Correio da Cidadania

CineBaru: a utopia num chão de terra

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A história parece simples: Zé do Burro promete que, caso seu fiel escudeiro e melhor amigo, o burro Nicolau, se cure de uma doença grave, ele carrega uma cruz do interior da Bahia até a Igreja de Santa Bárbara, em Salvador. E O Pagador de Promessas, filme de Anselmo Duarte baseado na peça de Dias Gomes, ganhou a Palma de Ouro, o prêmio máximo no Festival de Cannes. Numa competição com Agnès Varda, Michelangelo Antonioni e Luis Buñuel, entre outros, o júri formado por François Truffaut e companhia escolheu a história do Zé do Burro, sua esposa Rosa, o padre Olavo, e mais a prostituta, o bonitão e o repórter como o melhor filme de 1962.

Meio século depois das filmagens, chegamos ao pé da escada. Tem uns sete anos, era uma manhã pouco antes do Carnaval, vendedores de fitinha do senhor do Bomfim amarrando a boa-sorte em nossos pulsos brancos, doses de cachaça a preço turístico aceitando cartão de crédito, filipetas com o ensaio do bloco se acumulando na dobradiça do lixo com o poste. Rodávamos um filme tão longe e tão perto da saga do Zé do Burro – a infinitos degraus do épico de Leonardo Villar e Glória Menezes, mas ao pé da escada, ao mesmo tempo, afinal. Ali, somos pés no mesmo chão, andamos sobre a capoeira de Antônio Pitanga.

Se essa ressignificação é o processo de dar novo sentido aos acontecimentos a partir de uma mudança de percepção, qual não foi minha surpresa quando, outro dia, cruzei com a manchete do jornal: 'Igreja de O Pagador de Promessas será reaberta após 16 anos fechada'. Em 1998, primeiro desabou a cúpula do altar; depois, foi fechada em 2002, até ser interditada quatro anos mais tarde.

Inaugurada em 1736, a igreja, que é na verdade a Santíssima Igreja da Rua do Passo, veja só, coloca quase 300 anos de história diante de 118 minutos de cinema. Naquela escada, que obviamente parecia menor e mais apertada que a que estoura na tela do cinema ou do youtube, ocupamos todos o mesmo lugar. É a escadaria do Pagador de Promessas, de forma irreversível. Degraus tomados pelo imaginário da arte que nos nivelam, igualmente tomados, atemporais.

A Vila

O médico, diplomata e escritor João Guimarães Rosa inscreveu Contos num concurso em 1938, livro que viria a ser a primeira versão de Sagarana, coletânea com novas histórias publicada em 1946. O nome remete ao 'saga' – algo heroico, uma lenda – somado ao 'rana', termo que remete à semelhança, ou seja: Sagarana, numa definição direta e reta, seria 'tipo uma coisa muito foda'.



No noroeste das Minas Gerais, nos anos 1970 e, portanto, com Rosa já morto, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) definiu um assentamento a cerca de 300km de Brasília, numa área que pega parte do município de Arinos. Sabe-se lá se leitor voraz do mineiro ou só um apaixonado pela sonoridade do termo-homenagem, um técnico, no vai-e-vem da demarcação ou do preenchimento de um formulário qualquer cravou: Estação Ecológica Sagarana.

Estava forjado o encantamento, feito a escada da igreja em Salvador. Se o cenário de Rosa é o Gerais, Sagarana toma para si a referência poética do livro primeiro.

O Festival

Objetivamente, algumas linhas sobre o surgimento de um novo festival de cinema.



O CineBaru foi idealizado pelo Coletivo Ecos do Caminho, formado por alguns dos participantes do projeto Caminho do Sertão que desde 2014, anualmente, promove uma caminhada sócio-eco-literária da Vila de Sagarana até o Parque Nacional Grande Sertão: Veredas, quase 200km a pé numa mistura de folia de reis, trabalho de campo a partir da obra de Rosa, militância ambiental pela preservação do Cerrado e experimentação social atravessada por conceitos de turismo de base comunitária.

E depois de diversas atuações e parcerias com a comunidade local e com a agenda de atividades já tocadas na vila, o Ecos organizou a primeira edição do CineBaru Mostra Sagarana de Cinema, em outubro de 2017, interagindo, claro, com os agentes e as entidades culturais, sociais e políticas da região.

Se é a literatura rosiana quem media as relações de quem chega a Sagarana, o CineBaru pretende ter no cinema – o que se vê e o que se faz – uma ferramenta de troca. Levar o sertão mineiro ao mundo, trazer o mundo ao sertão mineiro. Adentrar os gerais como possibilidade de encontro artístico, cinematográfico, seja numa camada maior, em que se insere na agenda de festivais de cinema, seja numa visão mais ao chão, em que permite a inauguração de um novo olhar para uma vila distante das praças de exibição ou das capitais Belo Horizonte e Brasília.

E então surge uma mostra de cinema totalmente levada por esse encontro orgânico de gente de todo o país, tocada pelos agitadores locais. Um financiamento coletivo para um orçamento já bastante ponderado alcançou só metade do objetivo, e os recursos apenas custearam alimentação de equipe e convidados e gastos com materiais essenciais. Mobilização por caronas, casas coletivas, oficineiros sem cachê. Muita energia, essa sim, transbordando.

Num rápido passeio pelo mapa dos festivais no site da Ancine, a Agência Nacional de Cinema, se vê um clarão na região do noroeste mineiro (assim como em tantos interiores e sertões do país), ilhado pela distância de Belo Horizonte, Brasília ou Salvador.



Diante disso, o CineBaru resolveu abrir inscrições para curtas-metragens de Goiás, Bahia, Minas Gerais e Distrito Federal, tentando ao máximo contemplar as produções para além das capitais. Virar as costas ao Atlântico e olhar para dentro, afinal. E os 22 filmes da programação passaram pelas capitais, polos maiores da  produção audiovisual brasileira, mas também por Anápolis, Conceição do Coité, Uberlândia, Cachoeira, Juiz de Fora, Coronel Xavier Chaves, Cordisburgo, Paranoá, Luís Eduardo Magalhães, Pau Brasil, Faina. Brasis diversos se encontrando em Sagarana, em produções de todos os tamanhos e orçamentos, entre animação, documentário, ficção e linguagem experimental.

Os três dias de atividades também foram preenchidos com oficinas – relacionadas a cinema, teatro, mapeamento afetivo, agrofloresta – e atividades infantis, envolvendo a comunidade e as escolas públicas da região. Não poderia ser diferente – o contexto social e ambiental que recebe esses encontros em Sagarana faz do CineBaru um festival que já nasce com a responsabilidade de se inserir no debate que cerca a vida no sertão e no Cerrado, que cruza as resistências várias de tudo que se mantém firme naquelas terras.

A verdade

Ainda me emociono quando ouço, e logo lembro da primeira vez, o contador de histórias e guia ambiental Elson Barbosa narrar o encontro de Riobaldo e Diadorim no rio de Janeiro, que sublinho como o maior achamento da história, a descoberta que, no limite da imaginação, é o estopim para estarmos aqui, nesse texto.

Porque é quando a gente começa a ouvir a saga do jagunço que a utopia volta a ser um chão de terra. Um festival de cinema, horizontal e orgânico, construído só pelo atravessamento que se dá num lugarzin específico, com gente que se relaciona numa camada outra, tocada pela literatura, pela troca e pelo encantamento, que de tão fluído é quase que solto, desprovido de pragmatismos e burocracias e que confia, única e exclusivamente, naquele encontro. É o nosso rio de Janeiro, o despertar da vida.



*

Em 1960, John Rouch e Edgar Morin lançaram 'Crônica de um verão', um filme que partia de uma questão simples: você é feliz? A partir daí, o que se vê não é mais a realidade em si, mas sim a relação entre a pergunta, a câmera e a resposta, a criação da chamada verdade do cinema, as realidades forjadas. E então fiquei imaginando uma câmera que arrancasse pela Vila de Sagarana disparando uma interrogação também direta: por que fazer um festival de cinema no sertão mineiro?

Acho que a resposta seria, talvez e ainda que em linhas turvas, a primeira edição do CineBaru. Um organismo vivo, experimentado ao tempo que é solto num descampado que abraça uma tela grande.












Paulo Junior, 29, mora em São Paulo e é membro do coletivo Ecos do Caminho, que idealizou e produz o CineBaru. Jornalista e documentarista, é diretor de O Acre Existe, Largou as Botas e Mergulhou no Céu e Gerais da Pedra - este último trata do rastro do mito Diadorim, personagem central em Grande Sertão: Veredas, e será lançado em 2019. Autor dos livros O Acre Existe e São Bernardo Sitiada. Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Bruno Graziano, 30, é cineasta, realizou os longas A Primeira Vez do Cinema Brasileiro, O Acre Existe, Largou as Botas e Mergulhou no Céu e Baderna.

Clément Villien, 32 anos, nascido e crescido na França, e um fotógrafo amador entusiasta. Engenheiro agrônomo licenciado, ele pausou o trabalho para dedicar-se a fotografia, viajando pelo Brasil. Assim participou na primeira edição do CineBaru em outubro 2017.

Instagram : @clementvillien

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