da fala de junho de 1977 – ‘órfãos de pais vivos’ – para defesa dos participantes do bárbaro e antidemocrático ato do 8 de janeiro de 2023 em Brasília.
Omitiu que estes têm sido submetidos à legislação, não à vontade autocrática. Enfim, ecos do desprezo à democracia e aos direitos humanos ao querer aproximar a real perseguição dos anos de 1960 e de 1970 com a imaginária do presente.
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Virgílio Arraes
Doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.
