Correio da Cidadania

Luiz Pinguelli: a Eletrobrás está sendo amputada pelo governo

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Entrevistamos para essa edição especial do Correio da Cidadania o ex-presidente da Eletrobrás na gestão de Luís Inácio Lula da Silva, Luiz Pinguelli Rosa. Pingueli relata a sua experiência no governo, lamenta a situação de penúria a que estão sendo conduzidas as estatais e critica a reverência aos contratos, nos quais “não se mexe quando é a favor do Brasil, quando é contra, mexe”.

 

*** 

 

 

Correio da Cidadania: Em entrevista anterior a esse mesmo Correio, o senhor disse que a alternativa para o aumento da capacidade de geração do Brasil seria a troca do governo anterior por um outro que tratasse a questão energética com seriedade e a eliminação dos economistas liberais do poder. Como está a atuação do governo Lula?

 

Luiz Pinguelli Rosa: Infelizmente, houve uma continuidade da presença dos economistas liberais no governo. Para ser factual, temos o Joaquim Levi (secretário do Tesouro Nacional) e o Murilo Portugal (secretário-executivo do ministério da Fazenda), que eram da equipe de governo anterior e simbolizam um tipo de política na área econômica da qual eu discordo: superávit primário, contenção das despesas públicas, elevação das taxas de juros. São medidas que acarretam o aumento da dívida interna. O governo dá prioridade absoluta para o aspecto financeiro-monetário e menor prioridade para o resto de suas despesas. Há também imobilidade em contratos que deveriam ser repactuados e que fazem parte do dia a dia de qualquer negócio – aqui, temos o mito de que qualquer contrato que o governo fez não pode ser mexido, o que é uma bobagem.

 

CC: E mais especificamente no setor elétrico, houve algum avanço na retomada do planejamento público?

 

LPR: Houve, mas não tanto quanto necessário. Isso tem a ver com o que eu disse anteriormente. Houve transferências de recursos da Eletrobrás para o Tesouro Nacional, que poderiam ter sido investidos na ampliação da geração elétrica federal. Também os recursos de Itaipu, que somavam mais de US$ 1 bilhão por ano, foram transferidos para o Tesouro Nacional. Eu discordava de tal proporção, dentro de meu ponto de vista não era correto. Tínhamos também a retenção de recursos para o superávit primário, uma série de proibições na Eletrobrás – não era possível ser sócio majoritário em parcerias com o setor privado -, dificuldades enormes de acesso ao crédito, ao BNDES. Passei o ano de 2003 sem ter nenhum aporte do BNDES, não por culpa do banco, mas sim pelas regras que a Fazenda impunha e que o BNDES cumpria. Calculo que R$ 7 bilhões foram passados às empresas privadas elétricas estrangeiras, quase todas as distribuidoras privatizadas, e não conseguia nada para as empresas pobres do Norte e do Nordeste, que eram distribuidoras federais – de Alagoas, do Acre, do Amazonas, de Rondônia –, que tinham muitas dificuldades e nenhum recurso. Eu tinha que tirar dinheiro dos investimentos da Eletrobrás para cobrir as despesas operacionais dessas empresas de estados com problemas econômicos, enquanto a AES e os grupos estrangeiros tinham grandes aportes de recursos do BNDES.

 

Tive problemas nas negociações que fiz com as empresas estrangeiras com as quais tínhamos contratos, dos quais eu e minha equipe discordávamos. Nós repropusemos algumas cláusulas e conseguimos a aceitação de parte delas, mas não de todas. Infelizmente, depois da minha saída, tenho a notícia de que não se completou a negociação com a usina de Cuiabá, da Enron e da Shell, que precisa ser renegociada. Comecei a fazer isso com Furnas, cujo conselho presidi, e pelo que sei existe uma posição contrária na Aneel, complicando a vida de Furnas.

 

O rosário é muito comprido. O próprio leilão de energia velha foi muito ruim para as empresas federais, tanto é que as privadas não participaram e as geradoras estatais tiveram grandes perdas vendendo energia excessivamente barata para compensar a energia excessivamente cara das empresas privadas geradoras, quase todas estrangeiras. O caso mais lamentável são as termelétricas, que compram energia de Furnas bem barata –R$ 18 por MWh -, ficam desligadas e revendem essa energia a R$ 140 por MWh para as distribuidoras, que é o valor que é repassado para o consumidor na cobrança de tarifas. Portanto, não estou de acordo com boa parte do encaminhamento que tem sido dado para o setor elétrico atualmente. Não posso, porém, dizer que tudo ficou como estava. Criou-se a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que está sendo organizada, e as privatizações foram interrompidas.

 

CC: Mas as privatizações já haviam sido interrompidas na era FHC, não?

 

LPR: Sim, mas conjunturalmente, pela grande luta dos sindicatos, das organizações de profissionais, e devido à crise energética. Mas a decisão política entendo que foi do governo Lula. Não vou nem tanto ao mar nem tanto à terra, tenho grandes reclamações e tive muitas dificuldades em fazer valer meu ponto de vista quando estava na Eletrobrás. No entanto, muitas das questões que colocamos no programa de governo, como a suspensão das privatizações, estão sendo cumpridas.

 

CC: Você fez referência às estatais, que estão vendendo sua energia a um preço muito baixo. Isto está minando a sua capacidade de investimento?

 

LPR: Muito. Isso é um absurdo, pois a grande empresa geradora brasileira é a Eletrobrás. No período em que estive lá, de janeiro de 2003 a maio de 2004, a Eletrobrás teve lucro e valorizou extraordinariamente suas ações, que mais do que dobraram graças a uma administração muito rigorosa. Foi também a empresa que mais investiu em energia elétrica no Brasil. A Eletrobrás deveria ter maior liberdade de ação e ser mais bem remunerada. A tática atual está sendo, na prática, amputar toda a Eletrobrás para permitir que o setor privado mantenha suas tarifas altas. Não tem sentido Furnas vender energia velha por R$ 60 o MWh durante oito anos e existirem termelétricas desligadas vendendo energia a R$ 140 por MWh. Enquanto isso, o consumidor não ganha nada. Veja o aumento que a Aneel previu em Pernambuco, que era de 40%, e no Ceará, mais de 20%. No Rio de Janeiro, a previsão era de 20% de aumento. Estão atenuando, parcelando, mas muito pouco. A inflação brasileira foi de 8%, os funcionários públicos tiveram um aumento de 0,1%. Como é que vão pagar uma tarifa dessa?

 

CC: A corda continua, então, estourando do lado do consumidor?

 

LPR: Sim, as empresas federais estão tendo prejuízo e as empresas privadas, lucro. Mais nada. É uma política que não vai permitir que a Eletrobrás exerça seu papel natural de puxar os investimentos. Nunca pensei que ela pudesse voltar a ser a única empresa importante do Brasil, mas ela é a mais importante. Tinha que ter um papel dinâmico, puxar investimentos, e não ficar a reboque do setor privado, conforme a política atual do governo está obrigando.

 

CC: A susceptibilidade do setor público aos interesses privados, histórica em nosso país, continua, assim, a existir?

 

LPR: O que posso dizer é que a minha proposta de trabalho na Eletrobrás não foi vencedora, o que nós fizemos foi um saneamento financeiro rigoroso, mostrando que a empresa tinha capacidade de alavancar investimentos, de se apresentar bem no mercado. Nunca fui ligado ao mercado, mas meu diretor de mercado, que era uma pessoa com história na esquerda brasileira e tinha experiência de trabalho junto ao mercado, me ajudou bastante nessa parte. Eu tinha a intenção de dinamizar o grupo, criei um conselho de presidentes que dirigia a empresa de fato. Com isso, eliminei um histórico atrito entre a Eletrobrás e as suas empresas controladas, como Furnas e Eletronorte. Nós nos reuníamos, às vezes, semanalmente. Em conferências telefônicas, dois, três dias seguidos. Tínhamos reuniões tantas quantas fossem necessárias, concorremos e ganhamos em leilões com o setor privado. Com isso tudo, ao invés de ganhar aplausos do governo, ganhei críticas. Tive dificuldades enormes com o ministério de Minas e Energia (MME).

 

CC: Qual a sua opinião quanto ao MME?

 

LPR: O ministério é quem executa a política. Recentemente, minhas desavenças com o MME foram, em grande parte, discordâncias que eu tinha com a política econômica. Minhas relações com o Palocci eram boas, nunca as rompi – e nem com a Dilma. As discordâncias eram de orientações políticas e de ação empresarial, no caso da Eletrobrás.

 

CC: O senhor mencionou acima as suas dificuldades de negociação de alguns contratos com empresas estrangeiras. O respeito aos contratos, dentro dessa ótica, está sendo um empecilho ao avanço no setor?

 

LPR: O respeito aos contratos é uma besteira completa, uma bobagem que esses economistas embotados inventaram. Eu briguei com algumas empresas estrangeiras e não tive rompimento nenhum, simplesmente cheguei e disse que os contratos eram absurdos, que precisávamos sentar e renegociar, que só ia pagar o que deveria pagar, e que precisávamos arrumar uma outra forma, pois aquela não servia para a empresa. Uma vez, tivemos uma briga grande com a AES por conta de uma empresa de informática de transmissão por fibra ótica, na qual éramos sócios e a AES havia abandonado a empresa. Depois brigamos com investidores japoneses. Todos queriam que a Eletrobrás assumisse o pagamento. Não concordava com isso, queria mudar o rumo.

 

Acho que seria possível à Eletrobrás ter um outro papel no setor elétrico brasileiro, muito mais dinâmico, muito mais agressivo e sem precisar de grandes problemas, uma vez que o grupo estrangeiro entende que negócio é negócio. Ele entra na questão do negócio como um lutador de boxe, e o Estado brasileiro entra de salto alto. Eu entendo de boxe e, se os estrangeiros estão preparados para a briga, você precisa brigar. Depois, apertam-se as mãos e tudo volta ao normal. Este é o mundo do capitalismo. A empresa estatal, nesse mundo, não pode tratar contratos com esses grandes grupos de multinacionais como coisas sagradas; tem de tratá-los como contratos, como eles tratam. Você vai lá, vê os contratos e diz que tal item é impossível, pois se perde uma quantidade imensa de dinheiro, é injusto, é incorreto, e precisamos renegociá-lo. Alcança-se, assim, uma posição de força. É um besteirol o que esses economistas do século XIX, recauchutados para os séculos XX e XXI, continuam a pregar. Para dar um exemplo, preste atenção se vai acontecer isso com a Varig, que é uma empresa nacional importante de aviação. Ela tem dívidas, principalmente com a BR Distribuidora, com a Infraero e com o governo federal. Nada pode ser feito, pois a Varig precisa ter uma solução de mercado. Sabe qual é? Vem um grupo estrangeiro, propõe algo para o controle da empresa, chega na Infraero e na BR e consegue um abatimento das dívidas para 20% do valor. O grupo estrangeiro pode, mas a Varig, brasileira, não pode. É uma mentalidade de besta quadrada. Isso é o que se faz, o grupo estrangeiro, quando chega, consegue tudo do governo. É preciso mudar essa história de que em contrato não se mexe. Não se mexe quando é a favor do Brasil, quando é contra, mexe.

 

CC: Quanto à retomada dos investimentos públicos e privados, está ocorrendo?

 

LPR: Na proporção devida, não. Do jeito que as coisas vão, o setor privado não está investindo o suficiente, o governo continua com a questão de que quem deve puxar os investimentos é o setor privado e mantém a Eletrobrás muito aquém do que podia. Se o setor privado não investir, vamos sair correndo atrás do prejuízo, arriscando um novo apagão caso a economia cresça muito.

 

A Eletrobrás devia ter um papel mais alavancador ao estilo do que a Petrobrás tem tido. Eu reivindicava igualdade de condições de operação, e isso nunca foi dado à Eletrobrás, pois eles entendem que a dinâmica da energia elétrica tem que vir do setor privado. Esse é o maior erro da política do governo na área de energia elétrica.

 

CC: Você associou a questão do investimento ao risco de apagão. Esse risco realmente existe?

 

LPR: Claro. O problema é o seguinte: se a economia for mal, não há risco nenhum de apagão, pois ainda temos um superávit e dá tempo de aumentar devagarzinho a oferta de energia, existem algumas obras em andamento.  Se a economia for bem, a energia elétrica vai mal: vamos ter que correr atrás do prejuízo a partir de 2007, 2008, anos que não estão tão longe se pensarmos que a construção de uma hidrelétrica leva, pelo menos, cinco anos e de uma termelétrica, três anos. Desse modo, as coisas não irão muito bem se a economia crescer como no ano passado. Se ficar capenga, como muitos dizem que será em 2005, o consumo de energia crescerá pouco e então há a possibilidade de novas obras se apresentarem se os tais investidores privados, em particular os estrangeiros tão cortejados pelo governo, comparecerem. Ou então, se deixarem a Eletrobrás correr na frente, o que não deixam.

 

CC: Existem estudos comprobatórios de perigo de blecaute pós 2007?

 

LPR: No congresso brasileiro de Energia, presidi uma mesa onde este debate foi feito. Eu e Roberto D’Araújo de um lado, de outro, Mauricio Tolmasquim e Mário Veiga, que já trabalhava para o MME desde os tempos das privatizações e que continuou no novo governo com a mesma função de assessor especial a partir da retirada do meu grupo.

 

CC: Como foi a sua participação no início deste governo quanto à proposição de um novo modelo para o setor elétrico?

 

LPR: As pessoas mais identificadas comigo estavam muito ativas no início do governo, na definição do chamado “novo modelo”, dentro daquilo que foi o grupo de trabalho que coordenei no Instituto Cidadania. Houve uma dissidência imensa e as duas pessoas principais que tinham a mesma concepção que eu dentro do ministério eram o Roberto D’Araújo e o Leslie Terry, que infelizmente faleceu, depois de ter sido afastado do papel que tinha no grupo de trabalho do novo modelo. A partir de então, um outro grupo, que foi o grupo das privatizações, assumiu.

 

CC: Poder-se-ia dizer, então, que a proposta original foi desfigurada?

 

LPR: Não vou usar a palavra “desfigurada”, pois o que tenho que fazer é corrigir erros. A proposta não foi implementada na sua plenitude, e foram deixados buracos que a comprometeram muito, como a manutenção dos contratos e a descontratação da energia contratada das geradoras federais, substituídas por geradoras privadas. Não se previram esses itens no modelo, e eles foram sendo tolerados. E, finalmente, há a própria Eletrobrás. No nosso modelo, seu papel era diferente, seria a principal empresa elétrica brasileira, e não freada como é hoje, com a baixa remuneração de sua energia.

 

CC: Imaginava-se, na reorganização do setor, restringir as funções da Aneel, que passariam ao âmbito ministerial. Isso foi efetivamente realizado?

 

LPR: Há um meio termo, houve uma transferência de funções para o ministério. Mas acho que o problema não é por aí, pois pode haver uma Aneel funcionando muito bem também. Na realidade, volto a dizer: a Aneel está dentro da mesma política, ela, junto com o ministério, formam um todo. Engana-se quem vê essa contradição. E, no fundo, não há nenhuma política elétrica, o que existe é uma política do ministério da Fazenda para o setor elétrico. Não há desonestidade, nem erro técnico. É uma opção de privilegiar o investimento privado – estrangeiro, em particular - no setor elétrico, em detrimento do papel das empresas federais de geração elétrica.

 

CC: E sobre as energias renováveis, tão aclamadas por este governo, qual a sua opinião?

 

LPR: É uma questão econômica. Neste ponto, defendo a política do governo, que foi a implementação do PROINFA (Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica), que são três GW de energia renovável. Essa política, embora já fosse decisão congressual anterior, foi levada adiante no governo Lula, assim como o Biodiesel. No setor elétrico, ainda não foi reconhecida a importância do uso do biodiesel na região amazônica, substituindo o diesel em localidades distantes. O governo ainda tem muito a fazer, mas o primeiro passo já está dado.

 

CC: Quais as perspectivas para o setor no governo Lula?

 

LPR: Eu acho deplorável a ausência de luta. Cadê os sindicatos? Cadê todo mundo que reclamou das privatizações para ter uma Eletrobrás forte? Não temos mais privatizações, mas temos uma Eletrobrás enfraquecida. Por que não lutam? Isso me deixa perplexo, infelizmente existe esse grande silêncio. São tão raras as vozes, com base técnica, que às vezes a impressão que se tem é de silêncio. No fundo, houve um cala a boca geral.

 

CC: O que ficou como saldo da sua atuação no governo?

 

LPR: Fiquei muito feliz, a criação do conselho de presidentes foi uma solução muito importante e bem sucedida da gestão da Eletrobrás, e lamentarei se ela não continuar. Também muito importante foi o saneamento financeiro do grupo, resgatando o prestígio da Eletrobrás como empresa, aumentado, inclusive, o seu valor de mercado. Depois que saí de lá, não posso dizer que o mesmo tenha acontecido. A Eletrobrás teve uma queda acentuada no valor das suas ações, deixando de ter o papel que podia ter como empresa.

 

 

Colaboraram Mateus Alves e Luís Brasilino.

 

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