Correio da Cidadania

O novo monitoramento do FMI e a perda de autonomia

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A recente atualização dos critérios do Fundo

O Conselho-Executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou no último dia 15 de junho a atualização dos critérios para monitoramento (survillance) da política cambial de seus países membros (1).

O artigo IV do Acordo Constitutivo do Fundo estabelece o acompanhamento/monitoramento dos efeitos das políticas econômicas dos países membros na estabilidade da economia internacional como uma das funções da instituição. Dentre as políticas econômicas monitoradas, encontra-se a do conjunto de decisões que afetam a quantidade de moeda do país trocada pela de outros países, a chamada política cambial.

Desde 1977, o Fundo monitorava as políticas cambiais atentando para três aspectos: uso da taxa de câmbio tanto para protelar ajustes no Balanço de Pagamento, como para ganhar vantagens competitivas indevidas nas exportações; intervenção no mercado de câmbio visando à contenção de variações bruscas de curto-prazo na taxa de câmbio; e o desenho das políticas cambiais para garantir que o interesse daqueles países cuja moeda estivesse envolvida na alteração da taxa de câmbio fosse considerado.

A recente atualização acrescentou um quarto aspecto ao monitoramento dos países membros do Fundo: evitar políticas cambiais motivadas por "razões domésticas" que resultem em instabilidade externa, incluindo os desalinhamentos estruturais da taxa de câmbio (2).

De imediato destaca-se a centralidade atribuída ao conceito de desalinhamento cambial, entendido pelo Fundo como um suposto desvio em relação a uma hipotética taxa de câmbio compatível com o equilíbrio da conta corrente do Balanço de Pagamento. Tal conceito está imerso em controvérsias teóricas que envolvem desde os critérios e formas de cálculo, até as discussões sobre a existência e pertinência do suposto equilíbrio – os quais suscitam o questionamento sobre a precisão, a pertinência da adoção e até mesmo a validade da idéia de desalinhamento cambial.

Nova “delimitação” para a escolha de políticas cambiais

Apesar do recente anúncio do novo item de monitoramento, ele, de fato, não traz novidades, apenas reforça o já conhecido papel histórico do FMI em servir de instrumento de dominação dos países periféricos, através da restrição sistemática das políticas econômicas àquelas voltadas aos interesses dos mercados financeiros internacionais.

A restrição para a escolha das políticas econômicas aparece na proposta do Conselho Executivo quanto à interpretação do que seriam "políticas cambiais motivadas por razões domésticas". Encaradas como medidas que evitariam aquelas tradicionalmente recomendadas pelo Fundo (corte de gastos públicos, aumento da taxa de juros interna e reformas estruturais), supostamente as únicas a atacar as reais causas dos problemas externos, as políticas cambiais deveriam então ser desencorajadas quando permitissem não realizar as duras medidas econômicas sugeridas pelo Fundo.

O sentido de delimitação na escolha das políticas econômicas contido na atualização do monitoramento da política cambial é reforçado pela idéia de instabilidade externa em que o Fundo se apóia: são as posições no balanço de pagamento que geram movimentos bruscos na taxa de câmbio. Essa constatação implica em evitar as posições no Balanço de Pagamento que gerem movimentos bruscos do câmbio, o que se traduz concretamente em não adotar políticas econômicas que firam as avaliações e ganhos de um capital internacional sempre pronto a fugas. No entanto, partir da década de 1990, a principal fonte de instabilidade dos Balanços de Pagamento são os movimentos de capitais.

FMI e Mantega: tentando “amenizar” o controle

O reforço ao enquadramento dos países membros tentou ser amenizado pelo próprio FMI em nota de divulgação da decisão do Conselho Executivo ao defender o entendimento de que o monitoramento seria um processo de caráter colaborativo (ligado à idéia da livre associação dos países membros à instituição), apoiado nos princípios do diálogo e da persuasão. Além disso, a atualização não traria novas obrigações aos países membros, mas sim transparência no modo de agir do Fundo.

O fato de a relação entre os países membros e o Fundo ter certo grau de colaboração, não pela livre associação à instituição, mas pelo alinhamento político de muitos governos nacionais, a exemplo do Brasil, que manteve acordos com a instituição de 1998 a 2005, não invalida o reforço da delimitação do espectro de políticas econômicas passíveis de adoção por parte dos países membros do Fundo. Ou seja, pode-se dialogar e colaborar com o Fundo, desde que a perspectiva seja a de adoção das políticas por ele delimitadas.

Diante do exposto, é interessante observarmos a avaliação do ministro da Fazenda, Guido Mantega, sobre o assunto (3). Para o ele, graças a uma ativa pressão brasileira no processo de decisão do Conselho Executivo, essa limitou o raio de ação do próprio Fundo e não dos países membros.

Tal limitação apóia-se no fato de a decisão não se apresentar, sob o ponto de vista do FMI, como uma imposição de novas obrigações aos países membros, bem como não trazer referências estigmatizantes ao controle de capitais, limitar a aplicação do conceito de desalinhamento cambial e restringir o monitoramento às políticas fiscais, monetárias e financeiras.

A presença desses elementos na atualização do monitoramento, da mesma forma que os comportamentos colaborativos entre o Fundo e seus membros, não anula ou neutraliza as restrições de política econômica presentes nas idéias de evitar políticas cambiais motivadas por razões domésticas ou que supostamente causem a instabilidade externa. Menos ainda elimina o uso do desalinhamento cambial contra os países periféricos.

Adotar uma visão de avanços na decisão do Fundo, ignorando as restrições que ela efetivamente traz aos países membros e ao próprio Brasil, é um equívoco similar a considerar o recente abandono brasileiro das negociações da OMC como um ato de soberania perante a intransigência dos países do centro capitalista em ceder nas questões agrícolas, ignorando que o país tinha aceitado de antemão todas as demandas e exigências dos países centrais.

Em virtude do papel histórico que o FMI cumpre, as novidades dele advindas sempre buscarão reforçar a perda da autonomia das políticas econômicas dos países membros periféricos. A clareza desse aspecto é imprescindível para superarmos não só o horizonte da lógica de buscar o mal menor nas decisões do Fundo, mas principalmente o de se contentar, como faz o governo brasileiro, com este mal.

 

 

1 - Review of the 1977 Decision ― Proposal for a New Decision, Companion Paper, Supplement, and Public Information Notice. http://www.imf.org/external/np/pp/2007/eng/062107.htm

2 - A member should avoid exchange rate policies that are pursued for domestic reasons and result in external instability, including fundamental exchange rate misalignment. Principles for the Guidance of Members' Policies Under Article IV, Section 1, item D, pág 14.


3 - Nota do ministro da Fazenda sobre a nova decisão relativa a mudanças no monitoramento do FMI, 20/06/07 http://www.fazenda.gov.br/portugues/releases/2007/junho/r200607.asp

 


Fábio Marvulle Bueno é mestre pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em políticas públicas e gestão governamental do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

 

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