Correio da Cidadania

Brumadinho, 5 anos: “O debate sobre a Vale e a mineração deve ser guiado pela noção de soberania popular”

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Rompimento de barragem em Brumadinho – Wikipédia, a enciclopédia livre

Cinco anos após o rompimento da barragem de Brumadinho, onde se depositavam rejeitos de minério de ferro extraídos pela Vale S.A. e cujo vazamento matou 270 pessoas (três jamais encontradas), os processos de justiça e reparação parecem se estancar. Enquanto o setor mineral registra lucros incomparáveis, famílias veem seu direito a indenizações ser escamoteado pelo judiciário brasileiro, a refletir velhas relações de classe em suas decisões.

Na entrevista ao Correio, Tadzio Coelho, professor de ciências sociais da Universidade de Viçosa e autor do livro Quando vier o silêncio: o problema mineral brasileiro, faz uma análise do modelo de exploração mineral do país e alerta ser necessário iniciar uma transição em direção a atividades produtivas social e ambientalmente mais sustentáveis.

 “Claro que a dependência é um fenômeno multidimensional, de cunho econômico, político e cultural. Porém, o seu questionamento passa de maneira decisiva pela criação e desenvolvimento de alternativas produtivas. Por isso a questão que se coloca é como diversificar as economias locais com atividades de cunho popular e geradoras de renda e postos de trabalho. O caminho não é fácil e o que se vê em geral é que a dependência se reproduz até o ponto em que as reservas minerais não são mais economicamente aproveitáveis, restando o declínio econômico. Por isso, a diversificação econômica é uma necessidade premente nesses municípios”.

Quanto a Vale, o país testemunhou histeria midiática com a cogitação do nome de Guido Mantega para a sua direção, uma vez que seria representante das supostamente “indesejáveis” intervenções do governo federal em empresas estatais. Um cinismo tão sabotador dos interesses coletivos quanto o do judiciário que agora sonega justas reparações aos penalizados por um setor mineral brasileiro. Este, como explica o sociólogo, é altamente desregulado e vive impunemente uma trajetória de violação de direitos de comunidades e geração de passivos ambientais. Além disso, um setor cuja tributação está totalmente aquém dos padrões dos países desenvolvidos.

“As empresas declaram um valor menor do que aquele praticado para pagarem um valor menor de CFEM porque seu recolhimento decorre de acordo com as informações sobre produção preenchidas pela própria empresa. Uma estimativa informal de técnicos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) avalia que a média da sonegação do setor mineral, como um todo, seria de aproximadamente 50%, com destaque para pedras e metais preciosos (TCU, 2018)”.

Ou seja, segundo Tadzio Coelho, autor também de Projeto Grande Carajás: trinta anos de desenvolvimento frustrado, o governo não só deveria interferir mais no setor mineral como também na própria estatal de capital misto, cuja história de violação de direitos e crimes ambientais reproduz o pior de nosso processo de desenvolvimento econômico. Isso como mediação da criação de um modelo de exploração mineral com forte participação da sociedade civil.

“A atividade mineradora deve ser organizada de forma a atender os interesses do povo brasileiro. A participação pública, o controle popular dos bens minerais, a transparência e os territórios livres de mineração devem ser incentivados e servirem de farol na formulação de um modelo de mineração, pautado pela soberania popular. Do contrário, continuaremos presenciando os desastres-crime, o empobrecimento da população, a concentração de riquezas e a destruição do meio ambiente”.

A entrevista completa com Tadzio Coelho pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Cinco anos após o desastre de Brumadinho, como analisa a política de reparação de danos e indenizações? Como a sociedade deveria lidar com a decisão judicial que cortou 80% das indenizações?

Tadzio Coelho: A maneira como foi organizado o processo de reparação e a centralização dos interesses da empresa em detrimento das demandas dos atingidos estendem e aprofundam a injustiça e o sofrimento das pessoas. Particularmente, os enlutados pela tragédia-crime sofrem com um luto que não é respeitado pelas instituições de justiça brasileiras, o que torna o processo de recomeçar as suas vidas ainda mais difíceis. Trata-se de uma tragédia estendida e que se reproduz ao longo dos anos.

Correio da Cidadania: Ainda sobre o corte nas indenizações, como observa a alegação jurídica de que se trataria de um “enriquecimento injustificado” de seus beneficiários?

Tadzio Coelho: De que maneira essas pessoas estariam enriquecendo? Através de indenizações que muitas vezes sequer compensam as perdas materiais? Muitos decidiram inclusive terminar com suas próprias vidas ou adoeceram por conta de tanta dor. Como isso pode ser considerado “enriquecer”? Essas pessoas estão numa luta constante para recomeçar suas vidas.

Na verdade, foi a Vale que obteve lucro de 235 bilhões de reais desde o rompimento da barragem em Brumadinho (1). Ainda cabe lembrar que meses após o rompimento a empresa já havia resgatado seu valor de mercado. Tendo em vista a experiência de injustiça decorrente do rompimento em Mariana, os agentes de mercado se comportaram sabendo que as receitas da empresa não seriam abaladas de maneira decisiva, o que os levou novamente a investir na empresa.

Correio da Cidadania: Enquanto isso, o setor mineral registra faturamento de R$ 1 trilhão em 4 anos, com bilionários dividendos repartidos entre acionistas, boa parte remetida para fora do Brasil. Tamanho enriquecimento se justifica social e economicamente?

Tadzio Coelho: Acho decisivo esse paralelo entre os atingidos pelos rompimentos de barragens e as empresas mineradoras. É o paradoxo desse modelo de mineração. Concentra riquezas ao mesmo tempo em que prejudica vastos estratos da população. Os atingidos tiveram suas possiblidades de vida encurtadas e limitadas pela ação da Vale e das instituições de justiça. Nada é mais trágico que a negação da possibilidade de viver com plenitude as suas vidas.

Correio da Cidadania: O que pensa dos novos debates a respeito da reforma tributária no que tange a mineração, refutada por boa parte dos municípios cuja economia se baseia nesta atividade e que alegam perdas bilionárias?

Tadzio Coelho: A Associação dos Municípios Mineradores de Minas Gerais e do Brasil (AMIG), principal representante das prefeituras dos municípios minerados, realizou um levantamento que coloca que esses municípios devem ter um prejuízo de cerca de R$ 2,5 bilhões na arrecadação de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), com a aprovação do texto da PEC 45/2019 (2).

Porém, o principal desafio para a população de municípios e regiões mineradas é o combate à minério-dependência. A minério-dependência é uma situação de subordinação que, por meio de uma rede de relações de poder, centraliza os interesses de empresas mineradoras nos processos decisórios que definem o que acontecerá na estrutura produtiva local. A base desta situação de subordinação passa fundamentalmente pela concentração das atividades econômicas locais na mineração.

Claro que a dependência é um fenômeno multidimensional, de cunho econômico, político e cultural. Porém, o seu questionamento passa de maneira decisiva pela criação e desenvolvimento de alternativas produtivas. Por isso a questão que se coloca é como diversificar as economias locais com atividades de cunho popular e geradoras de renda e postos de trabalho. O caminho não é fácil e o que se vê em geral é que a dependência se reproduz até o ponto em que as reservas minerais não são mais economicamente aproveitáveis, restando o declínio econômico. Por isso, a diversificação econômica é uma necessidade premente nesses municípios.

Correio da Cidadania: Acredita que o atual padrão de tributação da CFEM (Contribuição Financeira pela Exploração Mineral), um imposto entendido como royalty desta atividade, é suficiente para atender aos interesses da sociedade brasileira?

Tadzio Coelho: Não. Primeiramente, vale ressaltar que, mesmo com o aumento da alíquota por tipo de minério, em 2017, a taxa exigida segue muito baixa. A Austrália estabelece uma alíquota de 7,5%; o Canadá, de 16% sobre o lucro; e o Chile, de 14%. Enquanto aqui exigimos um máximo de 3,5% do lucro (descontados impostos de comercialização), no caso do minério de ferro, que é a maior taxa que apresentamos.

Ressalto também que o recolhimento da CFEM é realizado a partir de dados informados pelas empresas e o órgão responsável por supervisionar os pagamentos da CFEM é a Agência Nacional de Mineração (ANM). Em recente relatório do TCU (2018), se concluiu que a ANM carece de estrutura para fiscalizar a arrecadação da CFEM. Sem a verificação completa das informações autodeclaratórias das empresas mineradoras, prevalece a tendência de minimizar o faturamento, reduzindo o valor da CFEM a ser pago.

Ou seja, as empresas declaram um valor menor do que aquele praticado para pagarem um valor menor de CFEM porque seu recolhimento decorre de acordo com as informações sobre produção preenchidas pela própria empresa. Uma estimativa informal de técnicos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) avalia que a média da sonegação do setor mineral, como um todo, seria de aproximadamente 50%, com destaque para pedras e metais preciosos (TCU, 2018) (3).

É um contínuo subfaturamento dos pagamentos de CFEM que prejudica ainda mais municípios e estados minerados. Claro que o pagamento devido não garante que estes recursos seriam utilizados na melhoria das condições de vida da população, mas o subfaturamento nega de antemão esta possibilidade.

Correio da Cidadania: Semanas atrás, o debate do setor girou em torno de possível nomeação do ex-ministro da fazenda Guido Mantega para a presidência da Vale, pautada por notória gritaria da mídia empresarial e tradicionalmente privatista e antipetista. Que importância você dá a esse debate? O que o Brasil deveria fazer com a Vale?

Tadzio Coelho: A importância do controle sobre a Vale é evidente. A empresa concentra grande parte dos títulos minerários, minas, infraestrutura e faturamento do setor mineral. Ainda é responsável por graves violações contra a humanidade e ao meio ambiente, como os rompimentos de barragens de rejeito.

Entretanto, o debate sobre a Vale e a mineração de forma geral deve ser guiado pela noção de soberania popular. A atividade mineradora deve ser organizada de forma a atender os interesses do povo brasileiro. A participação pública, o controle popular dos bens minerais, a transparência e os territórios livres de mineração devem ser incentivados e servirem de farol na formulação de um modelo de mineração, pautado pela soberania popular. Do contrário, continuaremos presenciando os desastres-crime, o empobrecimento da população, a concentração de riquezas e a destruição do meio ambiente.

Correio da Cidadania: Vê perspectivas de alterações da orientação econômica e produtiva do setor no governo Lula, em especial no que concerne às questões ambientais? Como o Estado deveria atuar neste setor tão influente na história do desenvolvimento do Brasil no atual momento histórico?

Tadzio Coelho: Nas últimas décadas fica evidente um reposicionamento do Brasil como fornecedor de matérias-primas para o mercado mundial. É claro que esta situação traz diferenças para o ciclo anterior, do século 20, como o aumento dos preços das commodities, mudanças nas formas de especulação e na matriz tecnológica e reestruturações produtivas. Essa reconversão ao papel primário-exportador aprofunda danos e impactos típicos das atividades primário-exportadoras, particularmente na questão ambiental. O desafio colocado é contrariar esta tendência.

Não é um caminho fácil, mas as organizações populares têm formulado propostas originais que podem ajudar. A questão que se coloca é como fazer tais formulações atravessarem a esfera pública e o Estado até chegarem aos postos de comando e serem entendidas enquanto válidas. Contra isso, se colocam os representantes políticos do capital mineral, que ainda estão presentes no Congresso e em ministérios do Executivo, principalmente no Ministério de Minas e Energia (MME). O governo de ampla coalizão formado com a eleição de Lula possui este obstáculo.

Apesar disso, existem diferenças relevantes no campo da mineração quando comparado aos governos petistas anteriores. Podemos citar algumas medidas tomadas contra o garimpo ilegal e o fortalecimento dos órgãos de controle, tais como a ANM (4).

Podemos elencar também a criação do Conselho Nacional de Política Mineral e da Mesa de Diálogo Temática sobre Mineração no Brasil. Porém, ainda há muito o que avançar no tema da mineração. Por alguma razão que desconheço, a mineração demorou muito tempo para fazer parte do debate público como algo central, o que só foi alterado após os desastres-crime da Vale e BHP Billiton. Agora é correr atrás do tempo perdido.

Notas:

1) https://www.brasildefatomg.com.br/2024/01/25/vale-ja-lucrou-r-235-bilhoes-desde-crime-em-brumadinho-cinco-anos-depois-atingidos-ainda-cobram-reparacao 

2) Fonte: Brasil 61 - https://brasil61.com/n/para-amig-municipios-mineradores-terao-prejuizos-com-reforma-mine230633 

3) TCU. Relatório de Levantamento. Tribunal de Contas da União, Brasília, 2018. Disponível em:
https://portal.tcu.gov.br/data/files/0D/E3/B3/54/C2B29610DCEE6196F18818A8/017.199-
2018-2-AC%20-%20levantamento%20CFEM_ANM.pdf. Acesso em: 15 mar. 2022. 

4) http://emdefesadosterritorios.org/apos-14-meses-de-governo-lula-foca-no-discurso-de-enfrentamento-as-mudancas-climaticas-mas-nao-avanca-na-politica-mineral/?fbclid=IwAR3lzVg_KjYads9uqQFMrKQFqCK2U7wdOokjIkgEl53AB2Y9D8qxdyhRZZo 

Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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