Correio da Cidadania

Da impostura ao genocídio

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O principal argumento contra o atrelamento do piso previdenciário ao salário mínimo é o de que ele inflaria o gasto do INSS, ocasionando déficit. Se essa idéia é baseada numa fraude, o que move, afinal, os defensores da desvinculação?

 

Os próprios interessados respondem à pergunta. “A migração de um regime de repartição para um regime de capitalização” - lê-se no relatório final de um seminário do PDMC realizado em fevereiro de 2003 – “impõe custos transitórios representados principalmente pela superposição de obrigações com o pagamento dos benefícios correntes e destinação de recursos para a capitalização dos novos planos de previdência complementar”.

 

Traduzido para o português corrente, isto significa que: 1) o sistema financeiro não quer assumir o pagamento dos atuais aposentados, que continuará a cargo do Estado; 2) este, no entanto, não arrecadará mais as contribuições destinadas ao custeio dessas aposentadorias, já que os trabalhadores passarão a descontar para fundos privados; 3) o setor financeiro quer continuar sugando o Estado através dos juros da dívida pública e outros mecanismos; 4) é necessário, portanto, garantir que o dispêndio estatal com benefícios previdenciários seja suficientemente baixo para que não provoque uma insolvência capaz de afetar os pagamentos aos rentistas.

 

Vida ou morte no campo

 

Acontece que isto significa privar de sua fonte de sustento 60 milhões de brasileiros pobres (1), que dependem de benefícios previdenciários e assistenciais vinculados. Segundo dados do MPAS (2), 67% dos beneficiários da Previdência Social recebem o valor mínimo. Na cidade, esta proporção é de 44,5%. No campo, 99%.

 

Não é exagero, portanto, afirmar que o desatrelamento teria para a população camponesa dimensões de genocídio. Uma pesquisa realizada pelos economistas Guilherme Delgado e José Celso Cardoso Jr., do IPEA (3), é bastante reveladora neste sentido: em 1999, os benefícios previdenciários respondiam, em média, por 41,5% do orçamento familiar rural no sul do país; no nordeste, por 70,8%. Não há motivo para crer que esta relação tenha diminuído de lá para cá; em vista da crise que se abate sobre a agricultura, é provável que tenha aumentado.

 

Outro estudo do IPEA (4), de autoria dos economistas Sergei Soares, Fábio Veras, Marcelo Medeiros e Rafael Osório, mede o reflexo dos benefícios previdenciários de valor mínimo e dos assistenciais de igual valor sobre a renda dos brasileiros. Resultado: sem eles, o percentual da população abaixo da linha de pobreza passaria de 31 a 38%. Desses sete pontos de diferença, cinco decorrem do piso previdenciário. Os outros dois resultam dos benefícios da LOAS e do bolsa-família.

 

Milhões de famílias são salvas da pobreza pela aposentadoria rural vinculada. No que se refere a outras tantas, ela as mantém na pobreza – e salva da ruína. O mesmo pode ser dito sobre 67,85% dos municípios brasileiros que têm nos pagamentos do INSS sua principal fonte de receita, superando os repasses do Fundo de Participação dos Municípios (5). Sem a Previdência, o interior quebra.

 

Homens por inteiro

 

Não bastasse esse efeito econômico arrasador, o aspecto simbólico envolvido também não é de se desprezar. Conquistada sob o lema “Não somos meio homem para receber meio salário mínimo” - alusão ao valor pago pelo Funrural, instituído durante a fase de gerenciamento militar – , a equiparação da aposentadoria rural ao menor salário representa um marco da luta camponesa.

 

Para as mulheres, a conquista foi ainda maior: também elas, que antes não tinham direito a aposentar-se, tiveram assegurado seu direito à aposentadoria mínima.

 

A luta pela vinculação das aposentadorias e pelo reconhecimento dos direitos previdenciários das camponesas norteava-se por um anseio elementar de justiça. Os efeitos dessa conquista, entretanto, vão mais além. A renda previdenciária – dois salários mínimos por casal de idosos – é, atualmente, o fator que possibilita a milhões de pequenos camponeses continuar na terra, compensando parcialmente os efeitos nocivos de uma política agrícola de favorecimento ao latifúndio financeirizado ou agronegócio. Isto se choca frontalmente com os interesses dos monopólios agroindustriais e com os do próprio setor financeiro, interessado em expandir-se sobre a agricultura a partir de projetos de produção e exportação de biocombustíveis.

 

Problema agravado

 

É a assegurar o pagamento dos juros da dívida pública e expulsar camponeses de suas terras – e não a resolver o problema fiscal do Estado – que a desvinculação do piso previdenciário se destina. No que se refere à crise fiscal – se ela existe – , seu efeito seria o agravamento, tal como ocorreu na Argentina, onde Menem fez exatamente do que o PDMC defende.

 

Lá, “o Estado continuou pagando aposentadorias e pensões dos já aposentados e dos novos aposentados que haviam contribuído para o sistema público, mas as contribuições dos trabalhadores passaram a ser recolhidas aos fundos privados” - xplica o economista Ismael Bermúdez (6). Naturalmente, as gerências semicoloniais argentinas – Menem e De la Rúa – tentaram resolver o problema reduzindo pensões e aposentadorias. O arrocho contribuiu para provocar uma depressão econômica que acabou levando o país à bancarrota.

 

Notas:

 

(1) 14 milhões de beneficiários da Previdência e 3 milhões da Assistência recebem salário mínimo. O MPAS calcula que cada benefício previdenciário ajude a sustentar, em média, mais 2,5 pessoas.

 

(2) Outubro de 2006.

 

(3) O Idoso e a Previdência Rural no Brasil: a Experiência Recente da Universalização. Brasília, IPEA, 1999.

 

(4) “Programas de Transferência de Renda no Brasil: Impacto sobre a Desigualdade e a Pobreza”, 2006.

 

(5) Álvaro Sólon de França, A Previdência Social e a Economia dos Municípios. Brasília, Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social (Anfip), 2004.

 

(6) Revista Adusp nº. 30, São Paulo, Adusp, junho de 2003.

 

 

Henrique Júdice Magalhães é jornalista, ex-servidor do INSS e pesquisador independente em Seguridade Social. Porto Alegre (RS). Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. Este endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email

 

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