Correio da Cidadania

Depois de 1848, nada novo (1)

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Com Marx, caracteriza-se um divisor no desenvolvimento do conhecimento histórico. Toma-se 1848 como marco temporal, por terem Marx e Engels elaborado e enunciado naquele ano o Manifesto do Partido Comunista, documento básico de conclamação ao proletariado para assenhorear-se de seus meios de produção e dos destinos da história, feito que ocorreu dentro da formação socioeconômica do capitalismo. Muito se pensou e praticou em matéria de conhecimento histórico pós-Marx, mas nada de essencialmente novo que em método e teoria pudesse ser entendido com a mesma importância histórica.

 

O conhecimento histórico e do pensamento a seu respeito caracteriza-se, pós-Marx, em desenvolvê-lo ou contradizê-lo. Travam-se conflitos e lutas no campo da superestrutura da formação do capitalismo, entre ideias que favorecem àqueles que só vivem de seu salário e não detêm os meios de produção e o ideário que favorece indivíduos e grupos detentores do poder na sociedade capitalista. Experiências significativas sucedem-se no mundo e configuram a nova formação socioeconômica, o socialismo, todas baseadas em teorias marxistas.

 

Em maior escala dão-se os problemas globais, expressão de crise da formação ainda predominante. Neste ocaso do capitalismo, as teorias do materialismo histórico são confrontadas por posicionamentos conceituais divergentes, fundamentalmente por interesses de classe. É comum negarem-lhes a validade de leis objetivas para desenvolver a sociedade. Quando não declaram extinta a história (como Fukuyama), consideram-na confusa, consagrando o caos e o casuísmo.

 

O caráter anti-cognitivo histórico, divergente do materialismo histórico, visa negar o desenvolvimento justo da sociedade. É avesso a considerar o fator trabalho como principal categoria do conhecimento histórico. Formula teorias arquitetônicas a partir de um subjacente conceito de convivência humana que não considera o fator trabalho. Esquece a importância que essa forma de conhecimento teve, na derrocada do sistema feudal, para a ascensão ao poder das classes que o negam ou menosprezam atualmente, por resistirem à substituição pela nova classe, a dos trabalhadores.

 

As teorias hoje divergentes das do materialismo histórico podem ter três enfoques:

 

1º - psicologizante – situa as bases do desenvolvimento social em fatores psicológicos: desejos, vontade, instintos, intuição, prazer e fruição, percepção e gosto, convivência fortuita e lazer não programado; a intranquilidade social no capitalismo explica-se menos por suas leis objetivas, mais por deficiências psíquicas; para sanear os sérios problemas sociais, aperfeiçoar a mentalidade da população é o remédio ministrado (1).

 

2º - sócio-biológico – recomenda o conhecimento positivista ou o neopositivista.

 

3º -micro-sociológico – tem apoio na sociologia empírica.

 

Enfoque psicologizante

 

Na história do pensamento social, dificilmente se encontrará teoria mais popular, de mais influência sobre a vida intelectual, do que a teoria psicanalítica de Freud. Nasceu na primeira década deste século, como um método de tratamento de neuroses em ambiente hospitalar. Fundamentou uma nova área da psicologia e introduziu uma filosofia social cujos defensores sustentam que seus métodos solucionam problemas sociais tão bem quanto problemas médicos.

 

A teoria de Freud tem caráter bio-psicológico, centra-se nos instintos. De instintos biológicos imutáveis, supõe inconciliável conflito entre vida e morte do indivíduo. Afirma ser a psique biológica por natureza, não depende do mundo externo, da realidade social. Minimiza categoricamente a influência do contexto ambiental na estrutura mental do homem (2).

 

Embora com a teoria dos instintos Freud buscasse as causas da atividade mental, na teoria da repressão explicou a dinâmica do comportamento do homem forçado (pela necessidade de preservar-se) a suprimir instintos e a orientar energias a direções aceitáveis. Desviada de suas originais finalidades sexuais, a energia mental redistribui-se para satisfazer necessidades socialmente motivadas. Freud sustenta:

 

A sublimação dos instintos é um notável feito do desenvolvimento cultural; é o que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas jogar um papel tão importante na vida civilizada(3).

 

Vê-se, então, que, quando a demanda de sublimação civilizatoriamente imposta excede a capacidade do indivíduo, produzem-se neuróticos e criminosos. Se os impulsos interiores não são postos em xeque, o indivíduo se torna criminoso; se suprimidos, torna-se neurótico; se são sublimados em atividades socialmente úteis, está apto a viver em sociedade, sem maiores fricções.

 

Freud não viu o conflito natureza humana x sociedade como um todo dialético de interpenetração de opostos, mas apenas como confrontação de partes independentes. Não considerou serem as condições sociais externas à existência do homem determinantes de sua atividade mental. Viu-as dificultando a manifestação da atividade, freando a realização das exigências instintivas do homem. Essa interpretação sócio-psicológica da relação natureza humana e sociedade levou-o a um dilema não resolvido: por um lado, repressão e rejeição de instintos como essencial condição para a existência da sociedade, da civilização como um todo; por outro, a desimpedida satisfação de instintos como essencial condição para a saúde mental do homem. Analisou a sociedade como produto de três variáveis: 1ª) necessidades oriundas da natureza; 2ª) dualismo de instintos: amor e morte (Eros e 'nonatos’); 3ª) instituições e ideais que formam a sociedade.

 

A visão freudiana de sociedade é pessimista, trágica, instável e desacreditada, posto que a síntese das variáveis nunca é plenamente obtida. A despeito de a sociedade valer-se dos impulsos instintivos para a garantia da vida social, os instintos não conseguem mais que duvidoso equilíbrio:

 

A civilização é um processo a serviço de Eros, cujos propósitos são de congregar os indivíduos, e depois famílias, raças, povos e nações numa grande unidade: a humanidade. Se isso se consegue, não sabemos; a obra de Eros é precisamente essa. Esses conjuntos de homens devem ser libidinalmente unidos uns aos outros. Somente as vantagens do trabalho em comum não são capazes de mantê-los unidos. Instintos naturalmente agressivos, a hostilidade de cada um contra todos os outros e de todos os outros contra cada um opõem-se a esse programa civilizatório. Esse instinto agressivo é derivado e constitui a principal expressão do instinto da morte que trazemos em nós (4)

 

Vê a existência de variados sistemas sociais como na luta entre as tendências do amor e da morte (5).

 

E também crê que...

 

... a história decorre de nossa vontade consciente, não da capacidade da razão, mas sim da destreza dos desejos (6).

 

Posição implícita à tese de Fukuyama, que contradisse o princípio basilar do materialismo histórico de Marx, quanto à prioridade ontológica do objeto sobre o sujeito e ao reconhecimento da existência de leis históricas. A base filosófica da teoria psicanalítica, em particular a sociologia nela apoiada, tem origem nos princípios idealistas de Platão, Kant, Hartmann, Schopenhauer, Nietzsche e Bergson. Mesmo se mostrando não adepto de doutrinas filosóficas, atraíam-no os sistemas filosóficos que defendiam o irracionalismo. Em Edward von Hartmann e Henri Bergson, Freud buscou a ideia do inconsciente. Nietzsche e Schopenhauer despertaram-lhe interesse pela importância da sexualidade e das emoções inconscientes como determinantes de aspectos da vida humana. Em Um Problema em Psicanálise, Freud escreveu:

 

Famosos filósofos podem ser citados como precursores, particularmente o grande pensador Schopenhauer, cujo inconsciente pode ser igualado aos impulsos emocionais na psicanálise (7).

 

Atribui-se ao inconsciente, a instintos biologicamente determinados, o vital papel da diversificada atividade mental. A razão é um elemento subordinado. Idealismo e metafísica constituem a base sobre a qual se constrói a psicanálise. Dentro da história do pensamento social, Freud reflete o terror e o desespero que atingiram os segmentos pequeno-burgueses europeus no fim do século XIX. Estudando a desordem mental das camadas inferiores da burguesia austríaca, concluiu que a maioria dos casos dependia das exageradas restrições impostas pela moral da época aos naturais desejos sexuais do homem, atribuindo validade universal a casos particulares (8).

 

À medida que Freud relacionava sua teoria psicanalítica e as aplicações clínicas ao estudo de problemas sociais, a teoria ganhava status de método específico para explicar fenômenos da vida social. Ele se convencera de que, sem prejuízo para a essência da psicanálise, poder-se-ia usá-la com sucesso em mitologia, língua, folclore, estudo das religiões, e para tratar neuroses. As conclusões sociopolíticas permitidas pela psicanálise foram aceitas e têm defensores em diferentes setores do conhecimento.

 

Principais características do neofreudismo

 

Contradições entre princípios da teoria freudiana e a formulação da psicologia, da antropologia e da sociologia experimentais originaram tendências neofreudistas, entre as quais, na psicanálise, Erich Fromm, Karen Horney, H. S. Sullivan, Abram Kardiner, Franz Alexander, H. D. Lasswell e Margaret Mead. Alguns, especialmente Fromm, tentaram unir o pensamento de Freud ao de Marx (9).

 

Graduado inicialmente em filosofia e inspirado pelas idéias de Freud, Fromm escolheu ser psicanalista. Dedicou boa parte do tempo a pesquisas em psicologia social e foi o primeiro a apontar que a teoria freudiana não estava equipada para explicar as relações entre indivíduo e sociedade. Após emigrar para os EUA (1934), iniciou com Horney e o apoio de Sullivan uma nova escola na área da psicanálise. A observação de pacientes norte-americanos dos anos 30 induziu-os a admitir que o inconsciente do homem depende da essência e das particularidades específicas de uma sociedade. Substituíram o enfoque biológico ante pacientes desempregados e necessitados de ajuda, sem abandonar a concepção freudiana dos instintos humanos.

 

As intensas contradições nos EUA dos anos 30 e 40, com depressão econômica, desemprego crescente e instabilidade de vida, eram muito distintas das dos pacientes de Freud na Áustria do fim do século anterior. O paciente estadunidense necessitava de ajuda, de orientação para entender e enfrentar as pressões sociais. Compreendia-se um analista transformar-se em pensador social ante a impossibilidade de interpretar problemas individuais sem relacioná-los à sociedade. Daí Fromm encontrar-se com Marx, reconhecendo-o pensador de muito mais profundidade e objetividade do que Freud (10).

 

Ao se aproximarem de Marx, Fromm e o neofreudismo não se tornam marxistas; modernizam o freudismo. Vendo o corpo teórico de Marx como uma interpretação antropológica da história e um existencialismo espiritual, fundado num conceito genético do homem, evidenciam a necessidade de distorcer o enfoque marxista para torná-lo suficientemente existencialista e aceitá-lo passível de relacionamento com o freudismo (11).

 

Notas:

 

1 - V. I. Dobenkrov: Neo-freudism on Surch of Truth. Moscou, 1976.

 

2 - Idem.

 

3 - S. Freud:Civilization and its Discontents. Londres, 1939.

 

4 - Idem.

 

5 - N. Brown - Life Against Death. Londres, 1959.

 

6 - S. Freud - Una Dificultad de la Psicanálise Obras Completas, vol. 12. Madri, 1948.

 

7 – Idem.

 

8 - E. Fromm - Mas alla de las cadenas de Ia ilusion y Ia revolución de la esperanzza, Madri, 1975.

 

9 - E. Fromm: Conceito marxista do Homem. Rio, 1975.

 

10 - op. cit. (nota 30).

 

11 – Idem.

 

Frank Svensson, professor aposentado da UNB, é do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro.

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