Correio da Cidadania

A política energética de Lula: ruptura ou continuidade?

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Naufrágio à vista: os fatos comprovam os indícios

 

A esperança de que fosse implantado um novo modelo no setor elétrico, benéfico à sociedade, cresceu com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. No entanto, o modelo que foi colocado em prática pelo ministério das Minas e Energia está muito aquém daquele que foi discutido no Instituto Cidadania por diversos especialistas do setor como sendo o ideal - um modelo voltado a recolocar o setor elétrico do Brasil nos trilhos, após os descalabros da gestão de FHC.

 

Poucos foram os avanços observados com a implementação do modelo escolhido por Dilma Rousseff em 2003. As principais inovações introduzidas foram a criação da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) – hoje, ainda engatinhando e longe do papel ideal que deveria ter - e a criação do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), responsável pela organização e coordenação dos órgãos do setor. Houve também inovações em relação à proteção ambiental, mormente a coordenação entre os órgãos responsáveis no governo, de forma a que os novos empreendimentos de geração venham a oferecer menor risco ao meio ambiente.

 

Mesmo esses pequenos avanços, porém, não fogem de críticas. Para José Paulo Vieira, a EPE é frágil e a instalação de um planejamento eficaz está ainda longe da realidade: “o planejamento é uma prioridade mais de discurso do que de prática”. Roberto D’Araújo concorda com Vieira e lembra que o papel do planejamento no modelo proposto no Instituto Cidadania seria reservado à Eletrobrás que, segundo ele, já dispunha de todo o ferramental necessário para exercer a função. “A criação de uma nova empresa de planejamento, pequena, traz dúvidas: será que ela conseguirá exercer uma função orientadora com independência dos interesses privados?”, pergunta D’Araújo.

 

Para a maioria dos especialistas da área elétrica, uma importante inovação viria da criação de um comprador único de energia, o Pool. No modelo original, a função da EPE e da Câmara de Comércio de Energia Elétrica (CCEE) - o antigo MAE, onde se dava a comercialização de energia no país – ficariam com o Pool. Neste modelo, o Pool seria o responsável pela organização das vendas de energia: compraria de todas as geradoras e venderia para todas as distribuidoras, reduzindo o espaço dos intermediários, que o mercado tenta a todo momento criar e maximizar.

 

Desde o começo de 2003, a idéia do comprador único foi completamente distorcida no governo Lula. A multi-contratação de geradoras, onde cada novo empreendimento requer sejam feitos contratos com cada uma das 64 distribuidoras existentes, é o que está ocorrendo na prática. Exigir que um gerador venda sua energia para todos os distribuidores resulta em uma pulverização dos contratos, aumentando drasticamente o custo das transações. Para José Paulo Vieira, a maneira complexa como o Pool está sendo implementado irá beneficiar somente as instituições financeiras: “há muitos papéis, muitos títulos, muitas operações de crédito”.

 

Roberto D’Araújo critica o modelo finalmente implantado e reivindica o papel de comprador único para a Eletrobrás: “o certo seria a Eletrobrás comprar e vender energia, cobrando uma taxa de administração para isso. Porém, dizem que isso daria muito poder à estatal, observação incorreta, pois se trata de uma licitação”. No caso do PROINFA (Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica), cuja energia é cara, a Eletrobrás exerce o papel de compradora: “Para isso, a Eletrobrás serve, mas, para comprar energia competitiva, energia boa para se vender às distribuidoras, e exercer um papel político, não”, completa Araújo.

 

A lógica perversa dos leilões: a descapitalização das estatais

 

Os leilões de energia elétrica no país, segundo José Luiz Juhas, gerente geral de Planejamento e Desenvolvimento, da diretoria de Gás e Energia da Petrobrás, “estão jogando o preço de um insumo extremamente valioso para baixo, pois acontecem num momento em que a oferta excede a demanda, o que descapitaliza as estatais”. Para Juhas, “a grande deficiência de hoje é que havíamos proposto um modelo de Pool diferente do que foi implantado. No nosso modelo de Pool, haveria uma entidade governamental que agregaria o Operador Nacional de Sistema (ONS), o planejamento e a câmara de comércio. Seria uma entidade que compraria e venderia energia na medida em que fosse necessário, sem o mecanismo de leilões. Até poderia haver leilões, se houvesse equilíbrio entre oferta e demanda”.

 

Em nenhum outro lugar do mundo ocorrem leilões de energia quando existe sobra. No caso brasileiro, tal sobra está nas mãos das geradoras, em sua maioria estatais, o que força o valor de venda para baixo. Para Roberto D’Araújo, “houve uma armação, usaram as estatais como uma maneira de rebaixar custos; todos os custos do sistema elétrico subiram, menos o da energia de empresas estatais”.

 

A descapitalização das estatais, que foram, segundo José Paulo Vieira, “muito maltratadas” durante o governo FHC, continua ocorrendo no governo Lula. As empresas estão perdendo receita, pois, no lugar de contratos que cobriam os custos operacionais e remuneravam o capital, passaram a vender energia a preços baixíssimos no mercado atacadista e nos leilões. “Gerar a energia vendida é cinco ou seis vezes mais caro do que o preço obtido no mercado atacadista, cerca de irrisórios R$ 18 por MWh”, completa Vieira.

 

Concorrendo para a ruína das empresas públicas, a obrigação de descontratação anual de 25% de energia contratada das geradoras estatais a partir de 2003, criada no governo FHC, não foi revista pelo governo Lula. O governo preferiu deixar tudo como estava, apesar da sugestão de especialistas para eliminar a descontratação, com a conseqüente manutenção dos contratos de longo prazo das estatais. Com isto, a partir de 2006, as estatais, além da lógica perversa dos leilões a que são submetidas, terão de encontrar compradores para 100% de sua energia.

 

Com tudo isso, para Roberto D’Araújo, a Eletrobrás, holding do setor elétrico estatal, continua sendo a maior empresa de energia elétrica no país. O engenheiro lamenta o esvaziamento das funções da estatal como criadora de linhas de planejamento e condutora de uma política para o sistema nacional.

 

Tarifas versus consumidores

 

Enquanto as estatais vendem sua energia na bacia das almas – cerca de R$ 18 por MWh -, as distribuidoras privadas a vendem por cerca de R$ 150 por MWh. Ou seja, os consumidores não se beneficiam com a venda barata das estatais. Quem sai ganhando são os intermediários, isto é, as comercializadoras, associadas às distribuidoras.

 

O Pool, tal como originalmente proposto, poderia organizar isto: compraria de todas as geradoras e venderia para todas as distribuidoras, com o que seria reduzido o espaço dos intermediários. Seria, destarte, possível que as geradoras estatais – que estão entregando sua energia praticamente de graça tanto nos leilões públicos com no mercado atacadista – fossem remuneradas conforme suas taxas históricas. E os consumidores não seriam lesados pelo fato de as estatais receberem mais, pois quem está ficando com o lucro advindo das altas tarifas são os intermediários.

 

Para agravar esse quadro, o setor privado tem conseguido que as tarifas se elevem acima da inflação – indicativo da persistência de sua notável e histórica influência sobre o sistema elétrico brasileiro. O governo Lula teve a chance de trazer benefícios aos consumidores do país quando realizou uma revisão tarifária, coordenada pela Aneel, em 2003 e 2004. Tal revisão, no entanto, acabou sendo um novo estímulo aos investidores, para que pudessem continuar livres de riscos.

 

Contratos duvidosos vêm ainda agregar-se ao conjunto de fatores lesivos aos consumidores. Pela lógica da operação do Sistema Interligado Nacional, começam a ser operadas primeiramente as hidrelétricas, que têm custos menores de geração. Como está havendo sobra, não é necessário ligar as usinas movidas a combustíveis fósseis. As termelétricas têm, porém, contratos de remuneração garantida, alguns deles pela Petrobrás, para a cobertura de seus custos operacionais (por exemplo, o do gás que consomem). Desta forma, operam de forma lucrativa ao liquidarem seus contratos de fornecimento de energia comprando energia barata que sobra das estatais e sendo remuneradas como se estivessem incorrendo nos custos de geração termelétrica.

 

Roberto D’Araújo exemplificou tal mecanismo com o caso da Celpe, antiga distribuidora estatal de Pernambuco, agora privatizada. Enquanto estatais vendem energia nos leilões a R$ 47 por MWh, a Celpe compra de sua própria termelétrica – que, pela lógica do Sistema Interligado Nacional, permanece desligada – por R$ 137 por MWh. Como a operação física do sistema é controlada pelo ONS - que não tem relação direta com as transações de mercado, colocando, portanto, primeiramente em funcionamento as geradoras hidrelétricas produtoras de energia mais barata -, quem está realmente fornecendo energia à Celpe é uma geradora estatal. Mas o valor considerado nas tarifas dos consumidores pernambucanos são os R$ 137 por MWh, recebidos pela termelétrica da Celpe, que, por sua vez, repassará à geradora que realmente entrou em operação meros R$ 47. “Isso se permite. Em nome de não se quebrarem alguns contratos, o governo quebra todo o resto”, diz Roberto D’Araújo.

 

Se a lógica comercial não oferece grandes expectativas quanto às tarifas pagas pelos consumidores (clique para ver a tabela 6), a operação física do sistema não lhes é igualmente favorável. A perspectiva de menores tarifas torna-se cada vez mais longínqua, uma vez que os leilões estão minando a energia velha e barata das estatais. Entrará obrigatoriamente no lugar dessa energia uma outra, originária de usinas novas, construídas cada vez mais longe dos centros de carga e dos melhores rios do país, que já são utilizados para a produção de energia elétrica. Segundo José Luiz Juhas, “o que baixaria as tarifas seria rever cláusulas contratuais”.

 

A antiga idéia defendida pelos teóricos do setor elétrico, de se aproveitar a renda originária dos baixos preços da energia das geradoras hidrelétricas estatais para a criação de um fundo voltado à expansão do sistema elétrico – trata-se, em suma, de que o consumidor, quando pagasse suas contas elétricas, estaria também garantindo a expansão desse sistema -, vem se tornando cada vez mais remota. As distribuidoras privadas agradecem.

 

Privatização persiste camuflada

 

Há cerca de seis anos, em 1999, o governo federal freou o processo de privatização das estatais de energia elétrica no país. Foi uma decisão conjuntural, causada pela crise energética - já naquele ano, o ONS recebia sinais de que o colapso no sistema estava prestes a ocorrer - e pela pressão de organizações sociais. Embora seja parte do projeto político do governo petista a interrupção das privatizações, o que se vê hoje não é a venda das empresas estatais, mas sim a privatização da energia e do potencial hídrico do país. Grandes empresas, como a Vale do Rio Doce e a Alcoa, estão construindo hidrelétricas – a partir de vitórias em licitações - para uso próprio. “Algumas empresas estão privatizando nossas usinas e nós, residências, pequenas indústrias e comércios e serviços públicos, não vemos a cor dessa energia, que está reservada para esses grandes consumidores”, diz Roberto D’Araújo.

 

Parte da prole do período das privatizações, a Aneel, criada em 1996 para a regulamentação e fiscalização do setor elétrico, persiste com desempenho muito aquém do esperado pela sociedade. A despeito de não mais deter poder concedente, que foi devolvido ao ministério das Minas e Energia, a falta de pessoal impede a fiscalização das redes e as parcerias da agência com outros órgãos estaduais têm sido infrutíferas. Para José Luiz Juhas, falta transparência na atuação da entidade: “os reajustes são baseados em modelos fictícios de cada concessionária, e nunca sabemos se sua aplicação é manipulada ou não. Existem audiências públicas, mas nunca vi nenhuma que conseguisse reverter qualquer situação”.

 

A cobrança dos investidores privados, de maior independência da Aneel, é inapropriada. Documentos da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE, citados por D’Araújo, mostram que somente dez países têm agências independentes. Na Alemanha, cujo setor elétrico é privado, não há nem mesmo uma agência - quem fiscaliza e regulamenta o setor é o próprio ministério. Para D’Araújo, conceder independência às agências é bastante problemático: “você cria um órgão que está sempre em litígio com alguém, ou com o Estado, ou com o consumidor ou com os investidores”. D’Araújo cobra também uma maior participação da sociedade na regulamentação do setor: “Nós é que tínhamos que discutir qual é o conjunto de regras que beneficia a todos”.

 

Vai ter apagão?

 

O fantasma do apagão de 2001 não foi expurgado. A redução no consumo de energia como conseqüência do racionamento e uma hidrologia favorável, que resultaram na sobre-oferta de energia, têm proporcionado sensação de tranqüilidade ao setor elétrico e aos consumidores. Preocupações vêm, no entanto, à tona quando se pensa na possibilidade de um crescimento econômico estável. As coisas podem piorar a partir de 2006, de acordo com avaliações matemáticas mencionadas por Roberto D’Araújo. “É o ano em que o sinal amarelo acende”, observa.

 

Uma nova hidrelétrica leva 5 anos para entrar em operação, e uma termelétrica 3 anos. No caso de um eventual crescimento acelerado, seria muito difícil para o sistema elétrico brasileiro suportar tal expansão, levando-se em conta o insuficiente planejamento do Estado e a descapitalização das estatais. Para José Paulo Vieira, “existem instrumentos que, com um planejamento adequado, possibilitam a intervenção em caso de complicação”. Mas colocá-los em prática exige um governo com controle das rédeas do sistema energético.

 

Além disso, o sistema de transmissão é ineficiente. Segundo José Luiz Juhas, seria necessário duplicar as linhas de transmissão do país para ficarmos 100% livres do risco de apagão, o que requer investimentos gigantescos, pouco prováveis devido aos percalços na reorganização do setor elétrico e à situação de penúria das estatais.

 

A política de energias renováveis do governo Lula, uma possibilidade de ampliação do potencial energético, também sofre com a falta de planejamento. Projetos aparecem esporadicamente: “Tudo flui pela demanda, quem vier com um projeto, e conseguir credenciá-lo, leva”, declara José Paulo Vieira.

 

Nova roupagem, mesmo conteúdo

 

Trocam-se os nomes, mas as operações continuam as mesmas. O Mercado Atacadista de Energia (MAE), síntese do projeto de FHC para o setor elétrico, transformou-se na Câmara de Comércio de Energia Elétrica (CCEE), a qual, teoricamente, desempenharia as funções de um comprador único. A lógica de sua operação permanece, no entanto, igual à do MAE, antes satanizado por membros do atual governo. Além das vendas de energia no atacado, que compõem porção significativa do mercado de energia operado pela CCEE, continuam os acordos bilaterais e as negociações diretas entre distribuidoras e consumidores.

 

A pulverização de contratos daí decorrente implica em altos custos, que acabam sendo socializados na tarifa praticada pelas distribuidoras. “É um custo para-estatal, quase um para-tributo”, diz José Paulo Vieira. Para ele, o consumidor é quem está pagando a conta. Até mesmo os geradores privados acabam insatisfeitos com a pulverização dos contratos, uma vez que são obrigados a vender energia para distribuidoras deficitárias como, por exemplo, a Companhia Energética do Piauí (Cepisa), empresa estatal que dá prejuízos há anos. Algo que, novamente, vai se refletir nas tarifas para o consumidor. Segundo Roberto D’Araújo, “uma vez que o gerador se vê obrigado a vender energia para uma empresa que não dará garantias de pagamento, ele coloca isso no preço”.

 

Por trás de tudo isto, sintetizando o “continuísmo” no setor elétrico, está a relutância do governo Lula em renegociar os contratos estabelecidos na era FHC. “Pressionado pelas empresas privadas, o governo está sendo incapaz de repactuar contratos que trazem prejuízos para o povo brasileiro e elevam cada vez mais a tarifa para o consumidor de energia elétrica. Quer assim mostrar seu compromisso com o mercado, o compromisso de provar que um governo de ‘esquerda’ consegue liderar um país como o Brasil sem quebrar contratos de seu antecessor”, avalia José Luiz Juhas.

 

 

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