Correio da Cidadania

Desculpe (3)

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Desculpe se pareço inocente; mas tenho dificuldade em aceitar pessoas que invocam Deus exatamente ao mesmo tempo em que se comportam como pecadores, ou seja: sem amor ao próximo.

 

Na outra semana o carro quebrou e fiquei à deriva. Fui atrás de socorro mecânico e encontrei ajuda em uma alma crente que me assistiria por conta própria, assim que deixasse o serviço quinze minutos mais tarde.

 

Assim, embarquei no seu carro. Embora o trajeto não fosse longo, foi todo ele permeado por uma dinâmica que me pareceu contraditória.

 

De um lado, o homem falava de Deus. Isso se acentuou quando comecei a deslindar meus problemas pessoais; como eu estava chateado que aquilo tivesse acontecido bem naquele dia, em que aliás chovia pra diabo, e em que eu já estava com essa e aquela tristeza na vida etc.

 

Por alguma cumplicidade da situação, em pouco tempo eu conversava com ele como se fosse meu confessor – ou meu barbeiro, já que não tenho um. E ele então, no papel do sacristão, entregava tudo nas mãos de Deus.

 

De outro lado, o homem guiava o carro como um videogame. Fechava todo mundo, ao mesmo tempo em que xingava homens, mulheres (principalmente) e velhinhos. A culpa era, afinal, sempre deles.

 

Ainda por cima, ia apontando os defeitos dos carros que paravam ao nosso lado, só pelo barulho. E quando passamos por um cidadão com o carro quebrado no meio de uma ponte, causando transtornos mil no trânsito, sugeri que poderia fazer outro bico na volta.

 

- Cê tá doido! Esse aí é só chamar a polícia e arrastar o carro. Aliás acho que vou fazer isso mesmo...

 

Já me aconteceu de a uma desgraça somar-se outra, como aliás parece ser uma regra universal. Assim, fui tomado de tamanha compaixão  pelo ser humano na chuva de carro quebrado – melhor dizendo, identificação – que acho até deixei escorrer uma lágrima, que o sacristão captou. O fato é que fiquei quieto e o homem também se calou.

 

Mais para frente, passado o luto do momento, voltamos a prosear. E o homem me mostrando as árvores onde batiam carros toda semana fazendo racha. Tudo moleque que merece morrer!

 

Não sou de entrar em discussão política e muito menos teológica assim de graça, quanto mais em um momento onde minha sorte imediata estava lançada nas mãos do herege. Fiz então o que ele mandava: entreguei para Deus!

 

De minha parte, eu sinceramente queria ser ajudado e estava agradecido pela sua presença ao meu lado: por seu conselho, por seu conhecimento, por sua presença – enfim pela sua existência. Poderia ser o diabo que eu diria amém.

 

Assim, convivemos naquele caminho na maior cumplicidade que pode se fazer entre um mecânico e um náufrago através da cidade grande. Falamos de filhos, mulher, ex-mulher, e tudo acabava em Deus, já que só ele podia salvar – o homem foi logo adiantando - inclusive o meu carro.

 

Anotei o paradoxo: eu tinha um carro com problema, como um monte de outros que cruzavam o nosso caminho. Mas estando a seu lado, eu estava salvo. Eu era seu problema; mas os outros, não. Em resumo, problemas são os dos outros.

 

A contradição não era do mecânico, mas de uma sociedade que faz da dificuldade do outro um estorvo, a não ser que esta lhe renda dividendos. As igrejas neopentecostais, afinal, não inventaram o capitalismo. Mas só poderiam ser inventadas por ele.

 

Fábio Luís é jornalista. 

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