Correio da Cidadania

Paquistão é outra bomba relógio que tende a fugir do controle dos EUA

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Com a recente revelação de milhares e milhares de documentos, levada a cabo por um sítio de caráter documental, confirmou-se a divergência existente entre membros do governo paquistanês com vistas ao destino afegão.

 

O isolamento do Afeganistão, a partir do momento em que os talibãs assumiram o governo nos anos 90, não desagradava o Paquistão, porque eliminava a possibilidade de a Índia obter um aliado em uma região de equilíbrio tão intrincado.

 

Tal postura adquiria bastante importância para Islamabad, tendo em vista que Cabul nunca aceitou totalmente a existência do Paquistão. A querela possui raízes bem antigas, ao tempo da disputa entre Grã-Bretanha e Rússia com vistas a estabelecer suas áreas de influência na Ásia Central.

 

Em 1893, houve um acordo mediado pela Grã-Bretanha que delimitou a fronteira afegão-indiana – a partir de agosto de 1947, quando da secessão afegão-paquistanesa. Na prática, os britânicos aspiraram a delinear as áreas de maioria muçulmana, governada por nababos, e as indus, administradas por rajás.

 

A desenvoltura com que opera a insurgência afegã na fronteira paquistanesa, embora falte coesão na maior parte de suas ações, demonstra que vínculos religiosos têm se sobreposto sem dificuldades de monta a demarcações políticas ou a arranjos diplomáticos circunstanciais.

 

Premido por uma questão inaudita – o ataque terrorista de 11 de setembro -, Washington, ao deslocar-se àquela região, na forma de uma coligação militar, menosprezou os efeitos de médio prazo na ocupação e na posterior transformação do regime político do Afeganistão, em cuja administração estavam seus antigos aliados, os talibãs.

 

Contudo, o Talibã mesmo não restringia sua atuação apenas àquele país, nem seu posicionamento - o extremismo islâmico - se circunscrevia a ele, ao irradiar-se para outros grupos, em torno dos quais alianças temporárias eram articuladas, como a exemplificada com a oposição aos Estados Unidos ainda no final do século passado.

 

Outrossim, a Casa Branca menoscabou as conseqüências nos arredores, como no caso do Paquistão, em maior escala, e do Irã, por exemplo. Relativamente a Islamabad, ela não considerou o impacto político de um regime progressivamente democrático em Cabul.

 

Desde a fundação do país, a política paquistanesa tem sido bastante influenciada pelos militares, ora tutelando-a, ora dirigindo-a sem rodeios. Durante a Guerra Fria, tal comportamento não foi alvo de descontentamento explícito dos Estados Unidos. No correr do governo George Bush filho também não.

 

A justificativa para a presença militar incessante na política decorre do extremo conservadorismo castrense que se vale da religião para cimentar nação e Estado – no transcorrer da gestão (setembro de 1978 a agosto de 1988) do General Muhammad Zia-ul-Haq, isto se tornou ainda mais perceptível.

 

Em muitas vezes, o emprego cotidiano das forças armadas foi útil às lideranças civis para reprimir movimentos populares, trabalhistas ou autonomistas, como no Baluquistão (o maior e mais pobre dos estados do país), local em que houve a intervenção várias vezes, marcada sempre pelo rigor.

 

De certa maneira, a elite paquistanesa considera os militares indispensáveis para manter a estabilidade sócio-econômica e, como mencionado, a territorial.

 

No entanto, a situação da economia local não é boa, tendo recorrido o governo ao Fundo Monetário Internacional, que, por seu turno, normalmente prescreve ao socorrido recomendações que resultam em sacrifício maior para a população, imersa previamente na carestia.

 

Além do mais, restringe-se em muitas vezes o direito de minorias religiosas ou étnicas, ao invocar-se, de modo desmedido, o papel da religião na sociedade local. Por exemplo, ao valer-se o governo da justiça religiosa (sharia) para os considerados desvios de comportamento. Oficialmente, seu emprego decorreria de sua maior celeridade.

 

Por último, o relacionamento entre Paquistão e Estados Unidos assinala-se tenso porque a recente aproximação de Washington com Nova Déli - ao aceitar o poderio nuclear indiano -, se somada a uma transformação de sucesso no Afeganistão, significaria o enfraquecimento regional de Islamabad, a despeito de também possuir seu arsenal de armas de destruição em massa.

 

O país estaria rodeado por outros dois com os quais a relação seria de desconfiança constante – isto sem considerar a atuação da China e do Irã.

 

Em função disso, explica-se parcialmente o comportamento ambíguo de lá no tocante à existência talibã. Em determinados momentos, o vínculo religioso situar-se-ia acima do político-administrativo, ou seja, a fronteira.

 

Em uma visão mais extrema, aproximar-se-ia mesmo do choque de civilizações, o que justificaria o apoio de setores do governo, ainda que velado, ao movimento insurgente no Afeganistão – reação ao cruzado ocidental.

 

Em outros, o integrismo transformar-se-ia em elemento de instabilidade dentro do próprio território paquistanês, o que, por sua vez, ensejaria a repressão e, por conseguinte, a colaboração mais estreita com os países da aliança norte-atlântica.

 

Diante do exposto, aos olhos da elite do Paquistão, em especial das forças armadas, haveria mais de um talibã, a depender, portanto, do contexto, algo rejeitado pelos Estados Unidos, uma vez que Washington considera a fronteira entre os dois desde 2009 como uma zona de conflito único – denominada em inglês de Af-Pak.

 

Virgílio Arraes é doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.

 

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