Correio da Cidadania

Pensando a longo prazo – Realidade e ideologia

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Elaborar uma “teoria crítica” sobre a realidade brasileira não tem sido tarefa fácil. Primeiro porque, embora às vezes alguns dos problemas da realidade saltem aos olhos, nem sempre tal realidade “é visível a olho nu”, como diz acertadamente Jessé Souza em A Tolice... Uma das dificuldades, como ele sugere, consiste em que existem “ideias dominantes, compartilhadas e repetidas por quase todos”, que procuram fazer com que “o privilégio (seja) legitimado..., aceito mesmo por aqueles que foram excluídos de todos os privilégios”.

 

Jessé conclui, acertadamente, que “a ‘crítica das ideias’ dominantes é a primeira trincheira de luta contra os ‘interesses dominantes’ que se perpetuam por se travestirem de supostos interesses de todos”. Porém, ao mesmo tempo, ele acredita que a “grande maioria das versões apologéticas do ‘sujeito liberal’ nutre-se com fundamento empírico na história da pujança econômica e política norte-americana, em maior ou menor grau, na figura do protestante weberiano”.

 

Ainda segundo Jessé, com base nessa “versão” importada, a grande maioria dos autores contemporâneos “pretende demonstrar que existe uma hierarquia ‘meritocrática’ entre os países e entre as classes que hoje monopolizam todos os privilégios”. “Essas teorias” seriam “utilizadas para mostrar que a corrupção no centro é sempre tópica e passageira, e só na periferia ela é sistêmica e societária...”

 

Assim, um dos problemas de Jessé continua consistindo em não considerar que a “crítica das ideias” faz parte da ideologia e da disputa ideológica no contexto da luta, que se trava materialmente na base da sociedade, em torno dos diversos problemas que a dominação privada capitalista impõe às demais classes existentes na sociedade.

 

Ele resiste em aceitar que a ideologia e a luta ideológica resultam da divisão real, material, de cada sociedade em classes sociais. Isto é, classes divididas a partir da divisão da propriedade privada dos meios de produção, que cooperam entre si através de relações de concorrência e/ou subordinação, e conflitam entre si, seja na concorrência, seja para reduzir ou superar a subordinação, através de inúmeras formas objetivas e subjetivas.

 

Portanto, a existência de idênticas relações de classe em diferentes sociedades pode fazer com que inúmeros aspectos das ideologias presentes numa sociedade pareçam “importadas”. Por exemplo, é comum na história brasileira dizer que, no passado escravista, surgiram “liberais” influenciados pelo liberalismo inglês, como Nabuco e outros. No entanto, é preciso não esquecer que, a essa altura da história brasileira, já haviam surgido relações de assalariamento no colonato da agricultura cafeeira e em vários outros setores. E que, com a imigração europeia, pelo menos no sul do país se implantara uma economia agrícola não latifundiária. Ou seja, já havia um fundamento empírico local no qual o liberalismo burguês podia fincar raízes, mesmo tortas e distorcidas pela ideologia escravocrata.

 

Na divisão social do capitalismo, as relações básicas confrontam burgueses e trabalhadores assalariados. E as relações secundárias confrontam burgueses contra burgueses (financeiros, industriais, agrários, comerciais, de serviços; muito grandes, grandes, médios e pequenos); trabalhadores contra trabalhadores (pelas vagas do trabalho assalariado, por profissões mais rentáveis, por postos de mando, por pretender transformar-se em burgueses).

 

Além disso, classes intermediárias, remanescentes ou não de formações sociais anteriores, como latifundiários de velho tipo, camponeses familiares (independentes e/ou agregados), artesãos, autônomos, lutam tanto entre si, quanto contra a burguesia (como um todo, ou contra suas frações financeiras, industriais, agrárias, comerciais e de serviços), e/ou contra os trabalhadores assalariados.

 

Tais condições de existência, nas quais a burguesia é a classe “dominante”, mesmo com a presença de “restos”, ou “remanescentes”, geram as formas ideológicas burguesas: direito inalienável da propriedade privada, confundindo propriedade privada dos meios de produção com propriedade privada dos meios de consumo; liberdade de troca (compra e venda) no mercado; “igualdade” no direito de pensamento e expressão; “fraternidade” na superação das divergências; superação das dificuldades através do esforço e da dedicação; meritocracia; direito de “liquidar” seus concorrentes; juros altos como instrumento de controle da inflação...

 

A lista é enorme, não se tratando apenas de “propaganda enganosa”. São as formas como a própria burguesia pensa a sua realidade. E como ela procura, como diz Jessé, que sejam “aceitas” pelas demais classes como se fossem suas. Isto é, sendo classe economicamente dominante, a burguesia também opera para fazer com que suas ideias, seus valores, sua ideologia, sejam também dominantes.

 

Por outro lado, para fazer a crítica a tal ideologia, é necessário que as classes opostas à burguesia tenham, latentes ou fragmentários, os pensamentos que questionem a subordinação humana e a falsidade das promessas de liberdade, igualdade, fraternidade, mérito etc. Se a realidade em que vivem tais classes subordinadas não apresentassem, objetivamente, contradições ao vivo com as ideias dominantes, a luta ideológica, ou a “crítica das ideias” não passaria de um sonho utópico.

 

No entanto, tais contradições entre as classes e entre seus pensamentos diferem em graus variados, seja pela força da ideologia dominante, seja pela força das contradições reais. Nestas condições, sempre estão presentes na sociedade diversas ideologias, conformando um mosaico ou um conglomerado contraditório. Basta ver as diversas teorias que buscam justificar, explicar, combater e/ou superar as brutais desigualdades sociais existentes no Brasil.

 

Ou seja, os pensadores das diversas classes sociais elaboram, ou reelaboram, ideologias que procuram expressar a realidade de cada classe realmente existente.

 

Em outras palavras, não é possível supor uma “crítica das ideias”, ou a luta ideológica, dissociada das lutas de classes, tanto as de caráter econômico (salários, custo de vida, condições de trabalho, prevenção de acidentes etc.), e de caráter social (educação, saúde, moradia, saneamento, transportes, lazer etc.), quanto as de caráter político (direito de voto, participação nas decisões econômicas, sociais e políticas governamentais, democratização do direito de expressão e difusão das informações etc. etc. etc.).

 

Se a luta das ideias, a luta ideológica, não tiver por base uma luta de classes real e ativa, ela será sempre uma “crítica sectária”, uma “crítica de iniciados”. Isto diz respeito, também, às relações entre as nações, em especial entre as nações capitalistas avançadas e as nações capitalistas atrasadas. Nesse sentido, reduzir as teorias que apresentam diferenças entre as nações àquelas que pretendem “demonstrar... uma hierarquia ‘meritocrática’ entre os países...” e que “são utilizadas para mostrar que a corrupção no centro é sempre tópica e passageira, e só na periferia ela é sistêmica e societária...” empobrece o debate e o desvia dos problemas centrais.

 

É lógico que Jessé tem razão em denunciar a corrupção como um sistema “organizado”, onde quer que o capitalismo esteja presente. No entanto, paralelamente a isso, a realidade da diferença entre os países capitalistas avançados e o Brasil tem que ser analisada como algo real mais grave. Já vimos que “nossa” indústria está muito menos desenvolvida do que a indústria dos capitalismos avançados. Além disso, a maior parte da indústria presente no território brasileiro não é “nossa”: é propriedade de corporações estrangeiras. O mesmo acontece com grande parte do comércio e dos serviços. E o agronegócio está atrelado às grandes corporações de insumos agrícolas e de comércio internacional.

 

Pior do que isso: a burguesia brasileira, em sua maior parte, é caudatária de burguesias dos países capitalistas avançados. Basta ver como essa burguesia cabocla continua querendo subjugar-se ainda mais àquelas, apesar da crise norte-americana e europeia, que oferece poucas chances a essas potências para contribuir no desenvolvimento brasileiro real.

 

Portanto, no enfrentamento ideológico, e também político e econômico das diferenças do Brasil com os países capitalistas avançados, é mais importante dar atenção às formas concretas através das quais elas nos subordinam a seus interesses geoeconômicos e geopolíticos do que à propaganda sobre qualquer pretensa “hierarquia meritocrática”.

 

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

 

Comentários   

0 #1 Realidade e ideologiaJulian Ramos 18-10-2016 01:29
Mais uma vez o Sr Pomar nos brindou com uma análise cristalina e pertinente.
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